Mundo de ficçãoIniciar sessãoEstela
Desci as escadas com o coração em frangalhos, mas com a coluna ereta. Cada passo era um esforço para não desabar, mas eu me recusava a chorar ali. Não na frente dele. Não depois do que ouvi.
Fui até o quarto, peguei minha mala e arrumei tudo com uma rapidez fria. Eu não podia ficar mais nenhum minuto ali.
Passei pela cozinha, onde Maria Júlia preparava café com Luca sentado à mesa, rindo de alguma coisa boba. A cena, por um segundo, apertou meu peito. Eles me olharam, surpresos.
— Vai sair tão cedo, Estela? Maria Júlia perguntou, com aquela doçura que só ela tinha.
Forcei um sorriso.
— Preciso ir. Foi bom estar aqui com vocês.
Ela franziu o cenho.
— Está tudo bem?
Assenti em silêncio e me aproximei para abraçá-la. Depois me abaixei e abracei Luca
com força, segurando as lágrimas com todas as forças do mundo. Eles não entenderam nada. E era melhor assim.
Atravessei a sala com a mala nas mãos, e ele estava lá. Guilherme. De costas, na varanda, tomando café.
Quando passei por ele, sem olhá-lo, ouvi sua voz baixa, tensa.
— Ninguém pode saber do que aconteceu.
Parei. Não por ele. Mas por mim.
Ele virou o rosto em minha direção e viu a mala.
— Pra onde você vai?
Endireitei os ombros, levantei o queixo.
— Embora.
Ele quis falar mais alguma coisa. Vi sua boca se mexer, vi a confusão no olhar. Mas eu apenas virei as costas e saí. Não escutei mais nada. Não precisava.
Eu não era uma qualquer.
Entrei no carro, fechei a porta e desabei. Um choro rasgado, doído, profundo. Chorei por mim. Pela dor. Pela decepção. Pelo amor que, por anos, cresceu em silêncio e que agora morria dentro de mim.
— Meu pai me criou como uma princesa… murmurei, com os olhos fechados e o corpo tremendo. — E eu sou uma princesa. Filha do Rei. E nunca mais… nunca mais vou permitir que um homem me trate como se eu fosse menos do que isso. Nunca mais.
Liguei o carro com os olhos marejados e o coração em pedaços. Mas havia algo novo em mim: determinação. Eu não ia mais esperar por ninguém. Não ia mais me deixar definir por ninguém. Muito menos por ele.
Seis horas de estrada. Seis horas engolindo o choro, parando em postos só pra respirar, tomar uma água, fingir que estava tudo bem. Mas não estava. Nada estava.
Quando cheguei em Sacutinga e estacionei em frente à casa dos meus pais, meu coração parecia querer rasgar meu peito. O portão estava aberto, como sempre, e, assim que desci do carro, vi minha mãe na varanda. Ela me olhou como só mãe sabe olhar, aquele olhar que atravessa qualquer disfarce.
— Estela? ela disse, surpresa.
Não consegui responder. Só caminhei até ela, com as pernas trêmulas e o coração esgotado. Quando senti seus braços me envolvendo, desabei. Me agarrei nela como uma criança que perdeu o chão.
— O que aconteceu, minha filha? ela perguntou, me guiando pra dentro.
Sentei no sofá com ela. As palavras ficaram presas por alguns segundos, e então começaram a sair. Baixas, cheias de culpa, mas verdadeiras.
— Eu bebi, mãe... ele também. A gente bebeu demais naquele maldito churrasco. E... eu me entreguei pra ele. Foi minha escolha. Eu sabia o que estava fazendo.
Ela não disse nada. Só apertou minha mão.
— Eu não sou mais uma menina. Eu sempre soube o que sentia por ele. Desde adolescente eu sonhava com esse momento. Ele era o meu príncipe, mãe. O meu príncipe Guilherme.
As lágrimas voltaram com força.
— Eu imaginei que seria mágico... especial. Que ele ia me olhar como nos filmes, sabe? Como nos contos de fada. Mas ele… ele foi um ogro. Um estúpido. Um covarde.
Minha mãe me olhava com ternura, mas os olhos já estavam marejados também.
— Quando acordei... ele me olhou como se eu fosse um erro. Como se eu fosse um peso. Me disse que aquilo nunca deveria ter acontecido. Que a gente passou dos limites. Como se eu tivesse me jogado em cima dele, mãe.
— Filha…
— Eu me vesti em silêncio. Me senti suja, pequena... mas não fraca. Porque eu decidi. Eu fui por vontade própria. Ele não me usou à força. Mas ele... ele me matou com as palavras.
Engoli o choro e continuei, com a voz firme:
— Meu pai me criou como uma princesa. Ele sempre disse que eu era filha do Rei. E eu sou. E nenhuma filha do Rei merece ser tratada assim. Eu não vou aceitar. Nunca mais.
Minha mãe me abraçou de novo, dessa vez mais forte.
— Eu não volto mais, mãe. Acabou. O Guilherme morreu pra mim.
Ela acariciou meu cabelo, em silêncio, até eu respirar fundo de novo.
— Eu vou aceitar a proposta da professora. A bolsa. A universidade na Colúmbia. Eu quero ir pros Estados Unidos. Eu preciso ir embora daqui.
Ela assentiu, com os olhos brilhando de orgulho e dor.
— A gente vai sentir sua falta... seu pai vai sofrer, mas a gente só quer te ver feliz. Livre. Inteira.
Fechei os olhos, tentando gravar aquele momento. O colo da minha mãe. A dor sendo acolhida. A força voltando, pouco a pouco.
Eu não era mais a menina apaixonada por um médico bonito. Eu era a mulher que ia se reconstruir , e que nunca mais aceitaria migalhas de ninguém.
Liguei com as mãos suando. O número da professora Clara ainda estava salvo, e mesmo depois de meses sem contato, ela atendeu no primeiro toque.
— Estela? a voz dela saiu animada, como sempre.
— Professora… sou eu, sim, respirei fundo — Eu quero ir. Aceito a bolsa. Quero estudar na Colúmbia.
Do outro lado da linha, o silêncio veio antes do sorriso.
— Você tem certeza?
— Tenho. Mais do que nunca.
— Então deixa tudo comigo. Vou correr com os papéis, passaporte, documentação. O prazo está apertado, mas se você estiver disposta, a gente faz acontecer.
— Estou. Professora… obrigada. De verdade.
— Você é brilhante, Estela. Eu sabia que uma hora ou outra você ia entender isso. Nos falamos amanhã com os detalhes.
Desliguei. Ainda tremia, mas era como se uma nova porta tivesse se aberto na minha frente.
Fui até a sala, onde meu pai assistia televisão com a cabeça encostada no sofá. Ajeitei os cabelos, puxei o ar com força e me aproximei.
— Pai…
Ele me olhou com carinho, os olhos se iluminando. Meu pai sempre foi meu herói.
— Oi, minha princesa. Conseguiu descansar um pouco?
— Consegui… mas eu preciso te contar uma coisa. Eu aceitei a bolsa. Vou pra Colúmbia.
A expressão dele desmanchou devagar. Os olhos encheram d’água. A boca entreaberta tentou formar palavras que não vieram de imediato.
— Vai… vai pra longe de mim?
— Vou. Mas só por um tempo. Eu preciso, pai. De verdade.
Ele se endireitou no sofá e olhou fundo nos meus olhos.
— Mas por quê, filha? Aconteceu alguma coisa?
Fiquei em silêncio. Olhei pro chão, tentando segurar as lágrimas.
— Estela… — ele murmurou, com a voz grave — o Guilherme tem algo a ver com isso?
Engoli em seco. Não consegui responder. Só abaixei a cabeça.
Ele se aproximou e me puxou pra um abraço apertado. Forte. Aquele abraço que só meu pai sabia dar.
— Filha… você sempre foi e sempre será minha princesa. A maior joia da minha vida. Você
e o Luca são tudo o que tenho de mais precioso. E não importa onde estiver, eu estarei com você. Pra tudo. Pra sempre.
Me permiti chorar ali, mas já não era mais um choro de fraqueza. Era um choro de libertação.
Naquela noite, deitei na cama que já não me pertencia mais. Observei o teto e repassei tudo o que aconteceu. Cada palavra, cada toque, cada olhar. Eu tinha me entregado a um sentimento antigo, puro, e ele... não soube cuidar.
Mas, ainda assim, eu não me arrependia.
“Foi a melhor experiência da minha vida.” Pensei. “Não pelo final, mas porque foi real. Intenso. Meu.”
Sorri amargo.
— Eu nunca vou te esquecer, Guilherme… sussurrei no escuro — mas vou tirar você da minha cabeça. Porque meu coração... esse, você não vai mais ter.”
Fechei os olhos. Pela primeira vez, sem dor. Só com certeza.
Eu estava indo embora. E nunca mais voltaria por ele.







