Os dois caminharam até o mirante. A estrutura era simples, feita de madeira envelhecida pelo tempo, com uma cerca baixa e placas informativas desbotadas pelo sol. O céu já começava a se tingir de tons quentes — dourado, âmbar, laranja queimado — espalhando luz sobre o vale como uma manta viva.
Ela se apoiou na cerca, o olhar atento varrendo o horizonte. Ele permaneceu um passo atrás, respeitando o espaço, mas observando mais ela do que a paisagem.
— Se tiver sorte, pode ver alguns cervos ali, perto da linha das árvores. Mas eles são discretos — disse, apontando com o queixo.
Ele seguiu a direção indicada.
— Você fala como se soubesse exatamente onde cada animal vai aparecer.
Ela deu um sorriso breve, sem tirar os olhos do vale.
— Não é adivinhação. É convivência. Quando você passa tempo suficiente com eles, começa a perceber os ritmos, os hábitos… Cada um tem seu jeito de existir.
— E você memoriza tudo isso?
Ela deu de ombros, como se fosse óbvio.
— Não é decorar. É como lembrar do que alguém da sua família gosta ou não gosta. Você presta atenção porque se importa.
Nesse momento, um pequeno grupo de queixadas surgiu à distância, cruzando o campo em fila. Logo atrás, duas emas caminhavam lentamente entre arbustos baixos, bicando o solo com tranquilidade.
Ela apontou, animada:
— Aquela maior é a fêmea dominante. Elas têm uma hierarquia interessante. Não é o macho que lidera. São elas que mandam — comentou com um sorrisinho.
Ele sorriu também, encantado.
— Parece até você, mandando por aqui.
Ela arqueou uma sobrancelha, ainda sem desviar o olhar.
— Engraçado... Não costumo ver muito senso de humor em astros de cinema em retiros silenciosos.
— A maioria não me vê fora das câmeras.
— Ainda bem que aqui não tem câmeras — disse ela, mas agora a voz estava mais suave.
Ele se aproximou um pouco, apoiando-se na cerca ao lado dela.
— Gosto de como você fala sobre os animais. Dá pra ver que você... vive isso.
Ela o olhou, e dessa vez havia menos defesa no olhar.
— Eu não saberia viver de outro jeito.
O silêncio que veio depois não era incômodo. Ela então falou, quase pensando alto:
— Daqui a pouco começa a hora dos tatus e das raposinhas. Quando o sol baixa mais... Eles preferem o frescor.
Ele sorriu, genuinamente interessado.
— E você consegue ver tudo isso, todos os dias?
— Nem sempre. Mas quando consigo, é como se o mundo parasse por alguns minutos.
Ele assentiu devagar, absorvendo cada palavra — e talvez começando a entender por que aquele lugar mexia tanto com ele.
De repente, um movimento brusco perto da linha das árvores atraiu sua atenção. Um grupo de pequenos roedores correu em disparada. Antes que ele entendesse o que estava acontecendo, uma silhueta ágil emergiu de um arbusto: uma raposa-do-cerrado, veloz e certeira.
Em segundos, ela saltou sobre um dos roedores e o abateu com um golpe seco.
Ele deu um passo instintivo para trás, olhos arregalados.
— Meu Deus...
Ela apenas observava, os olhos firmes e serenos.
— A vida aqui é assim. Cada um cumpre seu papel.
Ele inspirou fundo, ainda processando.
— Impressionante... e cruel.
Ela se virou para ele, o olhar firme:
— A natureza não se preocupa com nossa ideia de justiça ou bondade. Ela tem suas próprias regras.
Ele ficou em silêncio por um momento, e então perguntou, quase num sussurro:
— Isso é… normal?
Ela assentiu com serenidade.
— É. É só a natureza sendo o que é.
Ele desviou o olhar, a expressão ainda abalada.
— Acho que não esperava ver isso assim, tão de perto. Tudo é tão bonito aqui… e de repente…
— A beleza e a crueldade andam juntas na natureza — disse ela, virando-se levemente para ele. — Não existe equilíbrio sem contraste. Cada predador aqui mantém o ecossistema vivo, funcional. Não é maldade. É sobrevivência.
Ele a encarou, como se aquelas palavras revelassem mais sobre ela do que sobre a raposa.
— Você fala disso com tanta convicção.
— Porque é verdade. E porque aprendi que não dá pra amar só o lado bonito das coisas. A gente precisa aceitar o ciclo inteiro.
O silêncio que se instalou era mais denso, mas confortável. Ele voltou a olhar para o campo — agora com olhos diferentes. Pela primeira vez, talvez, vendo aquele lugar não como cenário, mas como um organismo vivo, selvagem e pulsante.
Ela se virou para ele com um sorriso leve.
— Se quiser, a gente pode seguir por uma trilha mais fechada. Talvez você encontre algo mais… cinematográfico.
Ele riu, grato pelo alívio que ela oferecia ao clima.
— Depois dessa aula, acho que estou pronto pra tudo.
— Não se empolga. Você ainda não viu o urubu que rouba lanche da equipe.
Eles riram, e seguiram pela trilha, o som das folhas secas sob os pés se misturando ao início de uma nova conexão que, como tudo ali, crescia com força, mas no tempo certo.
Depois de alguns minutos de caminhada silenciosa, ele falou:
— Então, você passou a maior parte da vida aqui?
Ela o olhou de lado, passos firmes, mas mais leves agora.
— Aqui e em outros cantos. O refúgio é meu lar, mas eu sempre me movi. Cresci mudando de cidade, de estado. Sempre com a sensação de que um lugar nunca era o suficiente, sabe? Sempre achando que precisava ir além.
— E quando isso mudou? — ele perguntou.
Ela suspirou, como se buscasse dentro de si a resposta exata.
— Quando entendi que o único lugar que fazia sentido... era aqui. Isso veio depois da faculdade, quando comecei a trabalhar com animais. Eles não ligam de onde você veio ou o que você faz. Eles só querem ser tratados com justiça.
Ele sorriu, quase em compreensão.
— Eu também tive que aprender isso. Não é fácil. Fiquei conhecido por fazer escolhas... impulsivas.
Ela o observou, captando a vulnerabilidade no tom dele.
— Tipo o quê?
— Tipo viver conforme o que esperavam de mim. Eu ia só seguindo o fluxo. Depois percebi que estava esquecendo quem eu era. Isso... e os paparazzi.
Ela sorriu, mais por empatia do que por humor.
— Imagino que seja pesado. Mas é curioso... porque você parece mais perdido do que eu.
Ele riu, e por um momento, o riso pareceu curar alguma coisa dentro dele.
— Talvez eu esteja no caminho de me encontrar. E esse lugar… você... estão me ajudando nisso.
Ela não respondeu de imediato, mas o olhar suavizou. Continuaram a caminhar em silêncio, entre folhas secas e o canto de pássaros distantes.
Ao chegar no alto de uma colina, ela fez um gesto com a mão.
— Se confiar em mim, tenho um lugar que você vai gostar.
Ele a seguiu sem hesitar. Caminharam por mais alguns minutos até alcançarem um ponto alto, de onde se via o lago lá embaixo. Ela se afastou um pouco para que ele tivesse a vista completa.
O lago refletia o céu tingido de cores vibrantes. As sombras das árvores se estendiam sobre a água como pinceladas em uma tela viva.
Ele parou, surpreso.
— Uau...
Ela observava sua reação com um sorriso contido.
— Achei que você estivesse acostumado com esse tipo de cenário.
Ele riu, com brilho nos olhos.
— A maioria é feita com tela verde.
Ela riu também, encostando-se a uma árvore.
— Bem-vindo ao mundo real.
Ele ficou em silêncio, os olhos fixos no horizonte. A vista era mesmo impressionante — mas o mais bonito era não estar ali sozinho.
Ela falou, mais leve:
— Todo mundo devia ver algo assim pelo menos uma vez.
Ele a olhou e respondeu com um sorriso calmo:
— Talvez eu precise fazer isso mais vezes. Nunca achei que esse tipo de lugar fosse real. Sempre achei que fosse só... filme.
Ela riu baixinho.
— Acho que até os filmes ainda têm o que aprender com a vida real.
Ele assentiu. E por um instante, se sentiu exatamente onde deveria estar — ali, com ela, nesse pedaço de mundo que não precisava de roteiros para ser inesquecível.