Capítulo 3 - A notícia

  Evelyn 

  O sol entrava pelas janelas altas do dormitório, deixando as partículas de poeira dançarem no ar. O internato sempre parecia o mesmo: as paredes claras, o cheiro de papel velho e sabão em pó, o barulho das meninas conversando nos corredores. Eu me sentia parte da mobília — alguém que estava ali há tempo demais pra se surpreender com qualquer coisa.

  Estávamos sentadas no pátio, eu e minhas amigas, falando sobre as férias que talvez nunca chegassem. O internato tinha essa mania de esticar o tempo. Tudo parecia durar mais aqui dentro.

  Foi quando vi a diretora atravessando o gramado, acompanhada de um homem de terno escuro e maleta de couro. Reconheci o andar calmo, as rugas nas têmporas, o olhar de quem já carrega segredos demais. Henry Moore.

  — Evelyn — chamou a diretora, com aquele tom neutro que sempre precede alguma notícia. — O sr.  Moore quer falar com você.

  Meu coração errou o ritmo. Henry aparecia de vez em quando, trazia alguma carta, perguntava se eu estava bem, fazia comentários gentis sobre como eu crescia depressa. Mas nunca aparecia com esse ar tão sério.

  — Claro — respondi, levantando-me. — Eu já vou.

  Minhas amigas me olharam curiosas, mas nenhuma perguntou nada. A gente aprende rápido a não fazer perguntas demais num lugar como esse.

  Segui Henry e a diretora até o escritório. As janelas estavam abertas, e o vento fazia as cortinas se moverem devagar. O ar tinha cheiro de tinta e madeira encerada. A diretora se retirou, e ficamos só nós dois. Ele se sentou, ajeitou os papéis, e quando me olhou, eu já sabia que vinha algo pesado.

  — Evelyn... — começou, a voz rouca, baixa. — Eu lamento ter que dizer isso assim, mas Arthur Harrington faleceu há três dias. Foi tudo muito... rápido. Eu deveria tê-la comunicado, para caso quisesse ir ao funeral, mas não tive tempo. Quiseram... resolver tudo logo...

  Por um segundo, o som parou.

  Arthur. “Tio Arthur”, como eu o chamava quando era pequena. Eu não sabia como reagir. Não chorei, não consegui. Era estranho. Ele nunca foi exatamente presente — mas era a única figura que, de algum modo, eu associava à ideia de “família”.

  — Ele... — engoli em seco. — Como isso aconteceu?

  — Problemas cardíacos — respondeu, simples, como quem lê um fato de jornal. — Ele vinha se cuidando, mas já sabia que o tempo não seria generoso.

  Assenti, quieta.

  Henry ajeitou o papel diante de si.

  — Com a morte dele, sua tutela precisará ser transferida.

  Meu estômago deu um nó.

  — Transferida pra quem?

  — Ainda não sei. — Ele respirou fundo. — Seu nome foi incluído em um novo documento. Seu tutor legal será outra pessoa, mas essa pessoa ainda precisa aceitar a responsabilidade. Até lá, você deve começar a se preparar para deixar este lugar.

  Olhei para ele, perdida.

  — Deixar o internato? Agora?

  — Em breve. Você está perto da idade de seguir pra universidade, e era o que Arthur queria pra você.

  Apertei as mãos no colo.

  — Eu... não sei se estou pronta. Aqui é o único lugar que eu conheço. Lá fora... — soltei o ar — é tudo tão grande.

  Ele me observou, com um olhar que misturava compaixão e cuidado.

  — Vai dar tudo certo, Evelyn.

  — O senhor sempre diz isso — murmurei. — Mas o mundo não costuma ouvir.

  Ele sorriu de leve, mas logo voltou ao tom formal.

  — A tutela será passada para Dante Harrington. Ele ainda não aceitou, mas... vai aceitar. 

  Meu corpo congelou.

  — Dante... — repeti, sentindo o nome vibrar como uma lembrança antiga. — O filho dele.

  — Sim.

  Lembrei de Dante como um vulto no fim do corredor. Um garoto calado, sempre de semblante sério. Ele vivia no quarto, ou andava pelos jardins sozinho, como se o mundo inteiro fosse barulhento demais pra ele.

  Eu devia ter uns seis anos quando parei de tentar brincar com ele. Ele nunca quis saber de mim. Depois que mamãe morreu, fui mandada pra cá. E, no fundo, sempre achei que foi porque ele não me queria por perto. Que talvez tenha dito isso a Arthur.

  — Então é isso — falei, meio rindo, meio amarga. — Meu novo tutor é um homem que nunca gostou de mim.

  — Não é bem assim, Evelyn — Henry respondeu, paciente. — Arthur confiava nele. Queria garantir que você continuasse sob os cuidados da família.

  — Cuidar de alguém não é o mesmo que querer alguém por perto.

  Henry pousou as mãos sobre a mesa.

  — Posso te garantir que ele vai fazer o melhor.

  — Não duvido. O melhor pra ele, talvez. — Cruzei os braços. — E se ele não quiser aceitar?

  — Então outra pessoa será nomeada. Mas, sinceramente, não acho que Dante vá se recusar.

  Suspirei, cansada.

  — Às vezes acho que sou um peso. Que as pessoas só ficam comigo por obrigação.

  Henry olhou pra mim, triste.

  — Você não é um peso. Arthur cuidou de você até o fim, Evelyn. Prometeu a Eloise que faria isso. Ele manteve a palavra. Ele te via como uma filha e garantiu que você crescesse bem. Acredite, Arthur pensou muito em você, nesses anos todos. 

  A menção ao nome da minha mãe me apertou o peito. Olhei pra janela. O céu estava nublado, o vento frio batia nas folhas do jardim.

  — Só queria parar de me sentir como um lembrete da perda dos outros — murmurei.

  Henry fechou a pasta devagar.

  — Você é um lembrete de amor, não de perda. Sua mãe acreditava em você. E Arthur também, à maneira dele.

  Ficamos em silêncio por um tempo. Depois, ele começou a me explicar sobre os papéis da universidade, sobre Londres, sobre como eu poderia estudar Artes e, quem sabe, um dia, ir pra França — o sonho antigo que eu mantive por tanto tempo. 

  Quando terminamos, ele se levantou.

  — Estarei por perto, certo? Qualquer coisa, peça pra diretora me telefonar.

  Assenti.

  — Tudo bem.

  Acompanhei-o até a saída. O carro dele esperava diante dos portões altos do internato. Henry acenou uma última vez antes de entrar. Fiquei parada ali, observando o carro sumir entre as árvores.

  Senti o coração apertar de novo. Parte de mim queria correr atrás, pedir pra ele não me deixar sozinha. A outra parte sabia que isso não mudaria nada.

  — Evie? — ouvi a voz de Alice atrás de mim. Minha amiga de quarto, com o casaco meio torto e os olhos preocupados. — Aconteceu alguma coisa?

  Virei-me devagar.

  — O tio Arthur morreu.

  Ela levou a mão à boca.

  — Eu sinto muito. Você está bem?

  — Não sei — respondi, sincera. — É um sentimento estranho. Eu o via tão pouco... que não sei se dá pra chamar de luto. Mas ainda assim... meio que dói saber que nunca mais vou vê-lo. 

 Alice me abraçou, e eu deixei.

 — Henry disse que ele era reservado — continuei, com a voz baixa. — Mas que nem sempre foi assim. Que as perdas o mudaram. Acho que isso acontece com todo mundo, no fim das contas.

  Olhei pro céu cinza e senti o vento frio bater no rosto.

  O mundo lá fora me esperava, mas eu não fazia ideia de quem eu seria fora desses muros. E agora, com Dante Harrington no meu caminho outra vez, talvez fosse a primeira vez em muito tempo que o destino decidia mexer nas peças.

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