Capítulo 03

Kaelen Aurelius 

A cidade estende-se aos meus pés, um tapete de luzes tremulantes sob a noite profunda. Daqui, do alto da torre que me serve de escritório e fortaleza, Nova Iorque parece quieta, quase domada. O Central Park respira à distância, um pulmão verdejante e impecável — tal como tudo que tocamos. Limpamos esta cidade, purificamos seu ar, contivemos sua decadência. Sem nós, este planeta estaria se afolgando em seu próprio lixo, em sua própria gança. E boa parte da raça humana não estaria se esbanjando em riquesa e suas mansões se fosse pos nós. 

Levo à boca mais um gole de café. A bebida é amarga, terrosa, profundamente humana. Um dos poucos prazeres que admito ter adotado deste mundo. Talvez porque, apesar do sangue que corre nas minhas veias, a Terra seja o único lar que conheci. Nasci aqui, mais de sessenta anos após a Grande Queda. Meus pais estavam entre os primeiros casais a conceber em solo terrestre — e, milagre dos milagres, conseguiram gerar dois filhos. Algo tão raro quanto precioso.

A maioria do nosso povo não é tão fértil. A maioria luta para gerar sequer um herdeiro. Muitos já tentaram com humanas, na esperança de que o cruzamento pudesse reacender nossa linhagem. Mas os bebês não vingam — ou nascem com órgãos tão frágeis que não resistem além de algumas horas. Cada perda é uma facada. Cada fracasso, um lembrete: podemos dominar um planeta, mas não podemos dominar nosso próprio fim. E que talvez ter saído do nosso planeta só atrasou em um século a nossa extinção. E por mais que sejamos avançados em tecnologia, armamento e inteligência, de nada nos vale tudo isso se não conseguimos nos multiplicar, a população humana é composta por cerca de 5 bilhões de pessoas, número esse que dete um decresssimo de 3 bilhões nos últimos anos, mas continua sendo um número alto comparado aos cerca de 1 milhão e meio de aurelianos no planeta terra. 

E é por isso que estou aqui, ás quatro horas da madrugada, com uma xícara de café humano nas mãos e um peso imenso sobre os ombros.

Não se trata apenas de governar. Trata-se de assegurar que não seremos a última geração de Aurélios. Não depois de tanto esforço para encontrar um refúgio — este planeta frágil, ingênuo, mas viável. Um dos poucos onde nosso corpo não adoece, onde nosso sangue ainda corre com certa normalidade.

Meus olhos dourados fixam-se nas luzes distantes. Lá embaixo, milhões de humanos vivem suas vidas pequenas, ignorantes da espada que pende sobre nossas cabeças. Eles nos odeiam, e com razão. Tomamos o mundo deles. Controlamos sua economia, suas estruturas, suas vidas. Mas o que mais me inquieta não é o ódio deles — é a nossa dependência.

Precisamos deles. Não apenas como força de trabalho, mas como parte de um ecossistema que ainda não compreendemos por completo. E, secretamente, talvez até como esperança.

A porta do escritório abre-se suavemente. É Althea, minha assistente, também Aurélia, com um dossiê sob o braço.

— Senhor Aurelius, os relatórios demográficos chegaram. A taxa de natalidade caiu mais 2% este trimestre.

Recebo as folhas de suas mãos. Os números dançam diante de meus olhos, cada porcentagem uma sentença.

— E as pesquisas com as fêmeas humanas?—  , pergunto, sem levantar o olhar.

— Continuam inconclusivas. Os corpos delas rejeitam nossos fetos como se fossem uma doença.

Uma pontada de frustração percorre meu peito. Tanta inteligência, tanto poder, e ainda assim falhamos no mais básico: perpetuar nossa espécie.

— Obrigado, Althea. Pode retirar-se. Pode ir embora, não precisarei de você nos próximos dias. 

Fico sozinho novamente, a xícara vazia agora fria entre meus dedos. Há uma ironia cruel nisso tudo: conquistamos um planeta, mas não conquistamos nosso direito ao futuro.

E então, num daqueles raros momentos em que permito que a humanidade dentro de mim fale mais alto, uma pergunta insinua-se:

Será que a salvação não está na pureza do nosso sangue, mas na mistura que tanto rejeitamos?

Desvio o pensamento. É perigoso. É herege.

Mas, pela primeira vez, não o descarto completamente.

Afinal, o que não faríamos para sobreviver?

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