Na manhã seguinte, o céu clareou por apenas duas horas — e mesmo assim, em tons pálidos de cinza e gelo.
Madeleine caminhava pelo canteiro como quem se reensinava a ocupar espaço. Cada passo sobre a neve prensada era um lembrete do lugar estranho onde agora existia. O hotel tomava forma devagar. Os painéis de madeira sustentável, que ela mesma aprovara, haviam começado a chegar. Clara se referia àquela fase como “o nascimento visível”. Madeleine preferia pensar em gestação: muito do que importava ainda estava enterrado sob camadas de estrutura.
Clara a encontrou perto das estacas de fundação, prancheta em mãos e cabelo preso num coque tão apertado que parecia militar.
— A fundação norte precisa ser reforçada. O engenheiro alertou que o solo ali está menos estável do que os testes mostraram.
Madeleine leu os dados por cima do ombro dela, absorvendo a informação como quem analisa um diagnóstico.
— Dá pra contornar. Podemos usar base flutuante.
Ela apontou. — E distribuir o peso com estrutura em arco. Se usarmos aço reciclado, ainda mantemos o conceito de sustentabilidade.
Clara sorriu de leve.
— É por isso que te trouxeram.
Madeleine não respondeu. Aquilo era um elogio, mas também uma responsabilidade. Ser "trazida" implicava ter que justificar presença. E ela já estava cansada de precisar provar que merecia permanecer em qualquer lugar.
Enquanto anotava os ajustes, percebeu uma figura se aproximando pela lateral do canteiro. Emil. O garoto andava com passos seguros, equilibrando uma garrafa térmica entre as luvas e uma sacola de papel no outro braço. Anders vinha alguns metros atrás, mas desacelerou quando viu que o menino acelerava sozinho na direção delas.
— Trouxe café — Emil anunciou, parando diante das duas.
Madeleine sorriu.
— Então você é oficialmente parte da equipe agora?
Ele ergueu os ombros como quem não sabia se aquilo era uma promoção ou uma punição.
— Meu pai disse que se eu entregasse isso antes da escola, podia ficar desenhando depois.
— É um bom acordo — comentou Clara, pegando uma das garrafas. — Obrigada.
Emil estendeu outra garrafa a Madeleine, junto com uma sacola. Dentro, havia dois pães de centeio e um pequeno pote de geleia, envolto num pano com bordado antigo.
— Foi você quem fez? — ela perguntou, curiosa.
Emil balançou a cabeça.
— Não. Veio numa caixa. Meu pai congela quase tudo que chega.
Ela sorriu, imaginando a rotina silenciosa daquela casa.
— Parece bom. Tem gosto de inverno?
Ele deu de ombros, mas os olhos brilharam como se aquilo fosse um segredo compartilhado.
Madeleine olhou na direção de Anders, que observava de longe com uma expressão indefinível. Como se estivesse sempre pronto para recolher os cacos do filho, caso o mundo fosse cruel demais.
Ela se agachou diante de Emil.
— Sabe que aquela escada em espiral que você desenhou... eu incluí no rascunho.
Os olhos dele se iluminaram.
— Sério?
— Sério. Está em fase de teste, mas... acho que ficou bem melhor com a sua ideia.
Emil tirou o caderno da mochila e sentou-se ali mesmo, no chão batido, encostado numa pilha de painéis de madeira. Madeleine voltou ao trabalho, mas o observava pelo canto do olho. Ele desenhava com concentração total. A ponta da língua escapava entre os lábios, como se estivesse traduzindo pensamentos para traços invisíveis.
Anders permaneceu em silêncio. Só quando Clara se afastou para uma ligação, ele se aproximou o suficiente para ser ouvido.
— Ele não fazia isso desde que... — Anders começou, mas não terminou. Os olhos ficaram presos no filho. — Desde que ela se foi.
Madeleine entendeu. “Ela” podia ser muitas coisas. A mãe biológica, a esposa, a figura feminina que preencheu algum espaço e depois sumiu.
— Ele é talentoso. Tem um olhar... inteiro.
Anders assentiu, mas a tensão nos ombros não se desfez. Ele parecia sempre à beira de proteger, como quem aprendeu cedo demais que o mundo leva, mesmo quando a gente tenta segurar com força.
— Clara disse que você é especialista em sustentabilidade — ele comentou, mudando de assunto com um certo esforço.
Madeleine olhou surpresa, mas agradeceu mentalmente a tentativa de manter a conversa viva.
— É. Sempre achei que construir deveria deixar o mundo um pouco melhor do que encontrou. Mesmo que seja só um prédio.
— Não é só um prédio pra ele. — Anders indicou Emil com um gesto de queixo. — Ele acha que esse hotel é um monstro dormindo. Que vai acordar quando estiver pronto.
Ela sorriu, tocada pela imaginação de Emil.
— E o que ele acha que acontece quando o monstro acordar?
— Ele não diz. Mas vive desenhando barcos. Pontes, às vezes.
Acho que, na cabeça dele, esse hotel é como um navio grande. Que leva as pessoas pra longe. Pra algum lugar melhor.Madeleine ficou em silêncio. Não sabia se era poético ou triste. Talvez os dois. Talvez fosse os dois porque a infância era assim mesmo — cheia de partidas imaginárias.
Anders virou o rosto para ela, o olhar firme, mas sem dureza.
— E você?
O que espera que esse prédio faça?Ela pensou por um momento. Depois respondeu, sem se olhar:
— Me deixar de pé.
Naquela noite, Madeleine passou mais tempo do que o necessário organizando os rascunhos no notebook. O aquecedor zumbia como sempre, mas a sensação de frio interno parecia ter recuado um pouco. O estojo de aquarela continuava sobre a mesa, manchado e antigo, mas agora com um sol amarelo desenhado na tampa — Emil.
Ela escreveu um e-mail para o advogado de família. Breve. Educado. Mas, pela primeira vez, sem medo de parecer desesperada.
Gostaria de saber se há previsão para uma nova visita com Beatrice.
Estou bem. Estável. Trabalhando num projeto importante. Pensando nela todos os dias.Não enviou de imediato. Leu, reescreveu, hesitou. Mas então clicou em "enviar".
E pela primeira vez desde o colapso, sentiu que algo estava se movendo.
Não era perdão.
Não era esquecimento. Mas talvez fosse vida — voltando, centímetro por centímetro.Dias depois, ao chegar ao canteiro mais cedo do que o habitual, encontrou uma folha dobrada sobre a prancheta.
Era de Emil.
Um novo desenho.A escada espiral agora envolvia um cristal gigante no centro do prédio. Dentro dele, uma menina desenhava o sol. E, ao lado, um pequeno monstro sorria.
Madeleine encostou a folha no peito.
Talvez ela ainda pudesse aprender a construir alguma coisa.
Mesmo que fosse do zero.