O grito de Pedro na cozinha, que ecoou pela pequena casa em Ilhéus, não foi apenas o estopim de uma discussão; foi a explosão de uma panela de pressão emocional que fervia há sete anos. Aquele som, rouco e carregado de frustração e desespero, estilhaçou a frágil fachada de normalidade que o jovem casal vinham tentando manter. A partir daquele momento, a casa, que antes era um refúgio de boas memórias, transformou-se em um campo minado de silêncio hostil e olhares evasivos. A brisa de Ilhéus, que antes parecia carregar o perfume das flores e da maresia, agora trazia o cheiro acre de mágoa e ressentimento.
Para Ana, o grito de Pedro foi mais do que palavras ditas em raiva; foi uma agressão. Ela sentiu-se como se um véu tivesse sido arrancado de seus olhos, revelando a crueza da verdade: Pedro a estava culpando. Culpando-a por não ter um filho. Culpando-a pelos quatro abortos espontâneos que haviam dilacerado seu corpo e sua alma. Era como se, em sua dor e desespero por ser pai, ele tivesse esquecido a dor imensurável que ela carregava, a cicatriz física e emocional de cada perda. A ideia da adoção, que antes Pedro apresentava com carinho e esperança, havia se transformado em uma arma, uma ferramenta para culpá-la por sua "teimosia" e "negação", uma ideia que ele acreditava ser a salvação do casamento deles. Naquele dia, Ana se trancou no quarto de hóspedes, o mesmo quarto cujas paredes um dia sonhara pintar em tons suaves para um berçário. Ali, entre o silêncio sufocante, ela chorou. Chorou não apenas pela briga, mas por tudo o que a briga representava: o amor que estava se esvaindo gota por gota, o sonho desfeito de uma família amorosa, a incompreensão de seu próprio marido. As palavras dele ecoavam em sua mente: "ATÉ QUANDO VOCÊ VAI SE FECHAR PARA ESSA POSSIBILIDADE?!", "EU NÃO AGUENTO MAIS ESSA ESPERA!", "VOCÊ NÃO ENTENDE QUE ISSO ESTÁ ME MATANDO TAMBÉM?!" , "VOCÊ SIMPLESMENTE NÃO CONSEGUE SEGURAR UM BEBÊ!”. Cada frase era um golpe, uma faca girando na ferida aberta. Ela se sentia não só inadequada, indignada de ser mulher, mas também rejeitada por quem deveria ser seu maior porto seguro. O homem que jurou ama-la mais que tudo Pedro, depois de descarregar sua fúria, sentiu um arrependimento imediato, mas não o demonstrou. A raiva o cegara, e o peso da frustração o havia feito explodir de uma forma que ele mesmo não reconhecia. Ele queria se desculpar, queria abraçá-la e dizer que não era culpa dela, que suas palavras foram ditas no calor do momento. No entanto, o orgulho ferido e a própria dor de seu desejo de paternidade o impediam de dar o primeiro passo. Ele se sentia preso, igualmente vítima de uma situação que parecia não ter saída. Tentou justificar seu comportamento em sua mente: ela estava sendo irracional, ele só queria o bem deles, queria uma família. Essa justificativa, no entanto, apenas servia para adiar o confronto e a reconciliação. Os dias que se seguiram foram uma tortura silenciosa. O jantar era consumido em absoluto silêncio, apenas o som dos talheres contra os pratos quebrando a quietude pesada. Na sala, Ana assistia ao jornal que falava sobre o crescimento do mercado agrário, com os olhos fixos na tela, mas sem realmente absorver o que via, sentindo a presença de Pedro no mesmo ambiente como um fardo. Pedro, por sua vez, se trancava em seu escritório, ou saía para longas caminhadas pela orla, evitando o olhar de Ana, evitando a conversa que sabia ser inevitável, mas para a qual não se sentia preparado. A falta de comunicação transformou a tensão em uma barreira intransponível. A casa, antes um lar que resplandecia com o amor e a vida do casal, agora parecia ter encolhido, tornando-se um espaço claustrofóbico, o elefante na sala era feito de tensão e mágoa. Cada cômodo parecia carregar as memórias de risadas e sonhos que foram brutalmente substituídas pelo eco dos gritos e dos silêncio frio. Os objetos de decoração, antes escolhidos com tanto carinho, pareciam meros testemunhos de um passado que já não existia. Ana sentia um vazio ainda maior, uma sensação de solidão que superava a dor da infertilidade; era a solidão dentro de um casamento. Ana começou a passar mais tempo fora de casa. No escritório, pedia trabalhos extras, ficava até mais tarde revisando planos de negócios e corrigindo erros que encontrava em planilhas antigas. O cheiro de livros e a interação com os colegas se tornaram seu refúgio, um lugar onde ela podia ser apenas a administradora Ana, sem a sombra da mulher "incapaz de dar filhos". Ela também retomou um antigo hobby: pintar aquarelas de paisagens de Ilhéus. As cores vibrantes da Bahia, as praias, os coqueiros e as águas límpidas, eram um escape, uma forma de canalizar sua angústia e expressar as emoções que não conseguia verbalizar. Mas, mesmo imersa em seu trabalho e em sua arte, a voz de Pedro e a dor da incompreensão a perseguiam, deixando as pinturas feias e sem vida, um reflexo de seus olhos. Enquanto isso, a insistência de Pedro não diminuiu; pelo contrário, tornou-se mais frenética, embora ele agora a direcionasse mais para si mesmo. Chegou ao ponto de, uma noite enquanto Ana tomava café na varanda, ele sugerir uma barriga de aluguel. "O quê?" Ana falou ainda sem acreditar no que tinha escutado, olhando nos olhos de Pedro percebeu que não era uma brincadeira, ele estava realmente disposto a chegar nesses ponto. "Pode não ter seu sangue mas vai ter o meu, nós dois podemos criar ele, vai ser nosso bebê." Ao ver a esposa passar por ele a passos pesados, indo se "esconder" no quarto como ele gostava de pensar, se perguntou o que tinha falado de errado. Mas antes que fizesse algo o celular vibrou com uma mensagem, e assim que leu o conteúdo saiu com pressa. No dia seguinte ele começou a pesquisar sobre agências de adoção, os processos legais, os documentos necessários. Entrava em fóruns online de pais adotivos, buscando inspiração e orientação. Era como se, ao sentir o afastamento de Ana, ele se apegasse ainda mais à ideia da adoção como a única tábua de salvação para seu casamento, para sua vida. Ele acreditava que, se Ana visse o quão sério ele estava em sua busca, ela eventualmente cederia, e o amor deles voltaria a florescer. O desejo de ser pai havia se tornado uma obsessão, uma necessidade que ele não conseguia mais controlar. Um dia, ao voltar da empresa, Ana encontrou a mesa da sala de jantar coberta de panfletos de agências de adoção, livros sobre psicologia infantil e documentos com termos legais sobre o processo. Pedro estava sentado à mesa, com óculos de leitura na ponta do nariz, absorto na papelada. Ela sentiu um arrepio. Aquele gesto, que antes via como charmoso e até mesmo a fazia morder os lábios, agora parecia uma afronta, uma declaração de guerra. Ele nem sequer havia esperado que ela estivesse pronta para aquela conversa. “O que é tudo isso, Pedro?” A voz de Ana saiu mais fria do que ela pretendia. Pedro levantou a cabeça, o rosto iluminado por uma esperança que não encontrou eco nos olhos dela. “Ana! Que bom que você chegou! Eu estava pesquisando sobre os requisitos. Parece que o processo aqui na Bahia é um pouco demorado, mas é possível! Olha, encontrei algumas agências que têm um tempo de espera menor para crianças com mais de cinco anos ou grupos de irmãos. O que você acha? Podíamos agendar uma visita a uma delas na semana que vem?” Ele falava com um entusiasmo quase infantil, completamente alheio ao gelo que se instalara entre eles. Ana olhou para a pilha de papéis, para os olhos brilhantes de Pedro, e sentiu uma onda de frustração tão grande que quase a sufocou. Era como se ele estivesse construindo um castelo no ar, ignorando completamente o fato de que a fundação do castelo deles estava desmoronando. “Pedro, você não está me ouvindo?” Ana respirou fundo, tentando manter a calma, mas a raiva começava a borbulhar em seu peito. “Eu disse que preciso de tempo. Que eu estou processando. Você não pode simplesmente decidir por nós dois, jogar isso na minha cara como se fosse a solução mágica para todos os nossos problemas! Eu não pedi isso! Nunca disse que estava pronta e você não sabe como dói te ver pronto pra seguir a vida de forma tão rápida!” O sorriso de Pedro desapareceu, substituído por uma expressão de irritação que Ana já conhecia bem. “Mas Ana, o que mais vamos fazer? Vamos continuar lamentando o que não podemos ter? Vamos passar o resto da vida sozinhos, sem filhos, só com essa tristeza nos acompanhando? Eu estou tentando encontrar uma saída, uma forma de termos a família que sempre sonhamos! Eu estou te dando uma solução!” “Uma solução que eu não consigo aceitar no seu tempo!” Ana retrucou, a voz elevando-se. “Você não entende que essa é a minha dor, Pedro? Eles estavam dentro de mim, dentro do meu corpo, eu senti eles se mechendo! Não vê que é difícil para mim aceitar outra forma, mesmo que eu tente? Você está me forçando, me empurrando para algo que eu não estou pronta! E o pior, você está fazendo isso sem me perguntar, sem se preocupar com os meus sentimentos! É sempre sobre o que você quer, sobre o seu desejo de ser pai, minha saúde mental não conta?!” A discussão se intensificou. As palavras se tornaram mais afiadas, carregadas de anos de mágoa reprimida. Pedro acusou Ana de egoísmo, de não querer abrir mão de sua dor para o bem da relação. Ana o acusou de insensibilidade, de não conseguir enxergar o sofrimento dela além do seu próprio desejo. A casa ressoava com a discórdia, e cada palavra dita era um tijolo a mais na muralha que os separava. Em um momento de fúria, Pedro jogou um dos livros sobre adoção na mesa, fazendo um barulho estrondoso. “Então o que você quer, Ana?! Desistir de tudo?! Você não é capaz de me dar filhos então quer desistir de mim, da gente, da nossa família?! Eu estou te dando uma solução aqui! É isso que você quer?! Se você não quer ter filhos de jeito nenhum, então o que estamos fazendo juntos?!” O silêncio que se seguiu foi ainda mais devastador do que os gritos. As palavras de Pedro, embora ditas em um acesso de raiva, carregavam uma verdade cruel que Ana não podia ignorar. Ele estava sugerindo o fim. Estava colocando a ausência de filhos, a adoção, como uma condição para o casamento deles. Aquilo não era mais sobre o desejo de ter filhos, mas sobre a continuidade da própria união. Ana olhou para ele, os olhos marejados, o coração apertado. "Então é isso, Pedro?", ela perguntou, a voz quase um sussurro, mas carregada de uma determinação fria. "É isso que você quer? Me dar um ultimato? Se eu não aceitar a adoção, o nosso casamento acaba?" Pedro a encarou, o rosto tenso, a respiração ofegante. Ele percebeu o peso de suas próprias palavras, a gravidade do que havia dito. Mas a raiva e a frustração ainda o dominavam, e ele não recuou. "Eu só... eu só não quero mais viver com essa incerteza, Ana. Com essa dor. Eu quero ser pai. E se você não quer tentar isso comigo... então eu não sei mais o que fazer." Naquele instante, Ana soube. Aquele não era mais o Pedro que ela amava, o homem sensível e carinhoso que havia amparado suas lágrimas. Era um homem consumido pela frustração, pelo desejo, e que a estava abandonando emocionalmente, colocando a paternidade acima dela, acima do amor que haviam construído. Aquele era o ponto de ruptura. A linha havia sido traçada, e ela não seria quem a cruzaria. Aquele casamento, que ela havia lutado tanto para manter e proteger, havia chegado ao seu fim. Ela não permitiria ser arrastada mais fundo naquele abismo de mágoa e cobrança. Naquela noite, Ana não chorou. Uma quietude fria se instalou em seu coração. Ela observou Pedro se afastar, sentar-se na sala, a luz da TV refletindo em seu rosto pensativo. O silêncio do apartamento era preenchido apenas pelo som do mar distante, um lamento que parecia espelhar a sua própria alma. Ana sentiu uma determinação crescer em seu peito. Ela havia aguentado demais, lutado demais, sofrido demais. Era hora de cuidar de si mesma, de encontrar um novo caminho, longe daquela dor e daquela pressão. O fim de seu casamento com Pedro era inevitável, e ela, pela primeira vez em muito tempo, se sentia estranhamente, perigosamente, livre para tomar uma decisão. O jogo havia mudado, e ela não seria mais a peça passiva.