O caminho de terra até a clínica serpenteava entre carvalhos baixos, suas folhas sussurrando histórias antigas ao vento. A poeira avermelhada, levantada pelos pneus do carro, tingia o ar de um tom enferrujado, como se o tempo ali tivesse decidido descansar da pressa do mundo. Clara mantinha os olhos fixos no horizonte, mas por dentro, a nostalgia batia como uma maré traiçoeira.
Lembrou-se do apartamento minúsculo na cidade grande, das paredes rachadas que testemunharam seus sonhos mais loucos e suas decepções mais amargas. Joseph ainda habitava aquelas memórias como um fantasma teimoso — seu sorriso fácil, suas promessas vazias, o jeito como ele sempre achava um jeito de fazê-la se sentir culpada. Agora, tudo o que restava era um início de divórcio e uma filha que carregava no olhar a mesma dor que ela tentava esconder.
Katiany, no banco do passageiro, deslizava o dedo pela tela do celular em um silêncio pesado. Seus olhos castanhos — tão parecidos com os do pai — estavam distantes, presos em algum lugar entre a raiva e a saudade. Clara observou de relance, os dedos apertando o volante. Queria dizer algo, abraçá-la, prometer que tudo ficaria bem. Mas as palavras pareciam falsas até mesmo para ela.
— Quase chegando — murmurou, mais para quebrar o silêncio do que por real necessidade.
Katiany apenas assentiu, sem levantar os olhos.
Saiu da estrada de barro e virou onde a placa indicava o início da cidade de Cypress Hill a 2 km. Após alguns minutos, chegou à cidade: Cypress Hill era daquelas cidades que pareciam esquecidas pelo tempo. Três ruas principais, uma praça com um coreto descascado e um café onde todos se conheciam pelo nome — e sabiam de mais da metade da vida uns dos outros. A cidade inteira cheirava a pão de milho recém-assado, grama cortada e poeira vermelha trazida pelo vento. Os letreiros antigos rangiam com o vento, e a farmácia ainda usava sininhos na porta.
Na entrada da cidade, um letreiro de madeira desbotado dava boas-vindas a quem passava, como se dissesse: “Aqui o tempo corre mais devagar.” Se tiver pressa, não fique.”
A clínica veterinária ficava na esquina da rua principal, entre a floricultura Dona May e a oficina Jenkins. Era um casarão de madeira clara, com a pintura descascando nas beiradas e um letreiro que balançava levemente com o vento:"Clínica Veterinária São Francisco." Um velho carvalho à frente parecia guardar o lugar, suas raízes entrelaçadas no solo como dedos firmes.
Mal haviam estacionado quando um homem de chapéu desgastado e sorriso largo surgiu na porta, acenando como se as conhecesse há anos.
— Dra. Clara? — chamou, a voz rouca, mas calorosa. — Sou o doutor Enéas. Pode me chamar só de Enéas, que aqui ninguém liga para formalidade.
Ela apertou sua mão, sentindo a aspereza da pele marcada por décadas de trabalho. Havia algo reconfortante naquela simplicidade, algo que a cidade grande nunca permitira.
— Obrigada por me receber tão rápido — disse, tentando não parecer tão exausta quanto se sentia.
— Quando vi teu currículo, não tive dúvidas. A cidade precisa de gente como você — ele respondeu, os olhos piscando de satisfação. — A clínica é humilde, mas funciona. Só vai precisar se acostumar com o ritmo… e com os pacientes. Teimosos como mula empacada, mas no fundo são bons corações.
Clara sorriu, apesar do nó no estômago. A recepção era rústica, com cadeiras de madeira desgastada e paredes adornadas por quadros de santos populares. O cheiro de álcool e limão impregnava o ar, misturado com um leve traço de mofo. Era diferente de tudo o que conhecia — e, de algum modo, isso a aliviava.
— A casa que vem com o emprego fica a umas quatro quadras daqui — explicou Enéas, puxando uma chave enferrujada do bolso. — Está meio velha, mas é espaçosa. Se precisar de conserto, ligue para o Noah. Ele é o melhor marceneiro da região… quando não está de mau humor.
Clara arqueou uma sobrancelha.
— Noah?
— Noah Carter — Enéas riu, como se já antecipasse o conflito. — Bom trabalhador, mas tem o pavio curto. Se você não quiser ouvir um "não", não peça nada depois das quatro da tarde.
— Ótimo — ela resmungou, imaginando mais um homem difícil na sua vida. Já bastava Joseph e suas manipulações silenciosas.
A casa era pior do que ela esperava. A varanda rangia sob seus pés como um aviso, as tábuas cedendo levemente. A pintura branca estava descascada, revelando camadas de cores passadas — azul, verde, um amarelo desbotado. As janelas, empoeiradas, refletiam o céu alaranjado do entardecer, e a porta da frente tinha uma fechadura que parecia desafiar qualquer chave.
— Isso aqui é de verdade? — Katiany murmurou, os olhos arregalados.
Clara engoliu seco. O banheiro tinha azulejos de um verde horrível, daqueles que só existiam nos anos 70, e o aquecedor no canto da sala parecia mais uma relíquia de museu do que um eletrodoméstico funcional.
Mas o que a pegou de surpresa foi o silêncio. Na cidade, sempre havia barulho — carros, vizinhos, a TV ligada em volume alto para abafar as discussões. Aqui, só se ouvia o farfalhar das folhas e, lá longe, o latido ocasional de um cachorro. Era assustador. Era libertador.
— Por enquanto, é o que temos — disse Clara, pousando uma mão no ombro da filha. — Mas vamos fazer disso um lar.
Katiany não respondeu, mas seu olhar perdido no vazio dizia tudo. Ela sentia falta do pai. E Clara não sabia como preencher esse vazio.
Naquela mesma noite, enquanto desempacotavam as poucas coisas que trouxeram, uma batida firme na porta ecoou pela casa.
Clara franziu a testa. Não esperava visitas. Ao abrir, deparou-se com um homem alto, de ombros largos e cabelos castanhos desalinhados, como se tivesse passado o dia inteiro lutando contra o vento. Seus olhos verdes eram intensos, quase inquietantes, e ele carregava uma caixa de ferramentas em uma das mãos.
— Noah Carter — apresentou-se, sem cerimônia. — Enéas disse que você ia precisar de ajuda.
Clara cruzou os braços, estudando-o. Ele não sorria, mas também não parecia hostil — apenas direto, como quem não tinha tempo para rodeios.
— Eu não liguei para você — respondeu, cautelosa.
— Não, mas essa casa sim — ele retrucou, apontando para o teto com o queixo. — O telhado está prestes a ceder no quarto da frente. Se chover amanhã, você vai acordar molhada.
Ela hesitou. Não queria depender de ninguém, muito menos de um estranho com cara de poucos amigos. Mas também não tinha escolha.
— Quanto você cobra?
Noah olhou para ela por um segundo, como se estivesse avaliando mais do que apenas o serviço.
— Depende.
— Depende do quê?
— De quantas xícaras de café você tem para oferecer.
Pela primeira vez desde que chegara, Clara sentiu o peso nos ombros aliviar um pouco. Talvez, só talvez, aquele lugar não fosse tão ruim assim.
E, sem que ela soubesse, Noah Carter já estava entrando em sua vida — com suas próprias dores, seus segredos enterrados sob a sombra dos carvalhos, e um jeito rude que, de algum modo, parecia combinar com aquele recomeço desajeitado.
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