KILLIAM
Estava impressionado pelo que Aurora conseguiu criar em tão pouco tempo — três caldos distintos, cada um com um cheiro mais convidativo que o outro.
O pão já crescia no forno, e até os malditos croutons estavam perfeitos, dourados e crocantes.
Havia uma energia nela que preenchia a cozinha. Era estranho admitir, mas... pela primeira vez em anos, o lugar parecia vivo. Eu a observava de canto, tentando não me deixar envolver. Mas era impossível ignorá-la.
Cada sorriso discreto que dava quando testava uma mistura, cada expressão concentrada enquanto mexia as panelas… era um tipo de presença que bagunçava o que eu passei tanto tempo tentando manter em ordem.
— Me diz o que acha — disse ela, virando-se com a colher na mão e um pequeno sorriso nos lábios.
Os olhos brilhavam de expectativa, e havia algo despretensiosamente sensual no jeito que ela segurava a colher, como se não tivesse noção do efeito que causava.
Ela se aproximou. O cheiro do caldo se misturou ao dela — um perfume sutil, doce e atraente, como o prenúncio de uma tempestade em uma floresta. Inebriante. Intenso.
Quando levou a colher até os meus lábios, senti o calor subir pelo corpo. Tudo em que eu conseguia pensar era em como os lábios dela seriam ainda mais quentes. Ainda mais doces.
— Isso… está muito bom — disse, e minha voz saiu mais rouca do que eu gostaria. — Você sabe o que está fazendo.
Desviei o olhar, tentando não deixar transparecer o quando aquilo havia me afetado.
Ela sorriu como se não tivesse percebido nada — ou talvez soubesse exatamente o que tinha provocado. Afastei-me de repente, indo para o salão sem dizer mais nada.
Cada passo parecia um alerta ecoando na minha cabeça. Ela é só uma mão temporária. Alguém que apareceu do nada. Você nem sabe de onde ela veio…
“Ela é nossa! Nada mais importa” — Meu lobo rugiu ferozmente.
E percebi naquele momento que Aurora não era só uma solução para o meu restaurante. Era um problema para o meu coração também.
Naquela noite, tudo aquilo era uma solução improvisada, uma forma de salvar a noite com o pouco que tínhamos.
E, quando concordei em seguir com a ideia de Aurora, confesso que estava convencido de que seria um desastre silencioso
Os caldos estavam divinos, claro. Não era isso que me preocupava. Era o público. A clientela estava acostumada com peixe grelhado, saladas frescas e massas leves. E se aquilo fosse um desastre?
Quando os primeiros clientes chegaram, imaginei que rejeitariam qualquer alternativa diferente daquilo que já estavam acostumados.
Mas, em menos de uma hora, todas as mesas já estavam ocupadas. Pessoas sorriam, conversavam entre si e tiravam fotos da comida.
Elogiavam em voz alta, chamando-me para perguntar o que havia em cada receita. Seus rostos brilhavam, como se tivessem recebido algo que não esperavam.
Aquela mulher, que havia surgido de repente e mudado tudo de forma inesperada, era a grande responsável por isso. De fato, ela estava certa — todos estavam tocados.
Do balcão, eu a observava enquanto mexia as panelas com concentração, provava, ajustava os temperos e limpava cuidadosamente a borda das tigelas antes de enviá-las ao salão.
— Ela de fato era o que precisávamos — disse Suelen ao meu lado, e eu nem percebi quando ela havia se aproximado.
— Ainda tenho minhas dúvidas — foi tudo o que disse.
— Dúvidas... ou medo? — retrucou minha amiga de olhar astuto, sorrindo para mim.
Mas, antes que pudesse responder, ela se afastou para atender outro cliente. Voltei a observar Aurora — havia uma leveza em cada movimento dela, mas também uma precisão que me deixava desconcertado, como se cada ingrediente obedecesse à sua vontade.
E, mais uma vez, eu não consegui desviar o olhar.
Eu podia fingir que tinha tudo sob controle, mas por dentro... estava em chamas. Os caldos eram divinos. Mas o que realmente mexia comigo era a mulher por trás deles — e o fato de que, mesmo sem dizer uma palavra, ela já estava mudando tudo. Inclusive, meu lobo.
As horas passaram, e a noite foi tudo, menos comum. Segundo Suelen, todos saíram mais do que satisfeitos — alguns clientes, inclusive, fizeram questão de deixar um feedback diretamente para mim.
Deixei Suelen organizar o salão como sempre fazia e fui até a cozinha. Na porta de entrada, por um instante, hesitei. Sabia que ela estava lá, sabia que não conseguiria fingir que nada havia mudado. Porque, de fato, havia mudado.
Aurora não apenas salvou a noite... ela transformou meu restaurante, meu dia, e começava a mexer comigo também. E o que eu diria?
Empurrei a porta devagar, e lá estava ela, de costas para mim, com o cabelo preso de qualquer jeito e seu vestido ligeiramente sujo dos ingredientes que usara.
Aurora organizava tudo com um cuidado que eu nunca vira em ninguém. As panelas já estavam lavadas e empilhadas, os potes etiquetados, as bancadas limpas.
Era como se a cozinha tivesse sido abençoada por uma tempestade que, ao passar, deixava tudo ainda melhor do que antes.
— Não se preocupe... — disse ela, sem sequer olhar para trás. A voz era suave, mas firme. — Não falta muito. Estou quase terminando.
Por um segundo, fiquei ali, encostado no batente da porta, apenas observando. Havia algo nela que me tirava o fôlego... e não estava falando sobre a forma como cozinhava.
— Você... fez mágica hoje — murmurei, mais para mim do que para ela.
Aurora se virou, com um pano de prato nas mãos e um sorriso leve nos lábios. O rosto cansado, mas os olhos brilhando.
— Só segui o instinto. Às vezes, ele sabe o caminho melhor que a gente.
Assenti devagar. Era verdade. Meu instinto mandava que eu me aproximasse, que a beijasse e dissesse o que estava me afligindo por dentro, mas eu ainda lutava contra isso.
“Ela é nossa” — meu lobo rugiu, desejoso.
O problema... era que quanto mais eu lutava, mais ficava difícil resistir.
Aquilo não podia está acontecendo. Eu tive uma companheira e até antes daquela mulher aparecer eu estava lutando contra a dor que parecia comprimir meu peito. Mas até isso parecia ter aliviado agora.
— E então? — perguntou ela, como se esperasse uma resposta simples… o que me deixou ainda mais confuso.
Eu franzi o cenho, ainda tentando decifrar do que ela estava falando. O que ela queria saber? Se eu também sentia aquela maldita conexão? Se eu ia lutar contra ou ceder como um covarde? Se eu estava disposto a largar o passado?
Aurora percebendo a confusão em meu olhar, revirou os olhos, cruzando os braços diante do peito farto, o que chamou minha atenção para eles.
— Eu vou ter o emprego ou não, Killiam? Eu não preciso de muito, apenas o bastante para me manter por um tempo. Posso lavar pratos, servir, limpar, tanto faz — ela fez uma pausa e desviou o olhar. — Prometo não causar problema.