Capítulo 2 - Aviltamento

Alis arregalou os olhos, atônita.

Diante dela, erguia-se uma mulher de semblante elegante e inacreditavelmente idêntico: os mesmos olhos profundos, o mesmo contorno de rosto e de lábios, o mesmo sorriso — e, ainda assim, tão diferente.

A desconhecida ostentava uma maquiagem impecável, um pequeno piercing no nariz que brilhava à luz, brincos longos e cabelos lisos como seda negra. Vestia um tomara-que-caia audacioso, de saia curta, revelando pernas torneadas e seguras de si. Era como ver o reflexo de uma alma que nunca fora sua: igual no corpo, distinta no espírito.

Alis se perguntou, num sussurro interno, se seus corações seriam tão distantes quanto suas aparências gritavam agora.

— Eu nunca imaginei que encontraria minha irmã gêmea... — murmurou, depois de longos segundos, como se as palavras ainda lhe arranhassem a garganta.

Liz franziu o cenho, intrigada pela falta de surpresa real no tom da outra.

— Como assim? Você sabia? Contou a alguém? — indagou rapidamente, o olhar faiscando de desconfiança. Era vital, para seu plano, que aquela verdade permanecesse no esquecimento do mundo.

— Não... ninguém sabe. — respondeu Alis, hesitante. — Ao menos, creio que não contei. Mas eu sabia, sim. A irmã Ágatha, do orfanato onde cresci, me disse que nos registros havia a menção de duas gêmeas. Ela, porém, desconhecia o teu destino... Hoje, sei que é proibido adotar um irmão sem o outro, mas na nossa época... talvez tenha sido diferente. Ou algo se perdeu nos papéis que deveriam nos manter juntas.

Liz sorriu, um sorriso que, embora gentil, carregava veneno.

— Provavelmente. — mentiu com doçura. — Uma pena que você não foi adotada junto comigo. A família que me adotou é maravilhosa! 

A mente de Liz passou a lembrança de sua infância miserável — da mãe submissa, do pai viciado e do irmão único digno de afeto — como um sopro amargo, mas ela empurrou-o para longe.

— E você? — perguntou, fingindo interesse. — O que foi feito de você?

— Também fui adotada... — respondeu Alis, desviando o olhar como quem foge de velhas feridas. — Mas não deu certo. Voltei ao orfanato.

— Que triste... — suspirou Liz, dissimulando compaixão. Ela sabia de tudo: dos abusos, da dor calada, do abandono. As palavras do detetive ecoavam em sua mente como um roteiro que agora ela recitava ao contrário. Sua irmã sofreu nas mãos de um pai adotivo abusivo antes de voltar ao orfanato.

— Então você virou professora?

— Sim. A irmã Ágatha foi minha inspiração. Trabalhei como assistente no orfanato assim que atingi a maioridade, cuidei de crianças, estudei com afinco. Hoje tenho meu emprego, mas nunca me afastei do orfanato... é onde está meu coração. 

Liz engoliu o desprezo que crescia dentro de si. Sua irmã era uma santa — uma santa miserável e idiota, pensou com rancor.

— E você? — perguntou Alis, sorrindo com genuína alegria. — Quem é você? Como me encontrou?

— Meu nome é Liz. Liz Eagleton Trevor. — disse ela, com uma reverência quase teatral. — Fui adotada pelos Eagletons. Deve ter ouvido falar deles...

Alis assentiu, recordando o nome de Harry Eagleton, o ex-prefeito.

— Sim, o ex-prefeito era meu pai. Que Deus o tenha. Um homem extraordinário.

— Eu me lembro... ouvi no noticiário. Morreu há pouco tempo, não? - perguntou Alis, com medo de ser insensível com a irmã. 

— Dois meses... — disse Liz, baixando os olhos, forçando lágrimas que não vinham. — Foi um golpe cruel. Um assalto. Roubaram dinheiro, joias... mas o que levaram de mim foi muito mais precioso. Meu pai era tudo na minha vida.

Alis apertou a mão dela, emocionada.

— Sinto muito, Liz...

— Obrigada. — disse Liz, compondo um semblante triste. — Mas agora... encontrei você. E quero te apresentar à minha família. Quero que sejamos, de verdade, irmãs.

Alis sorriu, o coração vibrando num anseio que desconhecia há anos.

— Seria um sonho...

— Mas para que esse sonho comece, preciso te pedir um favor... — disse Liz, a voz vacilante, como quem pede algo impossível.

— Qualquer coisa... — respondeu Alis, sem hesitar.

Liz começou a tecer sua armadilha com fios de seda e veneno.

- Eu preciso que você fique no meu lugar por alguns dias. Dias breves. Daqui a alguns dias, haverá uma homenagem ao meu pai. Preciso que assuma o meu lugar até lá. 

- Trocar com você? - Alis franziu o cenho, sem saber direito o que pensar. - Apesar de sermos gêmeas, somos muito diferentes e eu não sei nada sobre sua família. Isso jamais daria certo. 

- Se eu treinar você, tenho certeza que dará certo. E é por pouco tempo, querida. Eu vou enlouquecer se ficar em casa por mais tempo. Eu preciso de espaço para pensar e refletir sobre minha vida e sobre o meu casamento. Porém, não posso me ausentar agora da vida deles. Minha mãe precisa de mim, agora que meu pai se foi. E eu tenho um bebê de seis meses que também precisa da mãe dele presente. Se eu não estiver lá, minha família toda pode simplesmente desmoronar. 

- Mas você é casada. Seu marido, com certeza, vai notar a diferença. 

Liz soltou um muxoxo e novamente apanhou o lenço, fingindo estar prestes a chorar. 

- Esse na verdade, é o problema. Meu marido e eu, estamos nos separando. Ele não dorme mais comigo, desde antes de o bebê nascer. Sei que vamos nos divorciar em breve, mas eu preciso de um tempo para colocar minha mente em ordem antes de seguir com o divórcio. Se eu tomar uma decisão agora, eu tenho medo de destruir meu casamento e minha família. Por isso, preciso tanto de você. Você pode fazer isso por mim, não pode. Apenas alguns dias. Você nem precisa falar com ninguém. É só estar presente. Seria um grande conforto para mim e para minha família. Família que também é sua, agora. 

Por mais que Alis quisesse fugir de seus próprios problemas, ela estava hesitante. 

— Mas eu... eu sou casada também. Não posso simplesmente desaparecer.

Liz sorriu, o plano já antecipando cada resistência.

— Eu assumiria seu lugar, Alis. Cuidaria de tudo para você.

A verdade crua, no entanto, emergiu dos lábios trêmulos de Alis: seu marido era violento, era perigoso. Um homem de farda e trevas. 

- Meu marido é... violento. - confessou ela, em um misto de desabafo e vergonha. 

Liz fingiu surpresa, revolta, compaixão.

- Por que você não o denuncia. - perguntou Liz, enquanto sabia muito bem que Alis já tentara denunciar o marido algumas vezes inutilmente já que ele era um policial. 

- Eu tentei, mas não é tão fácil quanto você imagina. Ele... ele é policial e na delegacia que eu fui, os outros policiais me convenceram e tirar a denuncia mais de uma vez. Eu tenho medo dele, medo do que ele pode fazer se descobrir e medo do que ele faria com você!

- Quanto a isso, não se preocupe. Eu tenho a receita de remédios fortes para dormir. Vou colocar na comida do seu marido todos os dias e fazê-lo apagar. Se o pior acontecer, é claro, nós podemos simplesmente destrocar. Você precisa me dar uma chance. Eu consigo lidar com seu marido, por enquanto. E quando essa semana acabar, vou levar você comigo e você nunca mais terá que lidar com esse troglodita. 

Alis vacilou, o medo e a esperança travando uma batalha sangrenta em seu peito. Pensou em sua vida: anos de dor silenciosa, de humilhação invisível, de solidão sem nome. Talvez — apenas talvez — aquela fosse a chance que esperara por toda a sua vida. Ter justiça, ter proteção, ter um lar.

Aceitaria o risco.

Aceitaria a mentira.

Aceitaria vender sua própria face, se isso significasse, enfim, ser amada.

E, assim, selou seu destino.

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