Capítulo 3

O ciclo de dias em Ilhéus seguia seu curso lento e constante, cada amanhecer tingindo o céu de cores vibrantes sobre o mar, cada entardecer trazendo a brisa morna e o cheiro inconfundível de maresia e de terra molhada. A cidade, com suas ruas calçadas e casarões antigos, parecia imune à tempestade silenciosa que se formava no pequeno lar de Ana e Pedro. Sete anos de casamento haviam moldado-os profundamente, tecendo-os juntos em uma trama complexa de amor, cumplicidade, sonhos compartilhados e, inescapavelmente, a dor persistente da infertilidade. Aquele era o outono de seu relacionamento, uma fase de introspecção onde as folhas da esperança teimavam em cair, apesar dos esforços conjuntos para mantê-las firmes nos galhos da árvore que era sua união. A casa, antes um santuário de expectativas e risadas contidas, agora parecia envolta em um silêncio que, por vezes, se tornava ensurdecedor, um eco das vozes infantis que nunca preencheram seus cômodos.

Foi em uma tarde preguiçosa de domingo, quando o sol ameno do final da tarde tingia de dourado a varanda da casa, que a conversa tomou um rumo diferente, inesperado e inevitável. Ana folheava distraidamente um livro de poesia de Cecília Meireles, seus olhos fixos nas palavras, mas sua mente navegando por águas turbulentas de pensamentos não ditos, medos e frustrações acumuladas. Pedro, absorto no cuidado de suas preciosas orquídeas no jardim, murmurava palavras de carinho às plantas, como se conversasse com velhos amigos, suas mãos calejadas trabalhando com a delicadeza de um cirurgião. O silêncio confortável que geralmente os envolvia, um manto de compreensão tácita que havia sido construído ao longo dos anos, foi então rompido pela voz hesitante de Pedro, que quebrou a quietude como uma pedra lançada em um lago calmo.

“Ana,” ele começou, a voz um pouco mais grave que o normal, chamando a atenção dela de seu devaneio literário. Ele se aproximou, sentando-se na beirada da varanda, com as mãos ainda sujas de terra e o aroma úmido da terra e das plantas, segurando um pequeno vaso de barro onde brotava, de forma promissora, uma nova muda de orquídea. “Você já pensou... já pensamos em outras maneiras de construir a nossa família? Em um futuro diferente, talvez?”

Ana ergueu os olhos do livro, um leve franzir na testa que denunciava uma ponta de apreensão imediata. Ela sabia aonde aquela conversa, mais cedo ou mais tarde, acabaria por levar. Era um tema que havia sido cuidadosamente evitado por ambos, uma ferida ainda em carne viva, dolorosa demais para ser tocada, uma espécie de pacto silencioso de que não iriam revisitar aquela dor, aquele fracasso repetido. Era um tabu que pairava sobre eles como a garoa fina e persistente que precede uma tempestade em Ilhéus, e que agora, Pedro ousava quebrar.

“Pedro, já conversamos sobre isso,” respondeu ela, a voz carregada de um leve, quase imperceptível, tom de defensiva. Era uma resposta automática, um escudo que ela erguia para se proteger da inevitável onda de emoções que a discussão traria consigo. Sua intuição lhe dizia que aquela conversa seria diferente das anteriores, mais profunda e exigente.

“Eu sei, meu amor,” ele suspirou, um ar pesado escapando de seus pulmões, carregado de anos de anseio e frustração. Colocou o vaso sobre a mesa de centro de madeira rústica, um presente de aniversário que ela havia lhe dado anos atrás, um símbolo de uma época mais leve. “Mas isso foi há muito tempo, Ana. E... bem, as coisas não mudaram. Nós tentamos tanto, com tanta esperança e fé. E a dor de cada perda...” Ele não precisou completar a frase. A lembrança vívida dos quatro abortos espontâneos, cada um um punhal cravado na alma, uma perda de um futuro imaginado, pairava entre eles como um espectro, uma nuvem escura que ofuscava a luz do sol de Ilhéus. O semblante de Pedro se contraiu, e Ana viu a dor em seus olhos, a mesma dor que a consumia, mas que ele, como homem, parecia ter menos permissão para expressar abertamente.

“E você acha que adotar seria diferente?” Ana perguntou, a voz agora um pouco mais áspera, um fio de ressentimento sutil se mesclando à tristeza. A pergunta dela não era apenas retórica; era carregada de uma profunda insegurança e um medo avassalador de falhar novamente. “Você acha que amar um filho que não nasceu de mim seria mais fácil? Que a dor de tudo o que passamos, de todas as perdas, desapareceria como mágica, como se nunca tivesse existido?” O tom de sua voz revelava a profundidade de sua ferida, a impossibilidade de conceber um amor materno que não fosse gerado em seu próprio ventre. Para ela, a maternidade estava intrinsecamente ligada à gestação, à conexão física e biológica, à experiência única e inesquecível de sentir uma vida crescer dentro de si. A ideia de uma maternidade diferente era quase uma traição ao sonho que ela havia carregado e perdido tantas vezes, os traumas não a deixavam ver outras opções.

Pedro pegou a mão dela entre as suas, as mãos calejadas de engenheiro agrônomo, mas surpreendentemente suaves, buscando as dela com uma ternura quase suplicante. Os olhos castanhos, geralmente tão cheios de vida e otimismo, agora carregavam uma melancolia que se refletia nos dela, uma profunda tristeza. “Não é isso, Ana. Nunca seria a mesma coisa, eu sei, e ninguém está dizendo para você esquecer a dor das perdas. Não é sobre substituir um filho que perdemos. Mas seria amor, do mesmo jeito. Um amor diferente, talvez, com suas próprias nuances e desafios, mas igualmente poderoso, verdadeiro e transformador. Seria dar um lar, uma família, para uma criança que precisa desesperadamente. Seria ter um filho para amar, para cuidar, para ver crescer, para dar e receber carinho, para ensinar sobre a vida e sobre a Bahia. Não é sobre substituir o que perdemos, mas sobre construir algo novo e igualmente valioso.”

Ana retirou a mão, um gesto quase inconsciente de autoproteção, de se encolher para proteger sua alma. Levantou-se da cadeira e caminhou até a beirada da varanda, observando o movimento suave das folhas das árvores de cajueiro que adornavam o jardim, balançando com a brisa. A ideia da adoção sempre lhe pareceu distante, quase abstrata, uma alternativa que não preenchia o vazio específico que a ausência que seus filhos perdidos haviam criado dentro dela. Era como se faltasse uma parte fundamental da experiência materna que ela idealizara, a ligação visceral da gestação, o sangue que corria nas veias, a herança genética que ligaria o passado ao futuro. Para ela, o amor de mãe nascia no útero, se fortalecia com cada chute, cada movimento, cada batida de coração ouvida no ultrassom. A adoção parecia uma rota alternativa, um desvio, mas não o caminho principal, e a dor de não poder seguir o caminho principal ainda a consumia, corroendo-a por dentro.

“Eu não consigo, Pedro,” ela murmurou, a voz embargada pela emoção e pela dor, quase um sussurro que se perdia na brisa. “Não consigo imaginar amar um filho que não é meu sangue, que não tem o meu rosto, o seu sorriso. Parece egoísmo, eu sei, e me sinto mal por pensar assim, por ser tão fechada. Mas é o que eu sinto, no fundo do meu coração, uma barreira que eu não consigo ultrapassar, se fosse antes... de tudo.” Uma lágrima solitária escorreu por sua face, revelando a angústia que a acompanhava incessantemente, uma dor que não se manifestava em gritos, mas em um lamento silencioso.

Pedro levantou-se e se aproximou dela, colocando as mãos em seus ombros, um gesto de conforto que, apesar de simples, trazia uma força silenciosa, uma tentativa de transmitir seu apoio. “Não é egoísmo, meu amor. Eu entendo a sua dor, e eu sei que essa é uma ferida profunda em você, uma perda que marca. Mas pensa um pouco, Ana. Não seria também egoísmo negar a uma criança a chance de ter uma família por causa do nosso medo, da nossa dor? Há tantas crianças precisando de um lar, de amor, de uma chance na vida, de um futuro. E nós temos tanto amor para dar, Ana, tanto carinho acumulado, tanta experiência de vida para compartilhar. Esse amor precisa encontrar um caminho, precisa de um lugar para florescer.”

As palavras dele atingiram Ana como um raio em um dia de sol. Uma perspectiva que ela nunca havia considerado com tal profundidade, com tamanha responsabilidade moral. Sua dor a havia cegado para a possibilidade de que a maternidade e a paternidade poderiam vir de outras formas, que o amor poderia se manifestar em laços que não fossem apenas os biológicos, mas também os do coração e da alma. A ideia de que seu sofrimento pudesse, de alguma forma, impedir a felicidade de uma criança, soou como um sino em sua mente, perturbando sua visão antes tão fixa e intransigente.

“Eu preciso de tempo, Pedro,” ela murmurou, afastando-se um pouco dele e voltando a se sentar na cadeira, abraçando os próprios joelhos, numa postura defensiva e frágil. “Preciso pensar. É muita coisa para digerir de uma vez, para processar. É uma mudança de paradigma, de tudo o que eu sempre sonhei.”

Pedro assentiu, compreendendo. Ele sabia que aquela era uma conversa delicada, um terreno minado que exigia tempo, reflexão e, acima de tudo, respeito pelo processo interno de Ana. Ele não podia forçá-la, apenas apresentar a ideia e esperar que ela germinasse em seu próprio tempo. Mas a semente da dúvida havia sido plantada no coração de Ana, uma pequena fissura na muralha de sua resistência, e ele sentia que, desta vez, ela não seria facilmente descartada, mas que a ideia persistiria em sua mente, ainda que lutasse contra ela.

As semanas que se seguiram foram marcadas por um silêncio tenso, mas diferente do anterior. Não era um silêncio de tabu, de evitação, mas de reflexão profunda e dolorosa. Pedro evitava tocar diretamente no assunto, esperando que Ana processasse seus próprios sentimentos. Ele observava, com uma paciência quase infinita, cada mudança em seu semblante, cada suspiro, cada momento de introspecção. Ana, por sua vez, mergulhou em seus pensamentos, revivendo as dolorosas perdas com uma nova perspectiva, uma tentativa de ressignificá-las. Questionava suas próprias convicções, a rigidez de sua definição de maternidade, a exclusividade do laço de sangue. Começou a ler artigos sobre adoção em sites especializados, em blogs de famílias que haviam encontrado a felicidade e a plenitude através dessa forma de construir uma família. Buscava relatos, experiências de outras mulheres que sentiam o mesmo que ela, tentando abrir sua mente e seu coração para uma possibilidade que antes lhe parecia impensável, quase uma rendição, e até um pouco assustadora.

Em seus momentos de solidão, durante as longas tardes em que Pedro estava no campo ou em reuniões de agronomia na cidade, Ana se pegava imaginando o rosto de uma criança. Não mais o rosto idealizado que ela havia sonhado para seus filhos biológicos, com traços dela e de Pedro, mas um rosto genérico, um pequeno ser que precisava de amor e cuidado, de um lar, de uma família. A ideia, antes tão abstrata e distante, começava a ganhar contornos mais nítidos em sua mente, despertando nela uma ponta de curiosidade, de interesse genuíno, talvez até mesmo de esperança. Mas o medo ainda era forte, a insegurança de não conseguir amar plenamente um filho que não carregasse seu sangue, que não tivesse seus traços ou os de Pedro. A ideia de falhar novamente, de não ser uma mãe completa e devotada, assombrava-a como um fantasma.

Pedro observava a luta interna de Ana em silêncio, oferecendo seu apoio e carinho de outras formas, sem pressioná-la diretamente. Preparava seus pratos favoritos, como o moqueca de peixe que ela tanto amava, com seu toque de dendê e coentro, a surpreendia com flores colhidas do jardim, um buquê colorido de hibiscos e jasmins perfumados, e a convidava para longos passeios à beira-mar ao entardecer, quando a luz do sol se dissolvia no horizonte em um espetáculo de cores e as estrelas começavam a pontilhar o céu. Ele sabia que não podia forçá-la a aceitar a ideia da adoção, mas esperava que, com o tempo, ela pudesse enxergar essa possibilidade com outros olhos, com um coração mais aberto e menos ferido.

Em uma noite de lua cheia, a lua prateada banhava o quintal, criando sombras dançantes que se moviam suavemente com a brisa marinha. Enquanto jantavam na varanda, iluminada apenas pelas velas que Pedro havia acendido, criando uma atmosfera íntima e acolhedora, ele quebrou o silêncio novamente. Sua voz era suave, quase um sussurro, mas carregada de uma urgência contida, uma paixão que ele não podia mais esconder, um anseio profundo que transbordava de sua alma.

“Ana, meu amor,” ele começou, segurando a mão dela sobre a mesa, os dedos entrelaçados em um gesto de conexão. “Eu sei que você está pensando, que está processando tudo isso. E eu respeito o seu tempo, cada segundo dele, cada dor que você sente. Mas eu preciso te dizer, preciso que você entenda... esse desejo de ser pai está cada vez mais forte em mim, Ana. Ver meus amigos com seus filhos crescendo, ouvir suas histórias de bagunça, de aprendizado, de amor incondicional... sinto que está faltando algo essencial em nossa vida, um pedaço que só um filho pode preencher. A minha alma anseia por essa paternidade, por essa nova fase, por essa nova forma de amor.”

Ana apertou a mão dele, sentindo a sinceridade e a profundidade em suas palavras. Ela sabia que Pedro também sofria com a ausência de um filho, que aquele desejo era tão profundo e doloroso para ele quanto a dor da perda era para ela. Ele havia sido sua rocha durante todas as suas perdas, seu pilar de força e consolo, e agora era a vez dela de reconhecer a dor dele, de tentar se mover por ele, por eles.

“Eu sei, Pedro,” ela respondeu, a voz embargada pela emoção e pela tristeza, não apenas por si, mas por ele. Uma nova lágrima escorreu, mas desta vez não era apenas de tristeza egoísta, mas de uma mistura de compaixão e apreensão pelo futuro deles. “E eu sinto muito por não conseguir te dar isso da forma como você sempre sonhou, da forma como a gente sempre sonhou, da forma que parecia tão natural para todos os outros casais.”

“Não é sua culpa, Ana,” ele retrucou imediatamente, um calor em seus olhos que dissipava qualquer vestígio de acusação. “Nunca foi, e nunca será. A vida é assim, às vezes nos tira o que mais desejamos de forma inexplicável. Mas nós precisamos encontrar um caminho, Ana. Juntos. Não podemos simplesmente desistir de ter uma família, de compartilhar o amor que temos. Se não podemos ter um filho de sangue, podemos ter um filho de coração. O amor de pai e mãe não está apenas no DNA, está na dedicação, no carinho, na presença, no cuidado.”

Naquela noite, sob a luz prateada da lua e o murmúrio distante e calmante das ondas do mar de Ilhéus, a conversa se estendeu por horas. Ana compartilhou seus medos mais íntimos e suas dúvidas mais profundas, a dificuldade de se imaginar mãe de outra forma que não a biológica, a apreensão de não sentir o amor incondicional que ela acreditava vir apenas da conexão sanguínea. Pedro expressou seu desejo de paternidade com uma clareza e uma emoção que a tocaram profundamente, sua crença inabalável de que o amor não se limita aos laços de sangue e sua preocupação com o passar do tempo, com a vida que corria sem que eles realizassem aquele sonho que parecia o propósito de suas vidas.

Ao final da conversa, nenhuma decisão havia sido tomada, nenhuma promessa firme fora feita. Mas um novo entendimento havia surgido entre eles, uma ponte construída sobre as águas turbulentas da dor e da frustração. Ana reconhecia a profundidade do desejo de Pedro, um desejo tão legítimo e intenso quanto o seu próprio. E Pedro compreendia a complexidade e a profundidade dos sentimentos de Ana, a fragilidade de sua alma ferida. A semente da dúvida havia germinado, abrindo espaço para uma nova perspectiva, ainda que hesitante, incerta e assustadora. O caminho da adoção ainda parecia distante e cheio de obstáculos a serem superados, mas pela primeira vez, Ana não o rejeitava completamente. A possibilidade pairava no ar, como uma brisa suave que soprava do mar de Ilhéus, trazendo consigo uma nova esperança, misturada à apreensão do desconhecido, um convite silencioso para um futuro que eles ainda não conseguiam enxergar totalmente, mas que parecia menos impossível agora.

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