A noite parecia sufocar. Não fazia calor, mas o ar dentro do pequeno apartamento era denso, carregado de mágoas não ditas, de palavras cuspidas em brigas passadas e silêncios cortantes. As paredes, tingidas de bege desbotado, pareciam encolher a cada novo conflito. O relógio digital da sala piscava em vermelho: 22h47mn.
Clara Sarah Davis olhou na direção do quarto da filha e desejou, com todas as forças, que ela não estivesse absorvendo toda a dor que a crise conjugal despejava sobre a casa. Que, por um milagre, aquela noite passasse despercebida para Katiany.
Sentada no sofá, ainda de jaleco, Clara segurava uma xícara de chá frio nas mãos. Os cabelos castanhos estavam presos num coque frouxo, revelando o cansaço de mais um plantão no hospital veterinário. Seu rosto, de traços suaves, agora trazia olheiras profundas e uma rigidez no maxilar que parecia permanente. Quando ouviu a porta da frente bater com força, levantou a cabeça lentamente, já sem se abalar.
— De novo, Joseph? — disse sem levantar. Sua voz saiu firme, mas baixa, como quem já não tem forças para se exaltar. — Onde você esteve?
Joseph Davis entrou cambaleando, os ombros curvados, o rosto vermelho. Jogou as chaves no aparador com um estalo metálico. O cheiro de cigarro e álcool precedia sua presença. A jaqueta surrada denunciava não apenas os anos de uso, mas a vida desfeita que ele arrastava consigo. Nos bolsos amassados, o peso de dívidas não pagas e decisões mal feitas. Nas costuras rasgadas, vestígios de brigas antigas — algumas nas ruas, outras dentro de si. Ele parou no meio da sala, apontando o dedo indicador para ela.
— Fui tentar resolver minha vida, doutora! — respondeu, sarcástico, com um sorriso torto. — Mas é claro que você nunca entende. Sempre ocupada demais com os seus bichinhos, né?
Clara se levantou devagar. O coração batia acelerado, mas o corpo se movia com controle. Era experiente naquela dança tóxica.
— Fale baixo... caso contrário, vai acordar a Katiany. E, a julgar pelo horário, certamente você perdeu o emprego. De novo.
— Perdi, sim! — ele explodiu, jogando os braços para o alto. — E quer saber por quê? Porque eu não tenho paz nessa casa! Porque sou tratado como lixo!
— Não, Joseph. Você perdeu porque não consegue ficar longe das apostas por uma semana. Porque mente. Porque some por horas. Porque nunca assume seus erros — disse ela, com um olhar cortante.
Ele se aproximou com os punhos cerrados, os olhos faiscando. Clara não recuou, mas sentiu o estômago revirar. Na porta do corredor, uma figura surgiu. Katiany.
Magra, vestindo um moletom largo demais, meias coloridas e o cabelo escuro com os do pai, preso num coque improvisado. Aos doze anos, seus olhos grandes e castanhos pareciam ter visto mais do que deveriam. Herdara o olhar do pai, mas nele não havia mais brilho. Observava a cena em silêncio, os braços cruzados sobre o peito, o corpo tenso. Em pensamento, repetia como um mantra: Por favor, que eles não briguem de novo. Por favor...
Ela não suportava mais os olhares dos vizinhos no elevador, os cochichos no corredor. Sentia vergonha. Sentia raiva. Mas, acima de tudo, sentia medo.
Joseph deu um soco na mesa de centro. A madeira gemeu. Clara se sobressaltou e instintivamente posicionou-se à frente da filha. Katiany levou as mãos aos ouvidos, trêmula.
— Você sempre achou que é melhor do que eu, né, Clara? A certinha, a veterinária que salva animais enquanto destrói a própria família!
— Não fale de família! — Clara respondeu, o rosto em brasa. — Você nunca se importou com essa família! Nem com ela! — apontou para Katiany — e muito menos comigo. Nunca compareceu como pai. Sempre bêbado... ou perdendo o meu salário em alguma mesa de jogo!
Joseph deu um passo à frente, raivoso.
— Você não presta, Clara! Você me afasta da minha filha! Me trata como um nada! Quer saber?
Fez uma pausa, olhando com desprezo.
— Vai embora então! Vai viver com os teus cachorros! Me deixe em paz!
— Com prazer! — ela gritou.
— Parem... — a voz de Katiany saiu como um sussurro, quase inaudível. Mas ninguém ouviu.
Joseph começou a apontar o punho para Clara, despejando insultos. Ela rebatia com frieza, tentando manter o controle. A tensão explodia pelas paredes. Até que...
— PAREM! — gritou Katiany, agachando-se no chão.
O grito foi agudo, rasgado, como um trovão no silêncio. Ela caiu de joelhos, tapando os ouvidos com força, chorando como se algo dentro dela se partisse. Clara correu até a filha e a abraçou.
— Shh... meu amor... eu estou aqui — sussurrou, ajoelhada ao lado da menina.
O grito de Katiany dizia tudo o que Clara também sentia. Aquela era a última gota. O ponto de ruptura.
Clara se levantou. Sem hesitação, foi até o quarto. Pegou duas mochilas. Começou a encher com roupas, escova de dentes, documentos, a carteira e a pelúcia preferida da filha. Tudo de forma metódica, fria.
Joseph a observava da porta, perplexo, calado.
— Clara... espera... — murmurou, sem força.
Ela o encarou.
— Isso acabou, Joseph. De verdade. Acabou.
Pegou Katiany pela mão e caminhou em direção à porta. Mas então ele avançou e agarrou a menina pelos braços, arrancando-a das mãos de Clara.
— Se quiser ir embora, vá sozinha. Mas minha filha... você não vai levar!
— Solta, Joseph. Solte-a agora ou não respondo por mim!
— O que você vai fazer? Me morder? — zombou, rindo sem humor.
— Mãe... por favor... me ajuda... — implorou Katiany, a voz sufocada pelo choro.
Clara não pensou. Apenas agiu. O som seco do soco ecoou na sala. Joseph caiu de joelhos, com o nariz sangrando, atônito. Ela segurava o punho, levemente dolorido, mas firme.
— Nunca mais chegue perto de nós, seu inútil.
Sem dizer mais nada, puxou a filha pela mão e saíram. A luz fraca do corredor iluminava os passos firmes de Clara. A porta do apartamento se fechou com um clique seco. Atrás delas, Joseph gritava ameaças, mas agora... não importava mais.
Horas depois, em um hotel simples de beira de estrada, Clara estava sentada em uma poltrona manchada. A filha dormia com a cabeça em seu colo. A TV passava um programa antigo. Do lado de fora, caminhões cruzavam a estrada molhada. A garoa fina desenhava linhas lentas nas janelas.
Clara não dormiu. Quando o céu começou a clarear, tingido de cinza pálido, ela se espreguiçou, pegou o celular e fez duas ligações.
— Doutor Álvaro? É a Clara Sarah Davis. Eu já decidi. Pode dar entrada no divórcio. Hoje. Eu não volto mais para casa.
Pausa. — Sim. Tenho certeza. A segunda ligação foi rápida.
— Hospital São Gabriel? Aqui é a Dra. Clara Davis. Estou pedindo demissão. Não, não é temporário. É definitivo.
Desligou e olhou para a filha, que despertava aos poucos. O rosto de Katiany estava mais leve, mas os olhos ainda traziam a sombra da noite anterior.
— Aonde a gente vai, mãe?
Clara pensou por um momento. E então sorriu. Pequeno, mas sincero.
— Para onde você conseguir dormir... sem precisar tapar os ouvidos.
Mais tarde, na recepção do hotel, Clara tomava um café fraco demais, mas que queimava na garganta como recomeço. Um jornal dobrado repousava sobre o balcão. Pegou-o por distração. Ao folhear a terceira página, um anúncio chamou sua atenção.
“Procura-se veterinária experiente para trabalhar no interior do Texas. Alojamento incluso. Começo imediato.”
Ela leu uma vez. Depois, de novo. E mais uma vez. Olhou para Katiany, que dobrava e desdobrava distraída num guardanapo, perdida em pensamentos.
Texas. Campo. Silêncio. Um lugar bem longe de Joseph. Só isso já parecia o paraíso...
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