O dia começou como qualquer outro no refúgio: o som dos animais ao fundo, o cheiro da terra misturado com o frescor da vegetação. Eu seguia minha rotina, guiando os funcionários e lidando com as urgências do lugar.
A primeira tarefa foi verificar os enclosures dos mamíferos, com atenção especial à saúde do filhote de onça que chegara recentemente. Meus passos eram firmes, mas a mente, inquieta. Algo insistia em não me deixar concentrar.
Léo.
Ele estava em uma missão oficial para ajudar na recuperação de um animal, mas a tensão entre nós parecia nunca diminuir. Surgia silencioso, observando de longe, como se quisesse algo que eu não podia — ou não queria — dar.
Quando ele se aproximou, sua voz baixa cortou o ar:
— Então, o filhote de onça está se adaptando bem?
Senti um desconforto que tentei esconder, mantendo a compostura.
— Está melhorando, Léo. Mas precisamos monitorar a alimentação — respondi, evitando encarar seus olhos. Sabia que qualquer contato visual poderia me desestabilizar, como sempre acontecia.
Ele deu um passo à frente, prestes a falar mais, quando a campainha soou: o veterinário havia chegado. A interrupção foi um alívio.
Mais tarde, no meu escritório, senti o peso da presença dele em cada sombra da sala. Tentei focar nos papéis a serem assinados, nas campanhas futuras para angariar fundos, mas não consegui afastar os pensamentos. Ele me desafiava a cada olhar — familiar e estranho ao mesmo tempo.
No fundo, sabia que nunca realmente saímos daquela relação. Apesar de tudo que tentamos, o que temos agora é uma cordialidade frágil, quebrada pelo passado que ainda nos acompanha.
Tentei focar no trabalho, mas uma voz insistente ecoava em minha mente: “Nunca saímos realmente um da vida do outro.” Cada vez que fechava os olhos, via o rosto dele, a expressão que tinha no refúgio, a tensão que ainda pairava entre nós.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, Luke enfrentava sua rotina corrida, mas sua mente também estava longe dali. A agenda estava lotada, como sempre: fotos, entrevistas, gravações.
Ele estava em uma das locações para uma sessão de fotos, esforçando-se para manter o sorriso perfeito enquanto a câmera capturava a imagem ideal. Porém, no fundo, sua atenção estava presa a ela.
O encontro no refúgio parecia ter despertado algo nele — uma curiosidade, uma sensação que ainda tentava entender. A forma como ela comandava tudo com facilidade, a distância que mantinha, e ainda assim, aquela proximidade silenciosa.
Enquanto sua equipe o chamava para mais um compromisso, Luke pegou o telefone, confirmou a próxima tarefa, mas não conseguia afastar o pensamento que insistia em invadir sua mente:
“Ela tem algo a mais.”
Quando desligou, um peso tomou conta dele — não o cansaço da rotina, mas a sensação de que algo muito importante estava acontecendo longe dali, algo que ele ainda não conseguia compreender direito.
Do outro lado da cidade, eu estava no meio de uma reunião de rotina quando minha chefe de marketing entrou, a expressão já carregada de frustração.
A luz atravessava as frestas da janela do escritório enquanto eu digitava algo no computador, mas meus olhos estavam longe dali. Estavam no dia anterior — na trilha, no mirante, na sala de parto improvisada. Estavam nele.
Suspirei e forcei os dedos a continuarem o relatório, como se isso fosse suficiente para expulsar Luke Bennett da minha cabeça. Não era.
— Jade! — a voz de Emma rompeu o silêncio, entrando com o celular na mão e um olhar de reprovação divertida. — Você tá me dizendo que passou o dia todo com Luke Bennett e não tirou uma foto sequer? Nem um story, nada?
— Bom dia pra você também — respondi, sem tirar os olhos da tela, tentando manter o tom indiferente.
Emma bufou e se jogou na poltrona em frente à mesa.
— Jade... eu sei que você odeia esse tipo de coisa, mas sabe o quanto um post com ele poderia nos render? A visibilidade, as doações, os novos visitantes...
— Ele não é uma atração, Emma. Veio conhecer o refúgio, não virar garoto-propaganda.
— E se ele quisesse ajudar? Você perguntou?
Parei de digitar e levantei os olhos, encarando a amiga com um cansaço que ia além do físico.
— Eu só... não pensei nisso. Não parecia o momento certo.
Emma cruzou os braços, sem perder o tom leve.
— Temos que dar um jeito de trazê-lo de volta. Nem que seja só pra uma foto.
— Uma dúzia de artistas passam por aqui toda semana, Emma. Não precisamos dele.
Emma soltou uma gargalhada, inclinando-se na cadeira como se tivesse ouvido a melhor piada do dia.
— Você tá falando sério? Nenhum dos artistas que passam por aqui é do nível dele, Jade. Esse homem tem mais seguidores que a população de alguns países. Se ele espirrar aqui, tem gente fazendo campanha pra adotar a floresta inteira!
Dei um leve sorriso, balançando a cabeça.
— Isso é tão ridículo.
— Ridículo... mas funcional. E se ele voltar, faz o favor de tirar uma foto. Com você de preferência, porque, convenhamos, você na foto faz a audiência dobrar.
— Emma...
— Tá, parei. Mas pensa com carinho, tá?
Desviei o olhar e deixei o silêncio cair por um instante. No fundo, sabia que Emma tinha razão. E talvez... só talvez... não fosse uma ideia tão ruim assim.
Emma saiu do escritório balançando a cabeça, ainda rindo sozinha. A porta se fechou atrás dela com um clique leve, deixando o silêncio preencher o ambiente novamente.
Permaneci parada por alguns segundos, encarando o monitor, como se ponderasse se voltava ao relatório... ou não.
Com um suspiro resignado, deslizei a gaveta, peguei o celular e digitei o nome dele na barra de busca do I*******m.
Luke Bennett.
O perfil apareceu imediatamente, verificado, com números que pareciam irreais. Ela arqueou uma sobrancelha.
O sorriso de Jade poderia atravessar distâncias — e, naquele instante, era a única coisa que conseguia alcançar Luke Bennett, mesmo estando do outro lado da cidade, em um estúdio de fotografia, onde ele lutava para manter o foco.
— Luke, vira só um pouquinho o rosto... isso, agora relaxa o maxilar... Perfeito!
— Tá tudo bem? — a fotógrafa perguntou, abaixando a câmera com um olhar curioso. — Você tá com uma expressão ótima, mas parece... longe.
Luke ia responder qualquer coisa. Uma piada, talvez. Mas no lugar disso, apenas virou o rosto na direção contrária, como se o estúdio tivesse desaparecido por um instante.
Click.
Luke virou-se para ela, ligeiramente confuso.
Ela virou a tela da câmera na direção dele.
Ele olhou por alguns segundos. Depois sorriu de novo — mais discreto dessa vez — e soltou, quase sem pensar:
— Não parecia mesmo. — A fotógrafa riu, mas com gentileza. — Onde quer que você estivesse... devia ser um lugar bom.
Ele ficou olhando para a tela como se enxergasse algo invisível para os outros.
Um lugar onde as máscaras caem, onde ele pode simplesmente ser.