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Bônus da Isabel parte 5

Isabel Matarazzo

Os anos foram passando e, com eles, nossa família foi crescendo. Depois da Maria Flor, tivemos a Maria Eduarda — e, sim, ela também foi "feita em casa". Parece que fertilidade é nosso dom especial. Tudo bem que foi no meu dia fértil, mas engravidamos na primeira tentativa. Às vezes penso que era o destino dizendo: “Vai, não desiste não”. Mas aí eu paro, olho ao redor e me dou conta... Já tinha uma filha de doze anos, um menino de três e uma menininha de dois. Era uma loucura. Mas uma loucura já feita. E eu não mudaria nada.

Não me arrependo de nenhum dos meus cinco filhos. Cada um deles é um pedacinho do meu coração que resolveu viver fora de mim.

— Vamos fechar a fábrica agora? — o Eduardo perguntou, rindo, ainda na maternidade, enquanto embalava nossa recém-nascida nos braços.

— Não sei... A gente faz bebês tão lindos — respondi, passando os dedos pelo rostinho cor-de-rosa da nossa pequena. — Ela é a sua cara.

— Linda demais... — ele murmurou, me dando um beijo na testa, emocionado. — Maria Rosa. Mais uma flor no nosso jardim.

— Maria Eduarda — corrigi com um sorriso brincalhão. — Ela é a sua versão feminina. Tem até a covinha no queixo igual a você.

Ele começou a rir, pulando como uma criança.

— Você deixou! Eu nem acredito que você deixou!

— É que agora... agora o nome encaixou. E ela parece tanto com você que resistir teria sido injusto.

Eduardo beijou a testa da pequena Maria Eduarda com tanto carinho que meu coração derreteu. Era lindo ver o homem que ele se tornara. O pai incrível que ele era. Crescemos juntos, e agora eu crescia com ele de novo — como mãe, como mulher.

— Se for mesmo pra fechar a fábrica — brinquei, rindo baixinho —, vamos fazer isso com chave de ouro. Mas só depois que eu achar o meu menino.

— Ué... então quer dizer que ainda tem chance de abrirmos de novo?

Nos olhamos e caímos na risada. A maternidade já nos conhecia bem. E talvez, só talvez, eles ainda nos vissem por lá mais uma vez.

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No aniversário de cinco anos do Eduardo Manoel, resolvemos fazer uma grande festa. Não dava mais pra adiar. Todo ano ele aceitava a comemoração em casa com os avós paternos, um bolinho, brigadeiro caseiro e parabéns apertado entre irmãos. Mas naquele ano, implorou:

— Mãe, eu quero uma festa igual das novelas! Com cavalo, boi, música, chapéu, bolo com vaqueiro em cima... E quero que todo mundo vá!

Não teve como dizer não.

— Mas filho... todo mundo quem? — perguntei, já prevendo o caos.

— Todo mundo do mundo! — respondeu, com os olhos mais brilhantes que nunca.

E assim começou a Operação Festa de Fazendinha.

Eduardo e eu decidimos realizá-la na fazenda da família em Pirenópolis, a preferida das crianças. Era a mais perto de Goiânia, com menos de duas horas de viagem, e tinha tudo que ele amava: cavalos de verdade, curral, pomar, galinheiro e até um laguinho onde jurava morar “o jacaré amigo”.

Alugamos brinquedos, contratamos uma decoradora (que deve ter repensado a carreira após minha lista de exigências) e envolvemos todos nos preparativos. Maria Flor escolheu as cores dos balões. Belinha só queria saber se teria algodão-doce. Vitória fez plaquinhas com frases como “Cuidado! Vaca brava!” e “Estacionamento para cavalos”. E Eduardo Manoel, claro, testou todos os cavalos dias antes — queria garantir que “Relâmpago”, seu favorito, estivesse impecável.

A manhã da festa chegou quente, sob um céu azulão de Goiás que parecia pintado à mão. A chácara estava linda: bandeirolas coloridas, barracas de comidas típicas, chapéus e lenços pendurados nas árvores. O bolo tinha três andares: o primeiro cercado por vaquinhas, o segundo por tratores e o topo com um menino de massa montado num cavalo.

Quando Eduardo Manoel chegou — de camisa xadrez, calça jeans e botas maiores que seus pés — parou e observou tudo em silêncio. Virou-se para mim, chapéu escorregando, e perguntou:

— É tudo isso mesmo, mamãe? Eu sonhei ou é de verdade?

Abaixei-me, ajeitei seu chapéu e beijei a bochecha quente de emoção.

— É de verdade, meu amor. Tudo pra você.

Ele me abraçou apertado e sussurrou sem querer:

— Só falta meu irmão pra brincar comigo...

Meu coração apertou. Aquele pedido silencioso, como uma oração que ele ainda não compreendia. Mas eu entendia.

Sorri com ternura e respondi no mesmo tom:

— Um dia ele vem. E vai amar brincar com você.

À tarde, houve música sertaneja ao vivo, pescaria com peixinhos de plástico, corrida de saco e até ordenha demonstrativa com Dona Benta, uma vaquinha paciente que virou celebridade entre as crianças. Eduardo Manoel foi o rei do dia — ou melhor, o vaqueiro-chefe.

Meu sogro pediu para convidar muitos amigos. Sempre quis mostrar os netos, especialmente Eduardo Manoel, que o idolatra. Tudo que meu sogro sonhava que o Eduardo gostasse — cavalos, fazenda, sertanejo — o neto abraçou num piscar de olhos.

A princípio recusei: não queria estranhos perto dos meus filhos. Mas Eduardo lembrou que festa grande precisa de convidados, e meu sogro sempre respeitou nossas escolhas — mesmo louco para exibir os netos, nunca o fez sem permissão.

Todos os amigos dele e suas famílias vieram. A aglomeração deixou Maria Eduarda, então com nove meses, irritadiça e enjoada. Não estava acostumada com tanta gente, e todos queriam pegá-la no colo.

— Seus netos são lindos, mas a bebê é xerox do pai! — comentou uma amiga do meu sogro enquanto eu me sentava com Duda.

— Sim. Maria Flor é mistura de nós dois, e Eduardo Manoel é a cara da mãe — concordei. Era verdade: meu menino herdara meus traços, ao contrário de Vitória, clone feminino do pai. Sua semelhança comigo sempre evitou questionamentos sobre não ser filho biológico do Eduardo.

— Quem diria que o menino que cuidava de flores e brincava com as meninas — até passava maquiagem! — seria um homem de família — disse o marido dela com deboche. Vi o desconforto estampar o rosto do meu sogro.

— Todos sabiam que a empresa não teria futuro com seu "filho florzinha" — completou o homem, sorrindo de lado.

— Ainda bem que ele brincou de boneca! — interveio minha sogra, afiada. — Eduardo é um pai fantástico. O homem mais completo que conheço.

— Sinceramente, Amadeu... — o intruso inclinou-se para meu sogro, apontando Duda. — Se essa bebê não fosse a cara do Eduardo, eu duvidaria que ele é homem de verdade...

Ergui-me num impulso, sangue pulsando nas têmporas.

— Oi?! Está insinuando o quê? Sou casada com o Eduardo há 12 anos e nunca o trairia! Esperamos para ter filhos porque éramos jovens, mas minha fidelidade nunca foi questionada!

O silêncio caiu sobre o grupo. Até a música sertaneja pareceu diminuir. Eduardo, que ensinava Manoel a laçar um bezerro de mentira a dez metros dali, ergueu a cabeça como um lobo farejando perigo.

Antes que o ofensor reagisse, meu sogro Amadeu avançou. Seus olhos, sempre gentis, brilhavam com fúria contida:

— Aurélio Rossi, você cruzou o limite. Meu filho é dez vezes mais homem que você — cuspiu o nome igual a um insulto. — Isabel é a mulher mais amável, doce e direita que já conheci e não admito que você fale algo assim da mãe dos meus netos eu tenho está menina com o minha filha, e o Eduardo não precisa provar nada a ninguém, muito menos a um covarde que ataca famílias em festa de criança. Saia da minha propriedade. Agora.

O constrangimento foi tão espesso que dava para cortar. O casal tentou murmurar desculpas, mas meu sogro virou as costas. Quando passaram por Eduardo, ele parou na frente deles, erguendo Manoel no colo como um estandarte:

— Meu pai disse tudo. Só acrescento que homens de verdade não medem masculinidade por brincadeiras de infância, mas por honra. E a minha você acabou de pisar e o pior a honra da minha mulher e você pode falar o que quiser de mim, mas dá minha mulher e dos meus filhos não. — o Eduardo pela primeira vez na vida saiu de si e deu um murro na cara daquele velho escrota.

Enquanto se retiravam sob olhares reprovadores, Eduardo chegou até mim. Seu braço envolveu meus ombros, e eu afundei naquele abraço que era meu porto seguro há mais de uma década.

— Obrigada, amor — sussurrei, enterrando o rosto em seu peito.

— Você foi incrível — ele murmurou contra meu cabelo.

A festa aos poucos foi voltando só normal porém nada me preparou para ver aquelas pessoas entrando com um presente enorme sendo trazido por três funcionários.

Meu pai estava com um sorriso no rosto, e a minha mãe toda arrumada não sabia o que eles estavam fazendo ali nos não os convidamos, e eu deixei claro que não queria eles lá.

— Onde está o meu neto? — ele perguntou

— O nosso neto está andando de cavalo com um dos cuidados — o meu sogro falou e a minha mãe ficou me encarando.

— Vocês poderiam chamar eu gostaria de dar o meu presente — ele falou olhando para mim e para o Eduardo.

— Vovô, vovô olha para mim — o Eduardo Manoel gritou vindo cavalgando rápido.

— Filho cuidado — eu e o Eduardo gritamos juntos e ele parou.

— Você viu vovô eu fiz igualzinho ao senhor — ele falou todo orgulho e o avô tirou ele do cavalo.

— Você está de parabéns — disse o Amadeu todo orgulho do Neto. — Seu outro avô quer te ver — ele falou levando o meu menino para perto do meu pai.

— Este é o meu neto? — meu pai repetiu, olhando Eduardo Manoel com aquele ar de superioridade que sempre teve.

Mas o que ele não esperava… era que ela aparecesse.

Vitória surgiu calmamente, segurando uma bandejinha com cupcakes que ajudou a decorar mais cedo. O laço no cabelo, o vestido simples, os olhos atentos. Tinha treze anos, mas já carregava o olhar de quem conhecia o mundo demais. Aproximou-se devagar, um meio sorriso nos lábios, os passos leves, graciosos, como tudo nela.

Meu pai empalideceu.

Minha mãe levou a mão à boca.

E eu... eu congelei.

A bandeja quase caiu das mãos da Vitória quando ela percebeu o olhar fixo e gelado que vinha da minha mãe. Ela parou ao meu lado, instintivamente me procurando com os olhos.

— Vitória... — murmurei, quase num fio de voz.

Mas já era tarde. Meu pai apontou pra ela com um dedo trêmulo de raiva.

— Essa menina... é aquela criança? A bastarda? A aberração?

— Cuidado com o que fala — Eduardo rosnou ao meu lado.

Meu pai avançou. Os olhos cheios de fúria. A voz num tom que me transportou para os corredores brancos e frios de um hospício. Para os dias sem fim de solidão e perda.

— Você escondeu isso de nós! Você nos desonrou, Isabel! Deixou aquela… aquela coisa... sobreviver! E ainda cria como neta? Como se fosse normal?! — ele gritou, os braços agitados, descontrolado.

— Ela é minha filha! — gritei de volta, finalmente. — E é sua neta sim, querendo ou não!

— VOCÊ DEVIA TER SIDO TRANCADA PRA SEMPRE! — ele avançou como se fosse me atingir.

Foi quando Eduardo se colocou entre nós. O olhar do homem doce que eu amava agora era de aço.

— O senhor não vai encostar um dedo nela. Nem falar da Vitória desse jeito. Nem dela, nem de nenhum dos meus filhos.

— Filhos? — ele cuspiu a palavra com desprezo. — Isso aí não é família. É uma palhaçada que você montou pra fingir que venceu. Mas você continua sendo aquela menina fraca que arruinou tudo.

— Ela é a mulher mais forte que eu conheço, e o senhor não sabe de nada — Eduardo retrucou, o maxilar travado.

Foi então que, do outro lado, ouvimos um baque.

Eduardo Manoel tinha empurrado o presente gigante que os funcionários ainda tentavam montar.

Ele veio marchando, com os olhinhos marejados e o rosto em fogo.

— Sai da minha festa! — gritou, a voz falhando de emoção. — Você não é meu avô! Meu avô é o vô Amadeu! Você é feio por dentro! Feio de verdade!

Meu pai se virou, surpreso com a coragem do menino.

Eduardo Manoel não recuou.

— Não fala assim da minha irmã nunca mais! Ela é minha irmã de verdade! E a mamãe é a melhor mãe do mundo! E o papai é o melhor pai também!

— Manoel... — sussurrei, emocionada. Mas ele continuou:

— Vai embora! Ninguém gosta de você aqui. Você magoou minha mãe e eu não gosto de quem machuca ela!

Aquelas palavras, ditas por uma criança de cinco anos, pesaram mais do que qualquer discurso.

Meu pai bufou, furioso, mas percebeu que não havia mais terreno ali.

Nem respeito. Nem espaço. Nem poder.

Virou-se, puxando minha mãe pelo braço. Ela sequer olhou para trás. Talvez por vergonha. Ou porque também não suportava ver o que o tempo tinha feito conosco.

Vitória permaneceu em silêncio. Seus olhos, doces como sempre, me procuraram.

— Tudo bem, mãe?

Puxei-a para perto, abraçando-a com força. E foi naquele abraço que tudo se dissolveu — o medo, a dor, os anos de silêncio. Ali estava minha filha. Minha menina. E ninguém mais ia tirá-la de mim.

Eduardo me envolveu por trás. Nosso porto seguro estava de pé.

— Agora sim — ele disse, encostando a testa na minha. — Agora essa festa está perfeita.

E, mesmo com o coração ainda tremendo, eu acreditei.

Porque em meio a cavalos, vaquinhas, chapéus e bandeirinhas, a maior vitória daquela festa... era estarmos todos juntos.

Apesar de tudo.

Por causa de tudo.

Família.

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A tensão pós-festa era como um alçapão prestes a ceder. Os capangas do meu pai não eram agressivos, mas sua presença constante – o carro preto estacionado no fim da rua, os mesmos homens de óculos escuros na porta da escola, o telefone que tocava e silenciava antes do primeiro toque completo – criou um clima de cerco. Eduardo Manoel, meu pequeno vaqueiro-chefe, parou de correr livremente no jardim. Passava horas no cercadinho com Relâmpago, seu cavalo, como se o animal fosse uma fortaleza viva.

Foi numa tarde abafada, uma semana depois, que Amadeu nos convocou na fazenda. A sala grande, outrora cheia do cheiro de bolo e risadas, estava carregada de uma solenidade pesada. Celina segurava minhas mãos geladas enquanto Amadeu, de pé diante da lareira fria, desfiou a verdade como quem desenrola um novelo de arame farpado.

O Acordo.

Cento e Trinta e cinco milhões. Por ano. Durante treze anos. O preço da nossa paz. O suborno pago ao meu pai para que ele mantivesse distância, para que não usasse seu poder, sua influência nefasta, para me destruir, Para não afundar Eduardo e seus negócios. Tudo porque ele não suportava a minha existência e principalmente dos meus gêmeos – a "mancha" em sua pretensa honra – e a minha recusa em ser quebrada por ele novamente.

— Eu não podia deixar que ele terminasse o que começou quando você tinha dezoito anos, Isabel – Amadeu disse, a voz rouca de emoção contida. — Vi o que ele fez contigo. O que ele quase conseguiu. O dinheiro... era a única linguagem que ele respeitava.

Neste momento o seu Amadeu me contou que o jeito que cheguei tão sem vida como se tivesse sendo forçada o fez fazer uma limpeza no meu passado e que quando soube do tempo que passei no hospício o fez pensar na história da sua própria esposa, a Flora que sempre me viu como filha que sempre me tratou com tanto carinho foi levada com quisesse anos grávida do Amadeu os pais dele tinham o mandando para Portugal e os país dela a jogaram lá ela perdeu o bebê depois da primeira sessão de choque, e só saiu quando o Amadeu voltou e a salvou e os dois se casaram, mas o pai dela não os davam paz e única coisa que a Flora pediu foi para o Amadeu me proteger

A culpa me engoliu viva. Cento e Trinta e cinco milhões. Por ano . A fortuna que meus sogros, esses anjos de carne e osso, despejavam na cova sem fundo da crueldade paterna. Eduardo levantou-se, abalado, e apertou o ombro do pai:

— Você devia ter me contado, pai. Nós carregaríamos juntos.

— O fardo era meu, filho – Amadeu retrucou, seu olhar pousando em Manoel, que observava tudo com os olhos sérios demais para seus cinco anos. — Mas naquela festa... quando ele chamou minha neta de aberração... quando você, Eduardo, defendeu sua mulher com as mãos e a honra... quando este pequeno guerreiro aqui – ele apontou para Manoel, cujo peito se inflou – expulsou aquele homem da sua festa... algo dentro de mim estalou. Liguei para ele naquela mesma noite. Disse que o acordo estava morto e enterrado. Que se ele ou seus cães de caça se aproximassem de novo de qualquer um de vocês, enfrentaria não só minha fúria, mas toda a força, todo o dinheiro, todos os contatos que eu tenho neste mundo. E que, se necessário, eu mesmo o arrastaria para a luz do dia e mostraria ao mundo o monstro que ele é.

A coragem dele era avassaladora, mas o frio na base da minha espinha era real. Meu pai não era homem que aceitava afrontas. Ele retaliaria.

....

Os capangas eram apenas o prelúdio. Nos dias seguintes:

O Ataque aos Negócios: Dois caminhões de um fornecedor vital para a empresa de Eduardo "pegaram fogo" misteriosamente no pátio. Um contrato público crucial foi suspenso "por suspeita de irregularidades" – irregularidades que nunca existiram.

A Calúnia Sussurrada: Rumores começaram a circular nos círculos sociais de Goiânia. Que Isabel era "instável", que passara um "tempo em tratamento" na juventude. Que era "problemática", "estranha", "influência perigosa para as crianças".

A Investida Legal: Um advogado de ternos caros e sorriso de gelo apareceu na fazenda com um documento. Meu pai pedia "avaliação psiquiátrica compulsória" para mim e "investigação sobre a idoneidade do ambiente familiar" – especialmente para Eduardo Manoel, seu "único neto legítimo".

Foi quando ela apareceu.

Minha mãe.

Bateu à porta da fazenda numa manhã ensolarada, vestida com uma simplicidade que tentava parecer humilde, os olhos vermelhos e inchados.

— Isabel, filha... – a voz trêmula, as mãos estendidas num gesto suplicante que conhecia bem. — Precisamos conversar. Só nós duas. Mãe e filha.

Deixei-a entrar na varanda dos fundos, longe dos olhares curiosos das crianças. O perfume que ela usava, outrora um cheiro de conforto, agora me enojava.

— Ele está perdendo o controle, querida – soluçou, esmagando um lenço de renda contra os olhos. — Eu não quero essa guerra. Eu só quero paz... ver meus netos... ver o Manoel crescer... Você sabe como é o coração de uma avó...

Olhei para aquela mulher – a mesma que assistira impassível enquanto me trancavam num hospício aos dezoito anos, que encarara Vitória com puro nojo, que lucrara silenciosamente com o acordo sujo por treze anos.

— O que ele te prometeu desta vez? – perguntei, a voz tão fria quanto meu coração. — O que ele quer que você descubra? Os horários das crianças? Os pontos cegos da segurança? O quarto onde Vitória dorme?

Ela empalideceu, o choro teatral secando num instante. Os olhos, por um segundo, brilharam com raiva pura.

— Como você pode pensar isso? Eu sou sua mãe!

— Você era – corrigi, erguendo-me. — Agora você é a mensageira dele. Saia. Agora. E diga ao seu marido que se mandar você de novo, eu mesma vou até a toca dele. E não irei com palavras.

Ela saiu, o andar trôpego transformando-se em passos firmes assim que cruzou o portão. A máscara de vítima caíra. Restava a cumplice.

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Amadeu e Eduardo transformaram a fazenda em um bastião. Advogados tão implacáveis quanto o do meu pai contra-atacaram com processos por difamação, stalking, assédio moral e extorsão – as fotos dos capangas, os registros das ligações silenciosas, o documento de ameaça, eram armas poderosas. Seguranças particulares, homens durões de confiança inabalável, patrulhavam o perímetro dia e noite. Até as crianças foram envolvidas, de forma lúdica mas séria. Eduardo Manoel ganhou um walkie-talkie vermelho.

— É só para emergências de verdade, filho – Eduardo explicou, ajoelhando-se diante dele.

— Se vir alguém estranho onde não devia, ou se a Vitória ou as irmãs te disserem, você aperta aqui e fala 'Código Relâmpago'. Entendeu?

— Sim, papai – Manoel respondeu, sério, segurando o aparelho como um talismã. — Eu protejo todo mundo. Igual o vô Amadeu.

Vitória, porém, era meu calo na alma. Encontrei-a uma noite no quarto escuro, olhando para uma foto antiga dos irmãos do Eduardo, bebê, e as dos seus irmãos.

— Ele sempre me odiou só por existir, não foi, mãe? – sussurrou, sem tirar os olhos da foto.

– Eu sou o erro que ele não consegue apagar.

Ajoelhei-me ao seu lado, envolvendo-a num abraço que queria ser um escudo contra todo o mal do mundo.

— Ele odeia porque não consegue entender o amor, minha flor. Odeia a escuridão que ele mesmo carrega dentro do peito. Você é luz. E luz queima quem escolheu viver na sombra. Mas nós? – afastei-me um pouco, levantando seu queixo para que seus olhos lindos encontrassem os meus – Nós te amamos com a força de um sol. Você é filha, irmã, neta querida. Nada, nada que ele fizer pode mudar isso. Você é nossa Vitória. E vitórias não se apagam.

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Eles vieram numa noite sem lua, quando até os grilos pareciam ter medo de cantar. Três vultos rápidos e silenciosos pularam o muro baixo perto das cocheiras. O alvo era claro: Relâmpago. O cavalo que era o coração de Manoel. Machucá-lo, sequestrá-lo, usá-lo como isca para atrair meu filho... a maldade tinha muitas formas.

O que não contavam era com João, o velho capataz que conhecia cada pedra da fazenda. Ele os viu deslizando como sombras e acionou o alarme silencioso que instaláramos.

O alarme soou. Baixo, quase imperceptível — mas suficiente.

A fazenda entrou em alerta. Eduardo correu descalço pela varanda, arma em punho. Os seguranças se espalharam em formação. A luz da sala piscou duas vezes. Código Relâmpago.

Mas já era tarde.

Relâmpago estava em segurança no estábulo reforçado, protegido como um membro da família. O verdadeiro alvo era outro.

Meu filho.

— Manoel! — gritei, a garganta rasgando em desespero.

Seu walkie-talkie estava em cima da mesa. Abandonado.

A janela do quarto estava aberta.

A cama vazia.

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Fugiram por um dos acessos da trilha de serviço, onde a mata era mais espessa e o muro mais baixo. O carro preto que sempre ficava ao fim da rua agora acelerava sem faróis acesos, engolindo a noite com seus pneus ferozes.

Dentro dele, meu pai estava no banco traseiro, segurando o neto no colo como se fosse um troféu roubado. Manoel, amarrado, com um pano sobre a boca, chorava em silêncio. Seus olhinhos redondos de medo não piscavam.

— Aquele moleque insolente vai aprender — ele sussurrou para si mesmo. — Vai aprender o que é ter medo. Vai saber que nada que nasce de você pode ser digno.

Ao lado dele, um dos capangas gritava:

— Estão vindo atrás, chefe! Estamos sendo perseguidos!

— Acelera! Pega a estrada velha! — ordenou com fúria.

O carro fez uma curva fechada. As rodas traseiras derraparam no barro solto da chuva da semana passada. O motorista tentou recuperar o controle. Mas era tarde.

A traseira bateu contra uma árvore. O carro girou, capotando duas vezes antes de descer uma ribanceira.

Silêncio.

A poeira ainda nem havia baixado quando Eduardo chegou com os seguranças, os faróis dos carros iluminando a cena da tragédia.

Manoel foi o único encontrado com vida, dentro do veículo tombado, preso ao banco traseiro com um cinto improvisado. O bracinho esquerdo virado em um ângulo estranho. O rostinho coberto de lágrimas e sangue seco. Mas vivo.

Meu pai não teve a mesma sorte. O capanga ao lado também não.

Eduardo correu até o carro, puxando a porta com força até rasgar a lataria.

— Manoel! Filho! Papai tá aqui, tá tudo bem! — sua voz tremia.

O menino gemeu, com os olhos abertos, pequenos e corajosos mesmo na dor.

— Papai... eu gritei, mas ele disse que ninguém me achava...

— Eu achei, meu amor. Eu sempre vou achar você — Eduardo sussurrou, tirando-o com cuidado e o envolvendo no casaco.

Eu cheguei logo depois, descalça, coberta de lama, desesperada. Quando vi meu filho nos braços do Eduardo, ferido mas respirando, um soluço profundo atravessou minha alma.

— Mamãe... meu braço... — ele choramingou.

— Vai ficar tudo bem, meu amor. A mamãe está aqui — falei, beijando sua testa enquanto as sirenes da ambulância rompiam o silêncio da madrugada.

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No hospital, confirmaram: fratura no úmero esquerdo, cirurgia simples, sem sequelas.

No velório do meu pai, não fomos.

Eduardo e Amadeu cuidaram de tudo. Eu fiquei na varanda da fazenda, sentada com Vitória ao meu lado, vendo o sol nascer atrás do pasto como uma promessa. Segurava a mão do Manoel enfaixada, enquanto ele cochilava com a cabeça no meu colo.

Foi quando o doutor que cuidava da parte jurídica nos ligou.

— O testamento foi aberto. O senhor... seu pai, deixou tudo para você. A fortuna. Os imóveis. A empresa. Tudo.

Ri. Um riso sem alegria.

— Tem alguma carta, alguma pista sobre o meu filho? — perguntei

— O testamento só diz que tudo ele deixa para única filha.

— Pelo menos vou ter paz.

Desliguei. E olhei para minha filha, que sorria de canto, os olhos tranquilos pela primeira vez em semanas.

— Vitória... — sussurrei, acariciando o cabelo dela. — Você estava certa. Algumas vitórias não se apagam.

Ela encostou a cabeça no meu ombro.

— E outras... a gente conquista todos os dias. E mãe nos vamos encontrar o meu irmão, mesmo que leve a vida toda vamos achar.

— Você está certa, vamos encontrar o meu primogênito — falei recebendo um abraço muito quente em família.

©©©©©©

Continua...

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