Aquela era a oportunidade que eu esperava que o destino me oferecesse — um trabalho que me desse o mínimo para continuar fugindo e nunca olhar para trás.
A alegria surgiu em meu rosto, e, como já disse, não por causa dele — aquele idiota rude e aparentemente tão confuso quanto eu.
Continuar longe das amarras do passado me daria o que eu precisava — liberdade. Era isso que eu queria.
Não um par de olhos intensos me despindo com o olhar, nem uma loba histérica gritando “nosso” em minha mente, como se o destino já tivesse sido selado.
— Ainda não considerei essa possibilidade, Suelen — respondeu aquele mal-humorado.
— Não dou conta de tudo sozinha, Killiam. Você sabe que nosso movimento tem aumentado consideravelmente e se a noite tivermos o mesmo movimento? — argumentou Suelen, encarando-o.
— Não sei se vamos conseguir funcionar no horário da noite. Nosso fornecedor cancelou o pedido de hoje, e não sei se temos outra alternativa além de fechar.
— Fechar? — Suelen franziu a testa, surpresa, como se aquilo nunca tivesse ocorrido antes.
— Vocês não têm outra alternativa? Um plano B caso essas coisas aconteçam? — perguntei, encarando-o agora.
— A essa hora? Duvido que alguém consiga me atender. E improvisar algo com o que tenho... é quase impossível.
Respirei fundo. Não podia acreditar que a única chance que tive em dias evaporasse tão rápido quanto chegara. Foi quando a ideia surgiu, como um estalo.
— E se não for preciso algo elaborado? — murmurei. — Uma noite de caldos, quem sabe? Algo acolhedor. Pode servir com pão. Ainda é comida, ainda é caseiro e delicioso. Melhor do que fechar. Você provavelmente tem legumes, não?
Era algo simples, aconchegante e rápido. Uma solução perfeita para o problema dele.
Continuei encarando-o, e aquele homem, mesmo com toda a grosseria e resistência, tinha algo que mexia comigo. Talvez fossem os olhos — intensos, vigilantes — ou a forma como sua presença dominava o ambiente sem esforço.
Ele parecia tão acostumado a fazer tudo sozinho que qualquer tentativa de aproximação era recebida como algo suspeito. Mas eu não ia recuar — sabia que aquela podia ser a minha única chance.
— É uma alternativa, Killiam. Algo aconchegante — disse Suelen, o olhando com um sorriso sugestivo e as sobrancelhas erguidas.
Mas sabia que o que ela queria dizer, na verdade, era que não havia mais desculpas. E eu estava torcendo para que ele aceitasse a ideia.
— Você sempre faz isso? — perguntou ele em tom seco, agora me encarando. Eu não compreendi de imediato o que queria dizer. — Arrumar soluções para os problemas dos outros?
Por um instante, senti o constrangimento me dominar. Ele estava certo… eu não tinha o direito de me intrometer nos assuntos dele.
— Você devia agradecer, Killiam, em vez de ser rabugento com quem só tentou ajudar — repreendeu Suelen. — Não se sinta ofendida, lindinha. Ele tende a ser um idiota às vezes… é praticamente uma marca registrada — acrescentou, como se estivesse compartilhando um segredo.
Ele se levantou, visivelmente irritado. Não sabia dizer se era por causa do que Suelen havia dito, da minha sugestão ou, simplesmente, pelo fato de eu estar ali.
— Ao que parece hoje vai ser uma noite de caldos. Você ao menos sabe prepará-los? — perguntou ele, rudemente, sem me olhar.
Não conseguir conter o sorriso. Talvez você ainda não perceba, Sr. Killiam, mas essa noite não vai salvar apenas seu restaurante — pensei, encarando aquele olhar desconfiado…
— Sei, sim — cruzei os braços e ergui uma sobrancelha. — Caldo de mandioca com calabresa e bacon, caldo verde, caldo de carne com especiarias, caldo de abóbora e até uma versão vegana de canja se quiser.
— Dessa maneira estou com medo até de perder meu emprego — brincou Suelen, sorrindo para mim.
No entanto, aquele homem pareceu conter um suspiro, passando a mão pelos cabelos escuros com uma expressão indecisa.
— E você acredita que dá tempo? Teremos que abrir dentro de poucas horas — perguntou ele, já caminhando em direção à cozinha, sem sequer me dirigir um olhar.
Suelen — a moça simpática — lançou-me um olhar cúmplice antes de segui-lo. Fiz o mesmo, mantendo o queixo erguido e os ombros firmes.
Eu não deixaria aquele lobo me intimidar, não depois de tudo o que enfrentei.
— Se me deixar entrar na cozinha agora, dá — sorri de novo. — E se tiver pão amanhecido por aí, faço croutons.
Houve uma pausa. Um silêncio pesado. Mas ele assentiu com a cabeça. Entramos na cozinha e fui surpreendida por um ambiente amplo, limpo e bem organizado.
Havia uma energia ali que me acalmava, como se fosse possível recomeçar de verdade entre aquelas paredes.
— A cozinha é sua… por enquanto. Se der problema, é você quem limpa a bagunça.
— Feito — falei, feliz por aquela oportunidade.
— Ótimo, garota, mostre do que você é capaz… — Suelen disse, piscando para mim e fazendo um legal com o dedo. — Vou cuidar do salão.
Assim que ela se retirou, abri o freezer e comecei a explorar o que havia disponível. Pacotes de legumes embalados, alguns pedaços de carnes congeladas, algo que parecia frango, ossos, salsinha murcha, mas ainda aproveitável.
Fui abrindo as portas dos armários e da geladeira como quem monta um quebra-cabeça em tempo real.
Peguei cebolas, batatas, mandioquinha, alho, lentilhas, couve... e meu coração acelerou só de pensar nas combinações possíveis. Era como se minha mente funcionasse melhor sob pressão.
Cada item que eu encontrava me dava mais ideias. E então, no fundo de um armário, vi dois pacotes de trigo e um pote aberto de fermento biológico seco. Sorri sozinha.
Pão fresco com caldo quente… ninguém resiste a isso.
Enquanto reunia os ingredientes sobre a bancada, sentia os olhos dele em mim. Discretos, mas presentes. Killiam não disse uma palavra desde que me deu permissão para entrar na cozinha.
Seus olhares eram difíceis de decifrar — ora desconfiados, como se me esperasse falhar a qualquer momento, ora intensos demais, como se quisesse entender algo em mim que nem eu mesma compreendia.
Tentei ignorar a forma como isso me fazia sentir. Eu não estava ali para isso.
Estava ali para uma oportunidade e para mostrar que podia ser útil, mesmo que ele não acreditasse. Aquela era a chance que o destino estava me dando.
Poderia não saber muita coisa, mas cozinhar era o que me dava oportunidade naquele inferno onde vivia.
E foi só quando coloquei as mãos na farinha, para modelar os primeiros pãezinhos, que ele falou pela primeira vez em minutos.
— Quer ajuda?
Parei por um segundo, surpresa. Não tanto pela oferta, mas pelo tom. Ele não soava impaciente nem irônico. Era quase… cuidadoso.
Levantei os olhos para ele. Estava ali, encostado na bancada, braços cruzados e a testa levemente franzida, como se nem ele soubesse por que tinha feito a pergunta.
— Se quiser preparar os croutons, ficarei agradecida — respondi com um meio sorriso, tentando esconder o frio que ele me causava na barriga. — Com o pão amanhecido na terceira prateleira, corte em cubinhos, azeite, sal e um pouco de alecrim. Depois é só levar ao forno.
Ele assentiu em silêncio, e pela primeira vez, vi Killiam se mover pela cozinha como se aceitasse — ainda que a contragosto — dividir um pouco do peso que carregava.
Naquele momento, com a cozinha cheia de aromas e a noite se aproximando, eu entendi que não era só um restaurante que estava sendo aquecido pelos caldos.
Talvez… talvez nós dois estivéssemos começando a descongelar.