Mundo ficciónIniciar sesiónO jantar parecia uma vitrine. A mesa longa demais, cheia demais, arrumada demais.
Orquídeas brancas, talheres alinhados como soldados, velas altas iluminando tudo com um brilho suave.Ashiley sentou-se ao lado de Gustavo.A família dele ocupava o outro lado da mesa, conversando sobre negócios, eventos e acordos como quem fala do clima.
Tudo ali era bonito, impecável… e sufocante.
Gustavo se inclinou levemente e perguntou baixo:
— Está tudo bem?
Ela ajeitou o guardanapo sem olhar para ele.
— Estou como esperavam que eu estivesse.
Ele não respondeu, mas ela percebeu o que ele pensou.
“Você não está.”
Durante o jantar, Gustavo prestou atenção em cada pequeno detalhe dela. Quando o garçom serviu vinho demais, ele cobriu discretamente a taça para não sobrecarregá-la.
Quando alguém perguntou sobre o “sumiço” dela nos últimos anos, ele respondeu antes dela abrir a boca:— Ela estava vivendo a própria vida — disse, com calma firme. — Como qualquer adulto tem o direito de fazer.
Foi uma defesa simples, mas inesperada. O pai dela ergueu uma sobrancelha. A mãe, Lígia, sorriu como se tivesse acabado de ganhar um presente caro.
Ashiley não disse nada.
Mas algo ali mexeu com ela.No meio da mesa, o pai de Ashiley levantou a taça.
— Um brinde — anunciou. — À união das nossas famílias e ao futuro brilhante que estão prestes a construir.
Todos ergueram as taças.
Gustavo, porém, falou antes que o brinde se encerrasse.
— Eu brindo a algo mais simples — disse. — O direito de fazermos as coisas no tempo certo. Sem pressão. Sem exposição.
Algumas pessoas estranharam a fala. Ashiley também.
Ele virou a taça, mas não tirou os olhos dela.
E por um segundo, só um segundo, ela sentiu que ele estava falando com ela — e não com a mesa inteira.
Quando a sobremesa chegou, o jantar já parecia interminável. Ashiley se levantou para respirar um pouco no jardim iluminado lá fora. O ar fresco bateu em seu rosto. Fez bem.
Logo, Gustavo apareceu na porta.
— Posso? — perguntou.
Ela deu de ombros.
—Vivemos em um país livre.
Ele caminhou até ela, mas manteve distância.
— Você não gosta daqui — disse, sem rodeios.
Ela soltou um riso curto.
— Você notou isso rápido.
— Eu presto atenção.
Ashiley cruzou os braços.
— Prestar atenção não significa entender.
— Então me explica — ele disse, calmamente. — O que te incomoda?
Ela pensou em responder “tudo”.
A mesa cheia, o controle, os olhares, o peso do sobrenome, o contrato, o noivado que não pediu, a vida que estava vestindo como uma roupa que não servia.Mas disse apenas:
— Não gosto de ser tratada como parte de um plano.
Gustavo ficou em silêncio por alguns segundos antes de responder:
— Eu também não gosto.
Aquilo a pegou de surpresa.
— Como é?
— Eu nunca gostei dessa forma de fazer as coisas — ele confessou. — Nasci dentro de um roteiro que não escrevi. Sei como é.
Ela o observou com mais atenção agora.
— Então por que aceita?
Ele soltou o ar devagar.
— Porque às vezes… viver dentro do plano é mais seguro do que viver fora dele.
Aquela frase bateu nela como uma verdade que ela mesma conhecia.
Porque fugir também cansa. Doer também cansa. Ser livre às vezes pesa mais do que ser controlada.
Ela olhou para as mãos dele. Sempre firmes. Sempre tranquilas. Uma calma que não obrigava, que não empurrava.
— Eu não quero ser um contrato — disse ela.
— Não será — Gustavo respondeu, sem hesitar. — Eu não quero uma noiva enfeitada. Quero uma parceira.
A palavra “parceira” mexeu com ela. Era maior que “noiva”. Era mais real.
— Não vou te prometer nada que eu não possa cumprir — ele continuou. — Mas posso prometer que nunca vou te expor. Nunca vou te envergonhar. Nunca vou te deixar sozinha quando o barulho começar.
Ela sentiu a garganta apertar — não de emoção, mas de reconhecimento.
Naquele mundo, alguém dizendo “eu não vou te expor” era quase como dizer “eu vou te proteger”.
— Gustavo… — ela começou, mas não sabia como terminar.
Ele deu um passo para trás, como se não quisesse pressionar.
— Não precisa dizer nada agora.
O resto da noite passou em selfies discretas da família, fotos oficiais e sorrisos de fachada.
Ashiley aguentou tudo no piloto automático.Gustavo sempre por perto. Não tocando, só presente.
Na hora de ir embora, ele se aproximou mais uma vez.
— Amanhã quero te mostrar a casa de campo onde pretendemos fazer o anúncio das famílias — disse ele. — Não é uma obrigação. Quero que veja se se sente bem lá.
Ela hesitou.
— Tudo isso acontecendo rápido demais…
— Eu sei — ele disse. — Por isso quero fazer devagar do jeito certo. Não do jeito que esperam.
Aquilo a desarmou um pouco.
Ele então tocou de leve o ombro dela. Nada íntimo. Só um gesto.
E disse baixo:
— Boa noite, Ashiley.
Ela não respondeu de imediato.
Mas quando ele já estava se afastando, ela disse:— Boa noite.
Mais tarde, no quarto, Ashiley tirou os brincos, soltou os cabelos e olhou o próprio reflexo no espelho. Ela estava cansada, mas não quebrada. No criado-mudo havia o colar antigo que encontrara no dia anterior. O colar da avó. Ela o pegou de novo.
E, sem saber bem por quê, levou até o peito e fechou os olhos. Não era uma lembrança.
Era uma âncora.Era a prova silenciosa de que, por baixo de todo aquele protocolo, havia uma mulher que se recusava a ser apagada.
Da porta entreaberta, a casa parecia imóvel.
Como se estivesse esperando para ver quem ela escolheria ser no dia seguinte.E ela sabia que amanhã, ao acordar, precisaria encarar uma nova fase — ainda mais exposta, ainda mais observada.
Mas, segurando aquele colar, ela percebeu algo pela primeira vez:
Talvez ela não estivesse tão sozinha assim.
Ao longe, sem ela saber, Pietro encarava o teto de um quarto de hotel, sem conseguir dormir, sentindo um vazio que ele não sabia nomear.
E, pela primeira vez em anos, os dois estavam distantes demais para se alcançarem.
E talvez isso fosse exatamente o que precisava acontecer.







