O passar das semanas em Ilhéus intensificou a dinâmica entre Ana e Pedro, transformando a quietude ponderada em uma persistência quase obsessiva por parte dele. Aquela primeira conversa sobre adoção, que inicialmente plantou uma semente delicada no coração de Ana, agora recebia a rega constante e a luz forte da determinação implacável de Pedro. Essa insistência, embora nascesse de um desejo genuíno de paternidade, tornava o crescimento da ideia inevitável, mas também dolorosamente conflituoso para Ana. Ele havia vislumbrado uma nova possibilidade para o futuro deles, um caminho para a felicidade parental que ele tanto ansiava, e para Pedro, aquele vislumbre era suficiente para alimentar uma força que ele não sabia que possuía. O desespero de ser pai começava a sobrepujar a sensibilidade.
A insistência de Pedro não se manifestava de imediato em gritos ou em discussões abertas, não à princípio. Era mais sutil, um fio de água persistente que, com o tempo, desgasta até a pedra mais sólida. Começou com pequenas frases inseridas casualmente na conversa, quase imperceptíveis, mas que deixavam a marca. “Sabe, Ana, vi uma matéria sobre um casal que adotou uma criança linda, e a felicidade deles era palpável, uma coisa que irradiava.” Ou “Lembra daquele filme que assistimos semana passada? A adoção transformou a vida daquela família de uma forma tão bonita, né?” Ele trazia revistas e livros sobre o tema para casa, deixando-os displicentemente sobre a mesa de centro da sala, ao lado do controle da televisão, ou na cabeceira da cama de Ana, como se fossem uma leitura qualquer, sem importância, mas com uma intenção clara e premeditada. A cada folheada de Ana, ele observava sua reação, buscando um sinal de que a ideia estava sendo absorvida. Ana percebia perfeitamente a tática de Pedro, e essa percepção a deixava cada vez mais tensa e irritada. Se por um lado ela estava genuinamente tentando, em sua intimidade e em seu próprio ritmo, abrir sua mente e seu coração para a adoção – explorando os sentimentos de maternidade por um caminho diferente –, por outro, a pressão sutil e constante dele a sufocava. Ela se sentia como um alvo, suas emoções mais vulneráveis sendo constantemente bombardeadas por uma ideia que ela ainda não conseguia abraçar por completo, ou pelo menos, não no ritmo que ele exigia. O que para Pedro era uma busca incessante por uma solução para o vazio que sentia, para Ana era uma invasão de seu espaço emocional, uma negação da dor que ainda a consumia, uma desconsideração por seu tempo de luto. Era como se ele estivesse acelerando o passo em uma corrida que ela não estava pronta para correr. As conversas sobre adoção se tornaram mais frequentes e menos casuais. O almoço, antes um momento de partilha leve sobre o dia, de pequenas amenidades, podia se transformar rapidamente em um monólogo de Pedro sobre os benefícios inquestionáveis da adoção, as crianças que precisavam desesperadamente de um lar, as estatísticas alarmantes de orfanatos superlotados na Bahia e no Brasil. Ele pesquisava incansavelmente histórias de sucesso, casos emocionantes de famílias que haviam encontrado a plenitude e a alegria através da adoção, e as compartilhava com Ana, sempre com um entusiasmo contagiante que ela achava cada vez mais difícil de corresponder, por mais que tentasse. “Ana, você viu esse vídeo que te mandei? É emocionante! Uma criança de uns três anos foi adotada depois de passar a vida inteira em um abrigo. O sorriso dela ao ver os novos pais pela primeira vez... é de cortar o coração de tão lindo e puro!” Pedro insistia, estendendo o celular para ela, os olhos brilhando com uma mistura de esperança e uma melancolia pelos pequenos desamparados que esperavam por um abraço. Ana, que estava lavando a louça e tinha as mãos molhadas e frias, apenas acenava com a cabeça, forçando um sorriso que não alcançava seus olhos. Ela sabia que a intenção dele, no fundo, era boa, que ele queria muito ser pai, e que a dor da infertilidade os afetava profundamente a ambos. Mas o ritmo frenético com que ele trazia o assunto à tona, a frequência com que ele a pressionava, mesmo que indiretamente, estava a esgotando física e mentalmente. Ela se sentia encurralada, como se não houvesse mais espaço para a sua própria dor, para o seu próprio processo de luto e para a complexidade dos seus sentimentos. “Pedro, por favor,” ela pediu uma tarde, sentada no sofá, a voz já um pouco mais cansada, enquanto ele tentava, com uma lista de argumentos, convencê-la a visitar um orfanato em Salvador, a cidade vizinha. “Eu preciso de um tempo. Eu estou pensando, estou pesquisando por conta própria, estou tentando me abrir para essa ideia, mas eu preciso do meu próprio ritmo. Você está me sufocando com tanta pressão.” Pedro se sentou ao lado dela, o entusiasmo que antes brilhava em seus olhos esmorecendo um pouco, dando lugar a uma frustração contida que se acumulava há semanas. “Mas Ana, o tempo está passando! Nós não somos mais jovens, estamos chegando aos trinta e dois, quarenta é logo ali. E os processos de adoção podem levar anos, você sabe! Se a gente não começar agora, pode ser tarde demais, e o sonho de ter filhos pode se esvair de vez. Não quero que a gente se arrependa depois por não ter tentado com mais afinco, por não ter aproveitado a oportunidade.” Ele gesticulava, a impaciência evidente em cada movimento. A cada dia que passava, a pressão aumentava em intensidade. Pedro se tornava menos sutil em suas abordagens, suas palavras mais diretas e carregadas de uma impaciência crescente. Ele começou a deixar de lado a cautela que antes usava, a ignorar os sinais claros de desconforto e exaustão de Ana. O desejo de ser pai se transformava, dia após dia, em uma necessidade premente, uma urgência que o cegava para o sofrimento latente dela. As noites eram preenchidas por silêncios pesados, interrrompidos por monólogos de Pedro sobre a adoção, sobre a solidão de não ter filhos, sobre a passagem inexorável do tempo e as chances que eles estavam perdendo. Ana, muitas vezes, fingia estar dormindo, virando-se para o lado oposto da cama, ou se refugiava no quarto de hóspedes, buscando um respiro daquela pressão constante que a asfixiava. Um dia fatídico, durante o café da manhã, o ambiente estava particularmente tenso e carregado. Ana estava com uma forte dor de cabeça pulsante, resultado de mais uma noite mal dormida, e sentia um cansaço que parecia impregnar seus ossos. Pedro, alheio ao estado físico e emocional dela, ou talvez optando por ignorá-lo em sua própria ansiedade, voltou a falar sobre um programa de TV que havia assistido na noite anterior, sobre a adoção internacional e as crianças órfãs em países subdesenvolvidos. “Ana, imagine só! Poderíamos adotar uma criança da África, um bebê com aqueles olhos grandes e inocentes, que precisa tanto de amor. Seria uma experiência incrível, um ato de amor puro, uma forma de dar uma vida a alguém que não tem nada!” Ele falava com os olhos brilhando, imaginando uma cena idílica, pintada com as cores da esperança que ele nutria, enquanto Ana tentava engolir o café que parecia amargo como fel em sua boca, cada gole um esforço. Ana baixou a xícara de porcelana com um baque surdo na mesa de madeira, o som ecoando no silêncio da cozinha como um tiro. Seus olhos se levantaram para Pedro, carregados de anos de frustração e dor. “Pedro, eu já disse que preciso de tempo! Por que você não entende?! Não é um interruptor que eu ligo e desligo o meu coração! Eu não consigo, não consigo agora! Você está me cobrando algo que eu não tenho forças para dar neste momento! É como me pedir para correr uma maratona com as pernas quebradas!” A voz dela estava embargada pela emoção, os olhos marejados de lágrimas de frustração e exaustão, que agora transbordavam, escorrendo por seu rosto. Pedro, que havia se levantado para pegar mais café e estava de costas, parou abruptamente. O brilho em seus olhos, antes de esperança, se transformou em uma irritação quase incontrolável. Ele largou o bule de café na pia com um ruído metálico e estridente, e sua voz, geralmente calma e controlada, elevou-se de forma inesperada, cortando o ar como uma lâmina. “MAS ATÉ QUANDO, ANA?! ATÉ QUANDO VAMOS ESPERAR?! ATÉ QUANDO VOCÊ VAI SE FECHAR PARA ESSA POSSIBILIDADE, SE NEGAR A VER O QUE ESTÁ BEM NA NOSSA FRENTE?! EU NÃO AGUENTO MAIS ESSA ESPERA AGONIZANTE! EU QUERO SER PAI! EU PRECISO SER PAI! VOCÊ NÃO ENTENDE QUE ISSO ESTÁ ME MATANDO TAMBÉM?! QUE EU TAMBÉM COM A AUSÊNCIA? VOCÊ SIMPLESMENTE NÃO CONSEGUE SEGURAR UM BEBÊ!” A voz de Pedro, alta e cheia de raiva reprimida, ecoou pela casa, rebatendo nas paredes da cozinha. Ana sentiu um arrepio gélido na espinha. Nunca antes ele havia gritado com ela daquela forma, com tanta intensidade, com tanto desespero e ressentimento contidos. Aquele grito não era apenas sobre a adoção; era sobre a frustração de sete anos de tentativas falhas, sobre a dor não processada de ambos, sobre o abismo que a infertilidade havia criado entre eles, um abismo que agora parecia intransponível. Ela sentiu como se uma parede tivesse desabado entre eles, revelando as rachaduras profundas e dolorosas que se formaram sob a superfície polida de seu relacionamento. As palavras dele, carregadas de impaciência, acusação e ressentimento, foram como um soco no estômago de Ana. Ela ficou em choque por um momento, paralisada, as lágrimas brotando incontrolavelmente em seus olhos, não apenas pela raiva dele, mas pela dor de ser tão profundamente incompreendida. Ele não via que a resistência dela não era teimosia ou egoísmo, mas uma ferida aberta, uma incapacidade de se reconectar com a ideia de maternidade após tantas perdas devastadoras. Ela se sentia culpada, mesmo sabendo que não o era. “Eu não sou um robô, Pedro!” Ana gritou de volta, a voz tremendo de indignação e mágoa, levantando-se e batendo as mãos na mesa com força. “Eu tive quatro abortos! Quatro! Você sabe o que é isso?! É ter a esperança arrancada de você, de novo e de novo, como se arrancassem a sua própria alma! É sentir seu corpo falhar, é sentir-se incompleta, incapaz, um lixo! E você vem me pressionar, me gritar, como se eu fosse a única culpada por não ter um filho?! Eu não aguento mais essa pressão, essa dor, essa falta de compreensão, você devia estar me apoiando não me pressionando!” As palavras se atropelavam, carregadas de anos de dor e frustração reprimidas que finalmente explodiam. A discussão se transformou em uma catarse dolorosa, onde ambos despejavam suas mágoas, ressentimentos e acusações. Pedro, com os olhos vermelhos e a face contorcida pela raiva, continuou a insistir, a acusar Ana de não querer tentar, de estar se fechando para a felicidade. Ana, por sua vez, sentia-se cada vez mais acuada e ferida, reafirmando sua necessidade desesperada de tempo, de espaço, de cura para as cicatrizes que as perdas haviam deixado. Aquele dia marcou uma ruptura irremediável. O grito de Pedro, a raiva explícita, a acusação velada de que ela era responsável pela falta de filhos, deixou uma marca indelével e profunda em Ana. A partir daquele momento, a insistência dele, antes apenas incômoda e sufocante, tornou-se algo insuportável, um lembrete constante de uma ferida que não cicatrizava e de uma pressão que a asfixiava, transformando o amor em um fardo pesado. O ambiente na casa se tornou pesado, carregado de uma tensão quase palpável. Os silêncios eram mais longos e menos confortáveis. Os toques eram mais hesitantes, os olhares mais evasivos, carregados de ressentimento e mágoa. Aquele lar em Ilhéus, antes um refúgio de amor e cumplicidade, agora parecia um campo de batalha silencioso, onde duas almas feridas lutavam não apenas contra a própria dor, mas também contra a incompreensão mútua. Ana começou a se afastar, a buscar refúgio em si mesma, em seu próprio mundo. Passava mais tempo na empresa, as vezes até mais tarde sentada em seu escritório, ou se perdia em longas e solitárias caminhadas pela orla, observando o mar que parecia refletir a imensidão de sua própria tristeza e a agitação de sua alma. Pedro, por sua vez, parecia não perceber o afastamento dela, ou talvez preferisse ignorá-lo, obcecado que estava com a ideia da adoção e com a urgência de ter um filho. Ele via a resistência de Ana como um obstáculo a ser superado, não como um sintoma de uma dor profunda e persistente, o começo de uma depressão. Ele a enxergava como a barreira para sua própria felicidade, em vez de sua parceira de dor. A insistência de Pedro, que antes era uma expressão de seu desejo de paternidade e de construir uma família, havia se transformado em uma fonte de atrito constante, um ponto de discórdia que corroía a essência do relacionamento. A cada nova tentativa de convencê-la, a cada artigo sobre adoção que ele deixava em sua mesa de cabeceira, Ana sentia um nó apertar em sua garganta, um peso no peito. Aquele sonho compartilhado de ter um filho, que deveria uni-los e fortalecer sua união, estava agora os separando, empurrando-os para lados opostos de um abismo emocional. O grito de Pedro havia sido um divisor de águas, o ponto sem retorno que revelava a fragilidade de um casamento construído sobre a areia movediça da dor não resolvida e das expectativas não realizadas. E Ana, pela primeira vez, começou a questionar, com uma certeza fria que a assustava, se aquele casamento, que tanto havia lutado para manter, ainda valia a pena, se ainda restava algo a ser salvo entre eles.