POV: Estela
A roupa branca do plantão parecia pesar o dobro naquela noite. O espelho do banheiro mal escondia o cansaço no meu rosto. Mas o que me tirava a concentração não era o sono. Era ele. A lembrança insistia em se repetir em minha mente. As mãos dele. Os olhos. Os toques. A forma como dizia meu nome como se tivesse decorado cada letra com a boca. Respirei fundo, prendendo o cabelo num coque apressado. O plantão me aguardava, e minha cabeça precisava voltar para o lugar certo. Chegando ao hospital, mal pisei na sala dos médicos e Catarina já me lançou aquele olhar de escândalo. — Você não tem ideia do quanto eu quis te ligar o dia todo! — ela disse, jogando-se ao meu lado. — Me conta,O cara sumiu mesmo? — Sumiu. Sem nome, sem número. Só um “L.” num bilhete no travesseiro. Ela arregalou os olhos. — Nossa. Isso é muito... sexy. E um pouco assustador. Você tem noção do quanto ele era bonito? Você lembra, né? — Como se eu conseguisse esquecer... Catarina me deu um empurrãozinho de leve com o ombro. — E agora? — Agora eu tenho um plantão. E uma cabeça que não para de lembrar o que devia esquecer. Antes que ela respondesse, meu bipe apitou. Emergência. Trauma. Sala 2. — Hora de voltar à realidade — murmurei, ajustando o jaleco e caminhando para a batalha do hospital, tentando sufocar a guerra que acontecia dentro de mim. Três cirurgias. 5 horas seguidas com as mãos cobertas de sangue, olhos fixos, músculos tensionados. Eu havia salvo uma vida e perdido outra. Tinha suturado, reanimado, intubado. E agora, tudo o que meu corpo pedia era descanso. Ou açúcar. A cantina do hospital estava vazia, banhada por uma luz fria e um silêncio que só era quebrado pelo zumbido dos refrigeradores. Sentei sozinha em uma das mesas, com um pedaço de bolo de chocolate e um café amargo fervendo, tudo que eu precisava. "Madrugada longa" pensei, apoiando a cabeça na mão. O gosto dele ainda parecia estar nos meus lábios, mesmo que eu não admitisse em voz alta. L. Aquele nome que eu nem sabia completo, mas que estava tatuado nos meus pensamentos como fogo sob a pele. Foi quando ouvi uma voz suave e masculina ao meu lado. — Está viva? Levantei o olhar e vi Eduardo — o médico pediatra da ala de traumas. Alto, barba bem feita, olhos claros, e aquele tipo de sorriso gentil que acalma crianças e mães em desespero. — Na metade — respondi, tentando sorrir. Ele se sentou sem convite, mas com a leveza de quem sabia que não era um incômodo. Era o tipo de cara... fácil. No bom sentido. Racional. Sensível. Respeitado no hospital. E se não fosse por aquele outro... talvez eu notasse mais. — Vi que você saiu de uma cirurgia difícil — disse ele, cruzando os braços. — Você sempre tem essa cara de quem saiu de uma guerra, ou foi só hoje? — Guerra é elogio. A guerra pelo menos tem uma pausa de vez em quando — brinquei, tentando me manter no momento, mesmo que minha cabeça ainda estivesse no quarto de hotel, nas mãos do Sr. L (como o resolvi chamar já que não sabia seu nome completo) marcando minha pele como propriedade. Eduardo riu. Era encantador. Mas não incendiava. Não bagunçava. — Bom, talvez você precise de uma pausa real. Um café... fora daqui. Que tal? Fiquei levemente sem graça. Havia algo no jeito dele que era doce, honesto. Mas eu estava um caos por dentro. E minha cabeça não conseguia desligar do homem que me deixou sozinha numa cama de hotel com lençóis amassados e lembranças perigosas. — Eu... claro. Pode ser. Café. Aceitei. Me senti uma adolescente estranha ao dizer isso. Ele sorriu satisfeito, levantando-se. — Ótimo. Te mando mensagem. Preciso voltar, chamaram no rádio agora. Até mais, Estela. Pegou meu número e sumiu pelos corredores antes que eu pudesse processar o que tinha acabado de acontecer. Catarina chegou exatamente no segundo seguinte, jogando-se na cadeira em frente como se tivesse carregado um hospital inteiro nas costas. — Eu vou morrer antes do café da manhã. Se eu ver mais um caso de apendicite, eu mesma vou arrancar o meu. Ela notou meu rosto vermelho e levantou a sobrancelha. — O que foi? Quem era o Eduardo todo sorrisos? Suspirei, tomando mais um gole de café frio. — Me chamou pra sair. Um café. Algum dia desses. Ela arregalou os olhos e depois caiu na risada, batendo a mão na mesa. — Você aceitou?! Jura? — Eu... não sabia como dizer não. Ele é legal. Um cara incrível, até. Só... — Só que não é o “homem-mistério-da-balada”? — provocou com um olhar malicioso. — Não é. E isso... tá sendo um problema. Antes que eu pudesse continuar, meu bipe apitou. Alto. Urgente. Acidente grave. Múltiplas vítimas. Em segundos, a tranquilidade ilusória da madrugada virou um campo de batalha. Corredores começaram a se encher de sons: macas, gritos, vozes aceleradas no rádio. Sangue. Sirenes. Guardei o celular no bolso, levantei-me de um salto. A noite estava apenas começando — e dessa vez, não havia beijos quentes, lençóis ou desejos sussurrados. Só bisturis, adrenalina e o som de vidas sendo empurradas até a beira. O hospital inteiro parecia respirar de forma diferente quando o caos chegava. O som das portas automáticas se abrindo com força, os gritos abafados, as sirenes misturadas aos comandos médicos... era como se o mundo inteiro girasse mais rápido. Três vítimas. Uma criança com fratura exposta, um homem com hemorragia interna, e uma jovem com trauma craniano. Todos levados para a emergência ao mesmo tempo. Enquanto muitos travavam no pânico, eu flutuava na precisão. A adrenalina me guiava como se meu corpo fosse uma máquina treinada para salvar. E era. — Códigos cruzados! Sala 3 precisa de acesso venoso e estabilização agora! — gritei, já com as luvas vestidas, empurrando a porta da sala de cirurgia. Suturas, respiração mecânica, controle de sangramento, compressões. Meu nome era chamado a todo momento. “Dra. Estela”, “doutora, aqui”, “ela perdeu os sinais!”. Eu era tudo o que aquelas pessoas tinham entre a vida e o fim. Horas. O caos não tinha fim. Quando consegui sentar, já era quase oito da manhã. Me arrastei até a área de descanso dos médicos, meu corpo gritando por um banho, meu estômago vazio. Joguei o jaleco no sofá, amarrei o cabelo em um coque improvisado e desabei no colchão em uma das bicamas. O celular vibrou. “Mãe” Respirei fundo e atendi. — Oi, mãe. — Estela! Filha, são oito da manhã, você ainda está no hospital? — Plantão infernal. Três cirurgias, e o caos tomou conta. Mas sobrevivi. Sua voz soou preocupada e doce, como sempre. — Você não dorme direito, não come, e vive nessa cidade que parece que nunca para... Nova Iorque te consome, meu amor. — Eu sei, mãe. Mas é aqui que eu me sinto... viva. — Você precisa de um homem decente que te tire desses corredores — ela disse com um riso disfarçado. Sorri, pensando no oposto exato do que ela imaginava. Um homem perigoso, misterioso, que me consumiu em uma noite e me deixou com um sabor de pecado na pele. — E eu preciso de um banho e sete horas de sono, só isso. — Fala com sua irmã, ela está aqui do meu lado. A voz animada da minha irmã mais nova invadiu o telefone, me perguntando de tudo — dos plantões às séries que eu prometi que veríamos juntas nas férias. Depois de alguns minutos, desliguei com um “te amo” abafado, sentindo o corpo começar a pesar. A manhã seguiu em ritmo constante, mas nada comparado ao caos da madrugada. Dei alta em dois pacientes, reavaliei alguns exames e por fim, chegou a minha folga. O alívio era quase físico. Cheguei em casa e encarei a bagunça do meu apartamento. Jalecos jogados, louça acumulada, remédios fora do lugar. Liguei o som, coloquei uma playlist qualquer e comecei a arrumar o espaço — talvez tentando organizar por fora o que estava caótico por dentro. Antes de qualquer coisa, precisava fazer compras. Abri o armário: zero comida. Coloquei uma calça larga, um moletom e fui até o mercado da esquina. Peguei coisas básicas — leite, frutas, vinho, claro. Sempre vinho. E foi no corredor dos cereais que senti. Aquela sensação. Como se alguém estivesse me observando. O tipo de arrepio que sobe pelas costas e congela a base da nuca. Olhei discretamente ao redor, mas ninguém chamava atenção. Apenas um homem mais velho, duas senhoras escolhendo iogurte... e ainda assim, algo estava errado. Apressei o passo. Paguei as compras e saí com o coração batendo mais rápido do que deveria. Caminhei para casa olhando por cima do ombro algumas vezes. Nada. Mas a sensação não passava. Assim que entrei em casa, travei a porta e respirei fundo. — Para, Estela. Cansaço. Só isso. Mas uma parte de mim sabia que era mais. Aquele pressentimento não era qualquer coisa. Não era só ansiedade. Era algo... instintivo. Deixei as sacolas na cozinha e me joguei no sofá, puxando o cobertor sobre as pernas. Liguei a TV para fingir normalidade, escolhi uma série leve e tentei me convencer de que tudo estava sob controle. Mas a lembrança da sensação de estar sendo observada, continuava pairando sobre a minha cabeça.