Mundo ficciónIniciar sesiónAlonzo
A noite se arrasta como uma maldição que se recusa a terminar. Estou no meu quarto, deitado, mas sem sono. O whisky já não esquenta como antes. A garrafa, metade vazia, repousa sobre o criado-mudo como uma testemunha da minha covardia. Pego o controle e ligo o painel das câmeras da mansão. Tenho acesso a todos os cômodos, mesmo que ela não saiba. Um resquício do homem desconfiado, controlador e racional que eu sou. Ou talvez só mais uma prova de que não sei amar sem tentar controlar. A imagem da sala de estar preenche a tela. E lá está ela. Antonella. Enrolada em um cobertor fino, dormindo no sofá como se fosse hóspede de uma casa que não permite intimidade. O prato de comida ainda está sobre a mesa, intocado, ao lado de uma vela derretida. A luz baixa do abajur deixa o rosto dela ainda mais suave. Mesmo dormindo, carrega uma expressão de decepção. Eu a deixei esperando. Outra vez. Aperto os olhos, tentando afastar o nó na garganta. Mas é inútil. Sou um monstro. Ou me tornei um. Talvez sempre tenha sido. Mas mesmo monstros têm consciência, e a minha está gritando agora. Apoio os cotovelos sobre os joelhos e respiro fundo, buscando alguma justificativa dentro de mim. Alguma desculpa racional para a frieza que ofereço a ela todos os dias. O problema é que sei exatamente o motivo. E ele não me redime. Tenho medo. Medo de sentir de novo. Medo de perder o controle. Medo de que ela me transforme naquilo que jurei nunca mais ser, um homem vulnerável, apaixonado… à mercê de alguém. A câmera continua mostrando Antonella, imóvel no sofá. Fecho os olhos e, contra minha vontade, minha mente me arrasta para um momento que nunca esqueci. [Flashback – Noite anterior ao casamento] A biblioteca da mansão dos Bellini era linda, imponente. Livros de capa dura por todos os lados, poltronas de couro e uma lareira acesa. Eu estava ali, de pé, quando o pai de Antonella entrou, elegante como sempre. Cristiano Bellini era um homem ambicioso, sim. Mas zelava pela filha com um tipo de devoção que não se comprava com dinheiro. — Alonzo — ele disse, parando diante de mim. — Quero apenas um minuto. Assenti, mesmo sabendo que aquele “um minuto” seria muito mais. — Amanhã ela se casa com você. E sei que esse casamento começou por interesses mútuos… — Ele fez uma pausa, olhando para a taça de conhaque na mão. — Mas minha filha é diferente. Ela não sabe viver pela metade. Se ela se entregar… vai ser por inteiro. Cruzei os braços, tentando manter a postura fria de sempre. — Eu não pedi o coração dela, senhor Bellini. — Mas você vai tê-lo — ele respondeu com firmeza. — E por isso, te peço apenas uma coisa, cuide dela como se fosse sua joia mais preciosa. Porque é isso que ela é. Doce, mas forte. Inteligente, mas sensível. E capaz de amar mais do que qualquer uma já te amou. — Eu protegerei a Antonella. Isso eu prometo. Ele assentiu, como se aquela resposta já fosse suficiente. Mas não era. A promessa que fiz ali se tornou um grilhão. Porque, na minha mente doentia, proteger virou sinônimo de manter distância. Desligo a câmera. Não suporto mais vê-la daquele jeito. E ao mesmo tempo, não suporto a ideia de me aproximar. Porque sei exatamente o que vai acontecer se eu permitir. Vou até a varanda do quarto e acendo um charuto cubano. A brisa gelada de Toronto me atinge em cheio, mas é isso que eu mereço. Frio por fora, e queimando por dentro. Enquanto trago a fumaça, o celular vibra sobre a mesa. É Letícia. Leio a mensagem iluminada pela luz da varanda: — “Precisa de companhia? Ainda estou acordada.” Solto a fumaça lentamente. Letícia trabalha comigo há cinco anos. Bonita, esperta, ambiciosa. Já tentou cruzar essa linha antes, mas nunca permiti. Ela conhece meus horários, meus momentos… e meu orgulho. E agora está tentando preencher um espaço que ela percebeu estar aberto. Mas ela não é Antonella. E isso muda tudo. Apenas bloqueio a tela do celular e o deixo ali, de lado. Termino o charuto sem dizer nada, assistindo as luzes da cidade ao longe. Dentro da mansão, há uma mulher dormindo no sofá porque eu fui covarde demais para jantar com ela mais uma vez. Talvez eu esteja fadado a repetir os erros dos homens que me criaram. Talvez o sangue frio dos Karvell corra em mim mais do que eu gostaria de admitir. Mas há algo diferente em Antonella. Ela não é uma mulher comum. Ela me faz querer correr… e ficar ao mesmo tempo. Me faz querer fugir… mas também cuidar. Me faz desejar coisas que pensei ter matado dentro de mim. E isso me apavora. Entro novamente no quarto, largo a blusa sobre a poltrona e caminho até a cama. Me jogo de costas, o teto branco girando lentamente acima de mim. Queria poder ser outro homem. Queria poder voltar à noite do jantar e simplesmente sentar à mesa, elogiar a comida, sorrir de volta. Mas eu sou esse homem que observa pelas câmeras, que sente ciúmes feito um louco, que protege afastando. Ela merece mais. E é por isso que vou continuar fingindo. Porque amar Antonella do meu jeito… seria o mesmo que destruí-la. E essa é a única coisa que eu não posso permitir. Mesmo que, para isso, eu me destrua um pouco mais a cada noite. Alguns minutos depois, ainda com o gosto do whisky preso na garganta, disquei o número do meu pai. A ligação completou rápido, como se ele já esperasse. — “Alonzo?” — reconheci de imediato a voz firme dele, direto de Nova Jersey. — Oi, pai… só queria saber como estão as coisas aí. — “Sua mãe tá bem, graças a Deus. As meninas também. Falaram de você hoje” — ele respondeu com aquele tom tranquilo que sempre teve. — “E você? Como anda?” Olhei para o teto irritantemente branco do quarto, hesitei. — Tentando não estragar tudo… como sempre. Ele deu uma risada baixa. — “Alonzo… às vezes proteger alguém não é se afastar. É estar junto, mesmo com medo. Não cometa o erro que eu cometi com sua mãe.” Fechei os olhos. Por um instante, quis dizer tudo. Mas só respondi: — Boa noite, pai. — “Boa noite, filho. Cuida bem da sua esposa.” Eu prometi que cuidaria. Mas será que ainda sei como?






