Capítulo 17LunaO som da chaleira apitando foi o que me tirou dos pensamentos. Eu estava sentada na cozinha, as mãos envoltas na caneca de porcelana que Chiara tinha preparado minutos antes, e mesmo com o calor do chá contra a pele, ainda sentia um frio estranho por dentro. A sensação de estar à beira de algo. De cair ou de escolher ficar.Chiara desligou o fogo e virou-se para mim com aquele ar calmo que parecia ser tão natural quanto sua postura sempre ereta. Havia algo reconfortante nela, mesmo quando tudo ao nosso redor parecia ameaçar desmoronar.— Você não dormiu bem — disse ela, mais uma constatação do que uma pergunta.Balancei a cabeça em silêncio, soltando o ar devagar.— Foi o beijo? — ela arriscou, com um leve levantar de sobrancelha.Revirei os olhos, mas não consegui esconder o calor subindo pelas minhas bochechas. Chiara era sutil... mas não demais.— Foi tudo. O beijo. A sabotagem. A sensação de que Marcelo está mais perto do que a gente pensa. E... — hesitei — a sens
Capítulo 18LunaChiara segurava uma pasta com os nomes de possíveis aliados para uma reunião marcada naquela noite. Eu, ainda com o estômago apertado, sentia que algo estava prestes a mudar.Dante estava no salão principal da casa, já reunido com dois de seus homens de confiança e mais três aliados recém-chegados da fronteira com o Paraguai. O clima era tenso, mas funcional. Cada um sabia o que estava em jogo. Rivas havia voltado à ativa, não de forma oficial, mas pelas sombras. Os rumores de sua “ressurreição” já haviam corroído a confiança de vários empresários e capangas.— Preciso que fiquem atentos ao sul. As cargas que saem de lá estão sendo interceptadas — Dante dizia, de pé, com os olhos fixos em um dos mapas sobre a mesa. — Se Marcelo tiver mesmo reativado os contatos no litoral, vamos perder uma rota inteira.Sentei ao lado de Chiara, mais como ouvinte do que participante. Eu não era estrategista, não era chefe, não era soldado. Mas estava ali. E só isso já dizia muito.A c
Capítulo 19LunaAcordei com o corpo dolorido e o som abafado de vozes na sala ao lado. Ainda havia cheiro de pólvora no ar, e meu coração demorou a aceitar que eu estava viva, inteira, respirando. As imagens da noite anterior vinham em flashes cortantes: os gritos, os tiros, o sangue e Chiara, caída no chão, os olhos arregalados antes de eu arrastá-la para longe da linha de fogo. Eu tinha reagido. Tinha salvado alguém. E agora... não havia mais como fingir que eu era só uma espectadora dessa guerra.Vesti uma camiseta larga e prendi o cabelo num coque desleixado antes de sair do quarto. A casa parecia uma fortaleza silenciosa. As janelas reforçadas, os guardas em alerta, e no meio daquele caos contido, ele estava lá.Dante.De costas, falando com um dos homens sobre reforçar o perímetro. Usava uma camisa escura com as mangas dobradas, o cabelo ainda molhado do banho. Quando me viu, dispensou o outro com um simples gesto.— Dormiu? — perguntou, a voz mais baixa do que eu esperava.— T
Capítulo 20LunaO silêncio no salão parecia algo sagrado.Não era o tipo de silêncio confortável, nem tampouco aquele tenso que antecede uma briga. Era um silêncio de perda. De quem recebeu uma notícia que não queria ouvir, mas não podia negar.Chiara foi a primeira a se afastar da sala de reuniões. Eu a segui com o olhar, vendo as mãos trêmulas dela segurando o celular como se ainda esperasse que a mensagem desaparecesse, que fosse um engano. Mas não era.A mensagem tinha sido clara."Ela foi encontrada. Morta. No rio. Sinais de tortura."Júlia. A informante de Dante infiltrada entre os homens de Rivas havia mais de dois anos. Uma mulher forte, discreta, com uma coragem silenciosa que eu só agora compreendia. E agora… morta. Um corpo jogado como lixo, como aviso.— Ele a expôs de propósito — Dante disse, a voz baixa, grave, com os olhos fixos em um ponto invisível à frente. — Fez com que ela fosse descoberta. Sabia que estávamos perto demais de algo. Precisava cortar a linha.— Você
Capítulo 21LunaA madrugada arrastava seus minutos como se o tempo tivesse perdido a pressa. Eu não conseguia dormir. Nem queria. A imagem de Júlia, ainda que eu nunca a tivesse conhecido direito, queimava sob as pálpebras. Era como se cada pedaço daquela tragédia tivesse se entranhado em mim como um lembrete cruel de que qualquer um podia ser o próximo.Andei pelo corredor escuro da casa. Todos dormiam, ou fingiam dormir. Chiara me disse antes de se recolher que a dor às vezes descansava melhor no silêncio. Eu só não sabia mais descansar.Passei em frente à porta do escritório de Dante.Trancada.Era claro. A mente dele era um cofre. E o mundo ao redor, uma ameaça.Mas naquela noite, algo me puxava. Uma inquietação. Um sentimento estranho de que eu precisava ver além da máscara.Voltei até a cozinha. Peguei uma das cópias da chave mestra, que Chiara guardava para emergências. E aquela era uma.Emergência do coração.O clique da fechadura foi quase inaudível. Entrei devagar. Nenhuma
Capítulo 22DanteEla invadiu meu espaço como se sempre tivesse pertencido a ele.Eu estava revendo arquivos, tentando traçar o próximo movimento, quando ouvi a porta do meu quarto bater. E ali estava ela — os olhos queimando, o rosto pálido, mas a postura firme. Luna estava mudando. E, talvez, isso fosse o que mais me assustava.— Você sabia — ela disse, a voz carregada. — Sabia que ele matou sua irmã. E não me disse nada.A dor estava ali, evidente demais pra esconder. Suspirei, sentindo a tensão atravessar meu peito como um ferro quente.— Não é o tipo de coisa que se compartilha com alguém que ainda está decidindo de que lado quer ficar.Ela se aproximou, os passos curtos e decididos. — Eu escolhi, Dante. No momento em que te salvei. No momento em que vi Chiara no chão e não fugi. E você ainda me trata como uma peça descartável.Me levantei devagar. — Eu trato você como alguém que pode morrer a qualquer momento por estar ao meu lado. Não é proteção, Luna. É sobrevivência.Ela me
Capítulo 23LunaNão precisávamos de provas pra saber. Era como sentir a vibração de um terremoto prestes a começar. E eu sabia que ele não deixaria barato. Ainda mais agora que eu tinha cruzado a linha, não só traído, mas me entregado ao inimigo.Me levantei devagar, tentando não acordar Dante. Peguei a camisa dele do chão e vesti, os botões tortos e a gola larga caindo sobre meu ombro. Fui até a janela.A cidade estava viva. Impassível. Como se não tivesse ideia do que estava prestes a acontecer.Encostei a testa no vidro, deixando o frio me trazer de volta à realidade. Eu era parte da guerra agora. E aquilo ali, aquela noite com Dante, tinha sido só uma trégua. Um respiro antes da próxima batalha.— Você anda como se o chão estivesse prestes a desabar — a voz dele me fez estremecer.Me virei e encontrei Dante recostado na cabeceira da cama, os olhos semicerrados, mas atentos. O lençol cobria parte do corpo, mas nada escondia o jeito como ele me olhava. Com uma intensidade que me de
Capítulo 24MarceloNada é mais eficaz do que a verdade misturada à mentira. O veneno só funciona bem quando disfarçado de remédio.Espalhei os boatos com precisão cirúrgica.Usei meus contatos em Curitiba, gente que Dante achava que havia descartado. Um entregador que já fora motorista de confiança, uma secretária que só pensava em sair da periferia, e um velho aliado que devia favores demais para me negar qualquer coisa.A mensagem era simples: um carregamento de armas viria pelo litoral, uma remessa grande demais para passar despercebida. Com nomes falsos, rotas falsas, e um destino que fazia sentido demais para não ser crível.Dante é inteligente. Mas inteligência demais faz o homem querer controlar tudo. E controle, nesse jogo, é ilusão.A verdadeira armadilha é dar a ele aquilo que espera.Enquanto isso, minhas sombras se moviam. Gente infiltrada. Códigos alterados. Informações comprometidas.E no centro de tudo isso… ela.Luna Santiago.A mulher que ousei transformar e que agor