Mundo de ficçãoIniciar sessãoAntes da Tempestade
Um ano antes...
O vento trazia consigo o cheiro salgado do mar quando o carro de Havenna cruzou a ponte estreita que levava de Montévia até Puerto Nuvem. O entardecer tingia o céu de tons âmbar e lilás, refletindo-se nas águas tranquilas que pareciam guardar segredos antigos. Seu coração batia em um compasso lento, como se reconhecesse cada curva da estrada, cada casa adormecida na beira da colina, cada lembrança que insistia em ressurgir.
Havia algo de silencioso e quase ritualístico naquele retorno, o tipo de volta que não se faz apenas com malas, mas com fantasmas.
A mãe de Havenna a esperava no portão, sorrindo com o mesmo semblante que misturava ternura e preocupação.
Ao vê-la sair do carro, abriu os braços num gesto acolhedor.— Minha menina, você está tão diferente. — a voz da mãe soou doce, mas trêmula de emoção.
Havenna a abraçou forte, sentindo o cheiro familiar que tanto lhe faltara. — Acho que eu mudei mesmo, — respondeu com um sorriso cansado. — Mas é bom estar de volta.Os primeiros dias foram feitos de reencontros simples: o café forte da manhã, as histórias de Amália contadas entre gargalhadas, o cheiro de bolo saindo do forno e a tranquilidade típica de quem vive longe das urgências da capital. Tudo tinha o gosto de um passado que ainda doía, doce demais para ser ignorado, amargo demais para ser lembrado sem cautela.
Naquela noite, Puerto Nuvem parecia suspensa no tempo. As luzes dos postes refletiam-se nas poças da última chuva, e o ar trazia um frio brando, quase aconchegante. Havenna caminhava ao lado de Amália pela rua principal, os saltos ecoando como pequenas batidas de relógio.
— Nem acredito que está mesmo de volta. — disse Amália, abraçando-a de lado.
— Nem eu. Achei que nunca mais pisaria aqui. — respondeu Havenna, rindo com um toque de nervosismo. — Você precisava de uma pausa. Montévia consome as pessoas. Aqui é mais... leve. — Leve e cheio de lembranças. — completou Havenna, em tom baixo.Amália riu, sem perceber a densidade escondida nas palavras da amiga.
— Amanhã quero te levar no café novo, o antigo “Cantinho da Lúcia”. Agora se chama “Café do Farol”. Adrian e alguns amigos vivem por lá, vai adorar. Havenna estacou por um breve instante. — Adrian ainda mora aqui? — a pergunta escapou antes que ela pudesse conter. — Claro que sim. — respondeu Amália naturalmente. — Você achou que ele tinha ido embora? Ele assumiu parte da clínica do nosso pai. Tá sempre ocupado, mas continua o mesmo. Havenna apenas assentiu, tentando disfarçar a confusão que o nome dele ainda causava. — Faz tempo que não o vejo — mentiu, olhando para o chão. — Pois vai vê-lo mais cedo do que imagina. Puerto Nuvem é pequena demais pra evitar alguém por muito tempo.As duas riram, mas Havenna sentiu o estômago revirar. Sabia que Amália nunca soubera da verdade, apenas suspeitara de uma antiga proximidade entre ela e o irmão mais velho, algo que sempre ficara entre o evidente e o impossível.
Na manhã seguinte, o sol nascente pintava as fachadas de dourado, e o cheiro de maresia se misturava ao de café fresco. Havenna ajeitou o cabelo diante do espelho, tentando disfarçar o nervosismo que não fazia sentido, ou fazia demais.
Quando chegou ao Café do Farol, o som dos sinos da porta anunciou sua entrada. O lugar era diferente, mas o aroma era o mesmo: café forte, canela e lembranças.
Foi quando o viu.Adrian estava de pé, junto ao balcão, conversando com o barista. O tempo não o havia mudado, apenas aprofundado e moldado, deixado os traços mais marcantes. O olhar ainda firme, o sorriso contido, o mesmo ar tranquilo que escondia mais do que revelava. Mas era ele. Inconfundível. Ele se virou, distraído, e seus olhos se encontraram.
O instante durou o suficiente para o mundo prender a respiração.
Ele pareceu surpreso, mas não esboçou reação. Havenna manteve a expressão neutra, embora o coração pulsasse como se tentasse escapar do peito.
— Havenna? — a voz dele era a mesma, levemente rouca, inconfundível.
— Oi, Adrian. — Quanto tempo… — Sim, um bom tempo.O silêncio que se seguiu era denso, quase palpável. Nenhum dos dois sabia o que dizer.
Amália chegou segundos depois, alegre e alheia ao peso que pairava entre eles. — Ah, ótimo! Vocês já se encontraram! — sorriu, inocente. — Sabia que se lembrariam um do outro.Eles se entreolharam novamente, e, dessa vez, o olhar foi mais longo. Não havia mais espaço para disfarces: o passado nunca fora enterrado. Apenas adormecido.
Do lado de fora, o vento começou a soprar mais forte. As nuvens se formavam lentamente sobre o mar, prenunciando algo que ainda ninguém podia prever.
E Havenna soube, no fundo da alma, que aquela era apenas a primeira brisa antes da tempestade.






