A quietude daquela noite em Ilhéus, após o grito de Pedro e a dolorosa constatação de que o casamento havia chegado ao seu ponto de ruptura, não era um bálsamo para Ana. Era, pelo contrário, o silêncio pesado que precede uma tempestade, a calmaria antes do furacão. As palavras de Pedro – "Se você não quer ter filhos de jeito nenhum, então o que estamos fazendo juntos?!" – ecoavam em sua mente como um sino fúnebre. Não era mais sobre o desejo de ter filhos, era sobre a própria existência de seu relacionamento. Ele havia proferido o ultimato, e, naquele instante, Ana sentiu uma frieza gélida tomar conta de seu coração, sufocando as últimas brasas de amor e dor que ainda restavam ali.
"Eu estou cansada" essa frase passava várias e várias vezes, um loop infinito na mente da mulher atormentada. Ela se levantou da cadeira da varanda, onde havia permanecido por horas, assistindo às luzes da cidade de Ilhéus cintilarem à distância e ouvindo o lamento constante das ondas quebrando na areia. Seus movimentos eram lentos, deliberados, como se cada passo fosse pesado com o fardo de sete anos de casamento e quatro perdas devastadoras. A casa, que antes era o santuário de seus sonhos, agora parecia um mausoléu, um lugar onde a felicidade havia morrido. Pedro estava na sala, absorto em algum programa de televisão, ou talvez apenas fingindo estar, fugindo do silêncio que os envolvia. Ana passou por ele sem uma palavra, sem um olhar, sem um toque. Ela não sentia mais raiva, nem tristeza avassaladora; apenas um vazio denso e uma determinação fria. O primeiro lugar para onde Ana se dirigiu foi o armário do quarto de hóspedes. Abriu a porta e seus olhos pousaram na caixa de madeira lindamente decorada com molduras douradas, cuidadosamente guardada em uma prateleira superior. Era a caixa das lembranças, o santuário de um passado que parecia cada vez mais distante. Dentro dela, jaziam álbuns de fotos, cartas antigas, ingressos de cinema de seus primeiros encontros, e uma coleção de pequenas lembranças que marcavam sua jornada a dois. Havia também, em um canto, as roupinhas de bebê que ela havia comprado e outras que ela mesma tinha crochetado, com tanta esperança para cada uma das gestações perdidas – minúsculas peças de algodão, ainda com cheiro de novo ou perfume que ela mesma tinha feito, testemunhos silenciosos de sonhos desfeitos. Ela pegou a caixa, sentindo o peso de suas memórias em suas mãos, e a levou para a mesa da sala de jantar, sob a luz fraca do lustre, onde as sombras dançavam de forma melancólica. Com a caixa aberta à sua frente, Ana começou a tirar os álbuns de fotos. O primeiro era de seu namoro, com fotos de passeios pela orla, sorrisos bobos em frente ao Farol de Ilhéus, jantares românticos em restaurantes à beira-mar, uma em especial mostrava o farol da Barra no fundo. As fotos de Pedro, com seu sorriso fácil, barba por fazer e olhos gentis, preenchiam as páginas, lado a lado com seu próprio rosto, jovem e radiante. Ela folheou página por página, observando cada imagem, cada momento que eles haviam compartilhado. A dor não era mais a de uma ferida aberta, mas a de uma cicatriz antiga que começava a coçar, uma lembrança de um amor que se transformara em cinzas. Seu olhar parou em uma foto específica: o dia do casamento. Eles estavam na frente da pequena igreja colonial, em Alto da Conquista, com a cidade e o mar de Ilhéus ao fundo. Ana, vestida de noiva, com um sorriso que iluminava seu rosto. Pedro, ao seu lado, com o terno bem ajustado, olhando para ela com um amor que parecia transcender o tempo. A imagem era perfeita, um instante congelado de felicidade pura. "Como ele mudou tanto, o que aconteceu?" Um suspiro escapou de seus lábios, mas não de tristeza; era um suspiro de reconhecimento, de clareza. Naquele momento, Ana soube exatamente o que faria. Ela foi até a cozinha, pegou uma tesoura de ponta fina e afiada, e voltou para a mesa. Com as mãos firmes, ela pegou a foto do casamento. Seus olhos percorreram o rosto sorridente de Pedro por um último instante, e então, com uma precisão cirúrgica, ela começou a cortar. Não foi um corte aleatório, apressado pela raiva. Foi um ato deliberado, meticuloso. Ana cortou sua própria imagem da foto, deixando apenas o pedaço onde Pedro aparecia, sorrindo sozinho, olhando para o vazio onde ela deveria estar. A noiva havia desaparecido da imagem, mas o noivo permaneceu, intacto em sua felicidade unilateral. Ao terminar, ela olhou para o pequeno pedaço de papel em suas mãos, onde seu rosto sorria, e o rasgou em mil pedacinhos, que caíram sobre a mesa como flocos de neve, um quebra cabeça que nunca estaria inteiro de novo. Ela repetiu o processo com cada foto onde aparecia. As fotos de viagens, de jantares, de passeios na praia, de comemorações de aniversário. Uma por uma, Ana cortava a si mesma da imagem, deixando para trás apenas a figura de Pedro, sorrindo, abraçando o ar, ou olhando para um espaço vazio. Ele permaneceu em todas as fotos, um monumento à sua própria existência, enquanto ela se apagava, se desfazia, virava pó. A pilha de pedacinhos de fotos crescia na mesa, formando um montinho melancólico. Aquilo não era apenas um ato de vandalismo; era uma declaração. Uma declaração de que ela estava se retirando da vida dele, apagando sua presença, mas deixando a dele para trás, para que ele contemplasse o que havia restado. Enquanto cortava as fotos, Ana sentia uma estranha mistura de dor e alívio. Era doloroso reviver cada momento, cada memória, mas era tão libertador destruí-las. Era como se, ao se apagar das fotos, ela estivesse se desprendendo de um passado que a prendia, de uma dor que a consumia. A vingança, ela percebeu, não era apenas sobre Pedro; era sobre si mesma, sobre se libertar das amarras de um casamento que havia se tornado uma prisão. Quando terminou de cortar todas as fotos, a mesa estava coberta de pedacinhos de papel. Ela pegou um grande envelope e cuidadosamente colocou todas as fotos mutiladas dentro, junto com os pequenos pedaços onde seu rosto havia existido. Fechou o envelope, sem selar, e o colocou de lado. O próximo passo era mais prático. Ana foi até o quarto, pegou sua maior mala, uma mala de viagem que eles já tinham usado muito no passado, e começou a colocar suas roupas. Não levou tudo; apenas o essencial. Peças de roupa que ela mais gostava, alguns livros, seus materiais de pintura, documentos pessoais. Cada item era escolhido com um propósito, um símbolo de sua nova vida, que começaria em breve. As joias, os presentes caros que Pedro havia lhe dado ao longo dos anos, os deixou intactos, como se não tivessem mais valor para ela, ou como se fossem apenas um lembrete do passado que ela estava abandonando. Não era roubo, era um desapego. Enquanto arrumava a mala, a mente de Ana trabalhava febrilmente. Onde iria? Tinha algumas economias, o suficiente para se sustentar por um ano ou dois, três se economizasse o suficiente. Pensou na casa de sua irmã em Salvador, mas descartou a ideia. Precisava de distância, de um recomeço total, onde ninguém a conhecesse ou a conectasse a Pedro. Um lugar onde ela pudesse se reinventar, longe das sombras de Ilhéus, das ruas que conhecia desde criança e das pessoas que a olhavam com pena. Pensou em São Paulo, na agitação da cidade grande, onde poderia se perder na multidão e ser anônima. Mas a Bahia a chamava, a terra que a viu nascer e a ensinou a resistir. Ela pensou em ir para o interior, para uma cidade menor que não fosse Ilhéus, mas era isso que realmente queria? Estar presa em um lugar pequeno onde todos se conheciam desde novos?Contatos? Amigos? Não, ela queria recomeçar completamente sozinha. Com a mala pronta, Ana pegou seu celular e digitou uma mensagem para uma amiga advogada, Cecília, que morava em São Paulo. Era uma amiga de faculdade, confiável e discreta. “Cecília, preciso de um favor urgente. Muito urgente. Preciso de um papel de divórcio. O mais rápido possível. Te ligo amanhã para explicar os detalhes.” Ela enviou a mensagem, sentindo um alívio quase físico. A máquina da vingança havia sido posta em movimento, e não havia como parar. Antes de guardar o celular recebeu uma mensagem, pensando ser Cecília abriu com pressa mas ao invés de mensagens acolhedoras, recebeu uma foto de Pedro ajoelhado na frente de alguém, olhos desejosos olhavam para algo além da câmera. Sem mensagem, nada escrito para explicar a foto. Ana abriu o perfil de quem mandou e percebeu, Mariana, a amiga de infância e ex namorada de Pedro. "Eu devia ter desconfiado." Ana falou para si mesma. O último passo foi talvez o mais significativo. Ana foi até a gaveta da cômoda que eles compartilhavam no quarto principal. Lá, em um pequeno compartimento escondido, Pedro guardava os documentos mais importantes: as certidões de casamento, os documentos da casa, e uma pasta com os planos de vida que eles haviam feito juntos, incluindo algumas anotações sobre como eles construiriam a casa dos sonhos que um dia planejaram para abrigar a família que teriam. Ela pegou a certidão de casamento e a olhou por um momento, a tinta esmaecida do papel amarelado testemunhando sete anos de promessas. Com a tesoura que ainda tinha na mão, cortou a certidão ao meio, separando seus nomes, em um ato simbólico de divórcio. Ao lado da certidão cortada, ela colocou a a pulseira de contas que Pedro avia lhe dado na primeira semana de namoro. Em um pedaço de papel em branco, Ana escreveu uma única frase, com a caneta que Pedro usava para assinar seus projetos de engenharia: “Eu sei da verdade, e como você já escolheu, estou me retirando.” Ela dobrou o papel, a certidão cortada e a pulseira, e os colocou sobre a mesa da sala de jantar, em cima do envelope com as fotos mutiladas. Deixou-os ali, como uma oferenda amarga, um testamento final do que havia acontecido. Ainda era madrugada quando Ana terminou. Ilhéus dormia, mergulhada em um silêncio quebrado apenas pelo som das ondas. Ela pegou a mala, que parecia leve em suas mãos, apesar do peso de sua decisão. Abriu a porta da casa, que um dia havia sido seu lar, e olhou para trás uma última vez. A escuridão preenchia os cômodos, e ela não sentiu mais dor, apenas uma estranha sensação de paz e determinação junto com uma frieza mortal. Era a paz de quem havia finalmente decidido tomar as rédeas de sua própria vida, de quem havia encontrado uma nova força em meio à destruição. E a frieza de quem finalmente cansou de lutar. Sem olhar para trás ela se lembrou de Pedro, que provavelmente continuava na casa de Mariana, alheio a sua saída enquanto se banhava na luxúria, Ana saiu. A porta se fechou suavemente atrás dela, sem um único ruído, selando o destino de sete anos de casamento. Ela caminhou pelas ruas silenciosas de Ilhéus, sob o luar, seus passos firmes e decididos. Não havia lágrimas, não havia arrependimento e nem mesmo rancor de sua parte, ou ainda não, ela não tinha certeza de nada. Havia apenas a confirmação de que estava começando um novo capítulo em sua vida, um capítulo que ela mesma escreveria sem prestar atenção em quem estava em sua volta, e onde a vingança seria seu trabalho árduo, seu sucesso. Ela não sabia para onde exatamente iria, mas sabia que era para longe, muito longe de Pedro e de tudo o que ele representava, de tudo que até mesmo ela conhecia. Ela se sentia, de alguma forma, estar renascendo das cinzas, pronta para reescrever sua história em seus próprios termos, com a força de uma mulher que não tem mais nada a perder. A brisa salgada de Ilhéus parecia levar consigo os últimos resquícios de sua antiga vida, abrindo espaço para o que viria.