Mundo de ficçãoIniciar sessão
Selene
Eu sempre soube que a fortaleza dourada que meu pai construiu para mim também era uma jaula. O luxo tinha barras invisíveis, aulas de etiqueta, reuniões com anciãos, sorrisos que exibiam dentes e escondiam garras. Naquela manhã, risquei o mapa que meu tutor traçou para o meu “dia perfeito” e decidi ter o meu de verdade, um que cheirasse a terra molhada, folhas esmagadas e vento livre. O bosque começava após a ponte de pedra. A luz atravessava as copas como feiches quentes e, por um momento, bastou respirar para que a loba em mim esticasse as patas, aliviada. Descalcei as botas para sentir a seiva fria da grama. Eu tinha dezenove verões e um coração que batia como um tambor impaciente, era difícil ser a filha do Rei Lobo e, ao mesmo tempo, apenas Selene. Foi então que o cheiro veio… ferro e chuva. Sangue. Minha loba, Ash, ergueu-se por dentro, atenta. — “Cautela.” — sussurrou, como se pudesse falar. Para mim, porém, sua voz era sensação… arrepio na nuca, peso na língua. Segui o rastro entre samambaias até ouvir um gemido baixo, quase humano. As árvores se abriram para uma clareira inclinada, e ali, meio escondido pelas sombras, jazia um lobo negro. Grande, tão grande que a terra parecia moldada para cabê-lo. O flanco subia e descia de maneira irregular. As costelas tinham cortes, os pêlos estavam úmidos e colados, e havia uma flecha de ponta serrilhada fincada logo abaixo da escápula. — Oh, lua… — ajoelhei ao lado dele, a mão pairando no ar, indecisa — eu não devia… O Conselho repetiu mais de mil vezes: — Lobos errantes trazem guerra. Um lobo ferido, então, traz morte. O animal abriu os olhos. Não eram amarelos comuns, tinham um âmbar profundo, quase queimado, e neles havia dor, e um pedido. Meu peito apertou. A flecha sangrava, lenta, o cheiro era forte demais para ignorar. — Calma, grandão. — sussurrei — Eu posso ajudar. Ele rosnou de leve, não em ameaça, mas em alerta. Aproximei os dedos, deixando que ele cheirasse minha pele. Ash se moveu dentro de mim, cautelosa, porém curiosa. Quando o focinho tocou meus dedos, senti o calor áspero da respiração e uma confiança frágil, como gelo fino. Olhei ao redor. Havia uma fenda entre duas rochas cobertas de musgo, uma caverna jovem, estreita para um exército, perfeita para um segredo. Voltei para o lobo. — Eu tenho um lugar. Se você confiar em mim por alguns minutos, prometo que não vou te abandonar. Ele piscou, e juro que foi um assentimento. A flecha precisava sair, mas primeiro eu precisava escondê-lo. Rasguei a barra do meu vestido para improvisar uma faixa, respirei fundo e toquei o pêlo. — Vai doer. — avisei — Em nós dois. Com a força que não parecia caber no meu corpo, arrastei-o devagar, um centímetro de cada vez, guiando a cabeça pesada e empurrando o traseiro com o ombro. O lobo tentou ajudar, firmando as patas, mas a dor o fazia falhar. Levei quase uma eternidade para alcançar a fenda. A caverna cheirava a água antiga e pedra. Havia espaço suficiente para nós dois e para o silêncio. — Pronto. — falei, ofegante — Aqui ninguém vê. Tirei o cantil do cinto e limpei o sangue ao redor da flecha. O lobo me observava com aquela intensidade febril. Eu tremia, mas não recuei. Puxei a haste com rapidez. Ele soltou um urro que tremeu a rocha e meu coração. O eco voltou como trovão. Eu enfaixei a ferida com as tiras do vestido, pressionando até o sangramento ceder. — Ainda comigo? — perguntei. Ele abaixou a cabeça no chão, as pálpebras pesaram, mas o olhar continuou preso ao meu. Senti uma estranha maré de calor subir pelos braços. Era o vínculo? Não podia. Vínculos se formavam com toque de alma, não com gaze improvisada. Mesmo assim, havia algo ali, um fio de prata invisível, amarrando meu pulso ao peito dele. — Eu volto amanhã. Trago comida. — prometi, acariciando-lhe a orelha com ponta dos dedos. Quando me ergui para sair, ele tentou levantar, falhou. A língua áspera tocou meu pulso nu, um agradecimento sussurrado. Meu coração tropeçou dentro do peito. — Shh. Descanse. Saí da caverna com as pernas bambas e a mente fervendo. A cada passo longe dali, o fio puxava, pedindo que eu retornasse. Mas, antes, eu precisava enfrentar uma alcateia: a minha. Voltei à fortaleza pelo caminho do moinho para evitar os olheiros do muro leste. Ainda ofegava quando cruzei o pátio interno. Soldados treinavam com lanças, o ferro cantava no ar. Os anciãos atravessavam a arcada em fila. Agarrei a capa para esconder o vestido rasgado. — Selene? — chamou Tália, minha aia — A senhorita sumiu de novo! Seu pai foi ao Conselho. O senhor Eamon está furioso. — Meu pai vive furioso, Tália. Acha que “liberdade” é sinônimo de “guerra”. — Às vezes é, menina. Subi as escadas. No corredor, os quadros dos antigos reis me acompanharam com olhos severos. Lavei as mãos, o sangue ficou como sombra sob as unhas. Ash se agitou. — Fizemos o certo. — sussurrei — Não vamos deixá-lo morrer. Meu pai entrou com o cheiro de couro molhado e ordem. — Onde esteve? — No bosque. — Há caçadores estrangeiros por ali. Você é a herdeira. — Preciso respirar, pai. Dentro dessas paredes, meu peito encolhe. Os olhos dele amoleceram um pouco, mas a voz ficou dura: — Minha função é impedir que caia. — A sua é me ensinar a voar. O músculo na mandíbula dele latejou. Uma batida interrompeu. — Majestade… — disse um ancião — precisamos de sua assinatura. — Depois conversaremos. — meu pai decretou — Não saia dos aposentos. Quando a porta fechou, sentei na janela, ouvindo a fortaleza respirar. Pensei no lobo negro, sozinho na pedra fria. A urgência me picou sob a pele. Vasculhei o baú de remédios… pomadas, linha, panos limpos. Enfiei tudo numa bolsa e puxei um manto grosso. Tália prendeu meu cabelo. — Vai chover. — avisou — E cuidado com aquilo que escolhe amar. Beijei sua testa e parti. Fiquei alguns instantes parada, ouvindo a chuva começar a tamborilar no peitoril. A fortaleza inteira parecia prender a respiração comigo. Peguei papel e carvão e escrevi uma mentira piedosa para o meu pai: — Estou cansada, vou dormir cedo. Deixei sobre a mesa. Tália voltou com um vestido limpo, viu a bolsa aberta e franziu o cenho. — Isso não é só um passeio, é? — É um “e se”. Se eu puder salvar uma vida hoje, talvez salve muitas amanhã. — Palavras de Alfa. — ela disse, orgulhosa e assustada ao mesmo tempo — Volte inteira. — Inteira, não. Mas voltarei. No pátio, o vento trouxe cheiro de relva e trovão. Desci a ladeira da horta, atravessei o portão secundário e deixei que a escuridão me engolisse. Cada galho estalado sob as botas parecia uma confissão. Ainda assim, o medo vinha manso, como quem sabe que não é maior que a necessidade. A floresta era outra ao cair da tarde, sombras alongadas, pássaros em sussurros. Encontrei a fenda e entrei. O lobo estava atento. O curativo improvisado escureceu, mas o sangue havia parado. — Eu disse que voltaria. — falei baixo — E trouxe jantar. Deixei carne salgada e pão. Ele cheirou, desconfiado, provou. Uma alegria tola me aqueceu. — Você não precisa confiar em mim… — cochichei, aproximando devagar a tigela com água — só precisa me permitir ficar. Por hoje. Ele bebeu, a língua áspera fazendo um som paciente. Agradeci em silêncio à lua. Depois, desfiz tranças do meu cabelo e usei as fitas para amarrar o pano quando a faixa cedeu, gesto bobo, mas funcionou. Ri de mim mesma. O lobo inclinou a cabeça, curioso, e roçou o focinho na minha palma, quente como brasa. Lavei a ferida, passei pomada, troquei a gaze. A pele estava quente. Ele suportou firme, mas a cada toque os olhos âmbar me prendiam. Quando rosnou, segurei-lhe a cabeça. — Apenas olhe pra mim. Ele olhou. E, por um segundo impossível, uma porta pareceu abrir-se entre nós, um fio de prata atando minha mão ao peito dele. — Você tem nome? Eu sou Selene. Filha de Eamon, Rei Lobo da alcateia Névoa do Luar… mas prefiro só Selene. “Princesa” pesa. A orelha direita dele se moveu, quase um riso. — Certo, “Sem-Nome”. Vou contar uma história. É sobre uma menina que detestava vestidos que não a deixavam correr. Um dia, ela escapou da fortaleza e encontrou um lobo que sangrava. E porque ninguém lhe ensinou a virar o rosto à dor, ela ficou. Contei trabalhando, troquei gazes, massageei as bordas tensas para o bálsamo assentar. O lobo ouviu com respirações longas. Quando terminei, repousei a mão em seu peito e senti o coração vivo. — Vou voltar todos os dias até você se curar. Depois… veremos. Prometi voltar ao amanhecer, custasse o que custasse. Para nós. A noite engoliu a entrada. Eu precisava ir. Arrumei a bolsa, apaguei a lamparina para não chamar atenção. Recuei dois passos. Então a pata dele veio, quente, sobre meu tornozelo, detendo-me. Os olhos âmbar brilharam no escuro, e a voz, humana e grave, derramou-se na pedra: — Se continuar voltando, pequena loba… não vou conseguir deixar você ir.






