Mundo ficciónIniciar sesiónO primeiro dia de aula sempre tinha um gosto especial. Os corredores estavam lotados, cheios de vozes, risadas e passos apressados. Era como se o campus respirasse diferente naquele dia: mais vivo, mais cheio de expectativas. O cheiro de livros novos misturado ao de café barato das máquinas automáticas me fez sorrir por dentro. Eu adorava aquela atmosfera, embora uma parte de mim estivesse inquieta, como se algo estivesse para acontecer.
Paula, Thiago e Letícia caminhavam ao meu lado, cada uma carregando uma pilha de cadernos que provavelmente não seriam usados depois da primeira semana. - Aposto que metade dessas pessoas não vai aparecer mais depois da segunda semana - Letícia comentou, ajeitando a mochila no ombro. - Verdade. Esse corredor está parecendo desfile de moda - Paula riu, apontando discretamente para um grupo de calouras que tirava selfies perto do mural de avisos. Sorri, mas estava distante. Não conseguia me concentrar de verdade. Enquanto elas falavam sobre professores rígidos, provas difíceis e fofocas do semestre passado, minha mente voltava insistente para a noite da balada. Aquele homem ainda estava na minha pele. Era como se meu corpo tivesse guardado a memória de cada toque, cada beijo. E mesmo tentando empurrar isso para longe, o pensamento me perseguia em silêncio, por um breve momento tive aimpressão de sentir seu perfume passar proximo a mim. Olhei para trás achando que o veria ali. Estou enlouquecendo. Chegamos à sala de Anatomia Funcional antes do sinal. Era uma sala ampla, iluminada, com janelas altas e ventiladores de teto que giravam preguiçosamente. A maioria dos alunos já estava lá, alguns escolhendo lugares estratégicos perto da porta, outros perto da frente, os típicos ansiosos que gostavam de impressionar os professores logo de cara. Sentei-me no meio, lugar neutro, com Paula à minha esquerda e Letícia à direita, Thiago, como sempre vai para o fundo da sala. Abri o caderno e comecei a rabiscar a data, tentando parecer focada. Mas minha perna balançava sem parar debaixo da mesa. - Tá nervosa? - Paula perguntou, arqueando a sobrancelha. - Um pouco. Primeiro dia sempre dá aquela tensão - respondi rápido, sem olhar para ela. Letícia não perdoou: - Ah, tá. Primeiro dia de aula ou lembranças de ontem à noite? Revirei os olhos, mas não consegui segurar um sorriso nervoso. Elas se entreolharam, cúmplices, e riram baixinho. Antes que eu pudesse mudar de assunto, a porta se abriu e o coordenador entrou. Um homem de meia-idade, terno bem passado apesar do calor, postura firme, voz que se impunha naturalmente. O barulho da sala diminuiu quase instantaneamente. - Bom dia a todos - ele disse, ajeitando os óculos. - Espero que tenham aproveitado as férias, porque este semestre promete ser puxado. Alguns riram discretamente, outros suspiraram, já cansados só de ouvir. Eu apenas respirei fundo, tentando me acalmar. Ele continuou: - Como alguns de vocês já sabem, nosso professor titular de Anatomia funcional precisou se mudar para outro país. Por isso, tivemos que fazer uma substituição de última hora. O professor André Monteiro, que lecionava no campus central, passará a integrar nosso corpo docente e ficará responsável por essas aulas daqui para frente. Um burburinho atravessou a sala. Risadinhas nervosas, comentários sussurrados. Atrás de mim, ouvi uma colega cochichar: - Tomara que ao menos seja bonito, porque a matéria é um porre! Metade da sala caiu na risada. Eu tentei rir também, mas alguma coisa dentro de mim se mexeu. Uma pontada no estômago, quase como um pressentimento. Sem motivo aparente, senti um arrepio subir pela espinha. Apertei a caneta contra o caderno, desenhando linhas sem sentido. E foi nesse momento que a porta se abriu de novo, e o barulho na sala silenciou quase que instantaneamente, e pude até ouvir suspiros femininos. Ele entrou, então levantei a cabeça para ver o novo professor. Meu coração disparou como se tivesse sido empurrado contra o peito. Alto, ombros largos que a camisa social clara não conseguia esconder, cabelo levemente desalinhado como se tivesse passado a mão nele no caminho até ali, e… os olhos. Aqueles olhos que eu nunca poderia esquecer. Era ele. O homem da noite da balada. Por um instante, o tempo pareceu desacelerar. Eu quase podia ouvir minha própria respiração ofegante, como se fosse a única coisa no ambiente. A lembrança da pele dele contra a minha, das mãos firmes explorando cada pedaço do meu corpo, me atingiu com violência. Minhas pernas ficaram bambas, mesmo estando sentada. - Bom dia - ele disse, com a voz grave que vibrava como um trovão contido. - Meu nome é André Monteiro. Serei o professor de Anatomia funcional de vocês neste semestre. O som da voz dele foi suficiente para despertar memórias muito nítidas: o timbre rouco murmurando no meu ouvido, as palavras que escaparam entre beijos intensos, o jeito como meu nome soou diferente quando saiu de sua boca. Engoli em seco e baixei a cabeça, fingindo anotar qualquer coisa no caderno, mas minha mão tremia. - Ele é lindo! - alguém cochichou atrás de mim, e outras gargalhadas abafadas surgiram. - Que sorte a nossa… - completou outra. Eu queria rir junto, mas estava paralisada. A diferença era que elas viam apenas o professor atraente, enquanto eu sabia o quanto de fogo havia por trás daquele rosto sereno. André, agora sei seu nome e sei onde encontra-lo, ele caminhou até a mesa, colocando alguns papéis organizados em cima, junto com o laptop. Seus gestos eram calmos, firmes, seguros. Nada nele parecia vacilar. Era como se estivesse totalmente no controle, da sala, de si mesmo, de tudo, até do meu coração. Enquanto ajeitava o projetor, seus olhos varreram a turma. Um olhar rápido, avaliador, que parava em rostos aleatórios. Eu rezava em silêncio para que ele não me visse. Rezava… e ao mesmo tempo desejava desesperadamente ser notada. E então aconteceu, por um segundo, nossos olhares se encontraram, foi breve, quase imperceptível para qualquer outra pessoa. Mas dentro de mim, explodiu como dinamite. O corpo inteiro respondeu: o estômago revirou, os seios ficaram mais sensíveis sob a blusa, minhas coxas se apertaram instintivamente. Ele desviou rápido, retomando a atenção para a tela do computador, mas eu sabia. Ele tinha me visto. E ele tinha reconhecido. Paula, ao meu lado, cutucou meu braço. - Ei… você tá bem? Tá branca! - sussurrou, preocupada. - Eu… eu tô - respondi, tentando recuperar o ar. - Só calor… acho. Mas era mentira. Eu não estava nada bem. Eu estava em colapso. André começou a falar sobre o conteúdo do semestre, como seria a metodologia, provas, trabalhos. A turma ouvia com atenção, mas eu só conseguia me perder no timbre dele. Cada palavra me lembrava da noite em que ele não usava voz de professor, e sim de homem. Cada frase me puxava para a memória de gemidos abafados, da forma como me segurou pela cintura, da boca deslizando pela minha pele. Mordi o lábio inferior com força, tentando conter qualquer expressão no rosto. Precisava parecer normal. Precisava parecer apenas mais uma aluna. Mas por dentro, meu corpo queimava. Thiago, algumas carteiras atrás, se aproximou disfarçadamentye e sentou uma caderira a minha frente e se virou um certo momento e fez uma careta divertida, como se achasse engraçado o burburinho das meninas sobre o “professor gato”. Eu forcei um sorriso, mas não consegui sustentar. Minhas mãos estavam geladas, e ainda assim, uma gota de suor escorreu pela minha nuca. Quando a aula finalmente começou de verdade, André pegou uma caneta e virou-se para o quadro. O movimento fez a camisa se esticar sobre as costas largas, revelando discretamente a força escondida ali. Eu prendi a respiração. Era quase tortura. E pior: eu sabia que ele também se lembrava. Não havia como não lembrar. O que a gente viveu não foi apenas uma transa qualquer. Aquilo tinha sido… fogo, choque, vício. Agora, ele estava ali. A menos de dez metros de mim. E, oficialmente, era meu professor. André se voltou para a mesa e pegou uma prancheta. Folheou alguns papéis, limpando a garganta antes de falar: - Certo, antes de começarmos de fato, vou fazer a chamada. Quero conhecer os rostos de vocês, e acho que é a melhor maneira, sabendo nome de cada rosto aqui presente. Um burburinho correu pela sala, como sempre acontecia no primeiro dia de aula. Alguns ajeitaram a postura, outros riram baixo. Eu senti meu corpo enrijecer como se tivesse acabado de ser anunciada uma sentença. Ele começou. — Ana Beatriz Faria. - Ele procurava a dona do nome, como se esperasse descobrir o meu. — Presente — respondeu uma menina na fileira da frente. André ergueu os olhos, observando-a por alguns segundos, e depois fez uma marca na lista. Seguiu, chamando cada nome, um a um. E a cada olhar que ele lançava para cada aluno, eu sentia o peso do inevitável se aproximando. — Diego Ramos. — Aqui! — Julia Santana. — Presente. O som da voz dele, firme, pausada, preenchia cada canto da sala. Eu já não conseguia anotar nada. O caderno estava aberto, a caneta na minha mão, mas tudo o que eu fazia era apertar com força contra o papel, desenhando linhas tortas. Meu coração batia como se quisesse rasgar minhas costelas. Eu sabia que a qualquer instante ouviria meu nome naquela voz. E pior: eu sabia que ele se lembraria. Ele continuava chamando. — Mariana Lopes. — Aqui. E então, folheou a última folha, os olhos deslizando pela lista. — Camila… ele fez uma breve pausa, como se soubesse que era eu ali. — Camila Duarte. O mundo parou. O som do meu nome na boca dele não era o de um professor chamando aluna. Era o mesmo timbre que me envolveu naquela noite, rouco, quente, carregado de algo que ninguém mais perceberia. Senti um arrepio percorrer minha espinha e minhas coxas se apertaram involuntariamente debaixo da carteira. Levantei a mão, engolindo em seco: — P-presente. A voz saiu falha, quase infantil. Eu quis me enterrar viva. André ergueu os olhos e me encontrou. Olhou diretamente para mim, como havia feito com todos os outros… mas eu sabia. Aquele olhar não era igual. Foram apenas três segundos, talvez menos, mas meu corpo inteiro queimou como se tivesse sido colocado contra o fogo. Então ele sorriu e repetiu meu nome novamente lentamente, como se saboreasse cada sílaba... Ele piscou devagar, como se tivesse recuperado o controle em milésimos, e fez uma marca na lista. - Certo. E seguiu para o próximo nome. Eu desabei na cadeira, tentando disfarçar. Paula me lançou um olhar curioso. - Ei… por que você tá nervosa desse jeito? - sussurrou. - Não tô nervosa… - menti, mordendo o lábio. - Só… sei lá, primeira aula, né? Ela riu baixinho, voltando a prestar atenção. Mas eu sabia a verdade. Eu tinha acabado de ouvir meu nome sair dos lábios do homem que me marcou na pele e na memória. Agora, ele era meu professor, e aquilo mudava tudo. Depois da chamada, André apoiou a prancheta sobre a mesa e respirou fundo. - Muito bem… agora que já nos conhecemos, vamos falar sobre o conteúdo da disciplina. - Disse com a naturalidade de um professor que queria apenas começar a aula, mas eu sabia. Eu sabia que atrás daquela postura havia lembranças que me queimavam tanto quanto a ele. Ele pegou o pincel e escreveu no quadro: Anatomia Funcional e seu nome ao lado. O som do marcador arranhando a lousa foi o único quebrou o silêncio. Eu tentava acompanhar, mas minhas mãos tremiam de leve. - A Anatomia Funcional é o ramo da anatomia que estuda as estruturas do corpo humano, ossos, músculos, articulações, nervos, etc. relacionando-as com suas funções no movimento e na postura - explicou ele, virando-se para nós. — Vocês vão perceber que não se trata apenas de teoria… mas de prática, de entender o corpo em sua totalidade. Corpo. Aquela palavra ficou ecoando dentro de mim como uma provocação. Lembrei imediatamente do jeito que ele havia segurado o meu quadril naquela noite, firme, como quem entende cada curva, cada reação. Meu rosto queimou e eu baixei os olhos para o caderno, rabiscando qualquer coisa só para não parecer perdida. Paula cutucou meu braço discretamente. - Tá prestando atenção? - sussurrou, com um meio sorriso. - Tô… tô sim - menti, mesmo sabendo que não tinha absorvido metade do que ele dissera. André, do outro lado da sala, andava de um lado ao outro com uma calma que só reforçava sua confiança. A cada passo, meus olhos pareciam atraídos para ele sem que eu tivesse escolha. - O corpo humano é uma máquina perfeita - continuou. - Mas, como toda máquina, precisa ser entendida para que funcione em equilíbrio. E, por um instante, eu tive a impressão de que ele me olhou de novo. Não como professor para aluna, mas como homem para mulher. Foi rápido demais para qualquer outra pessoa notar. Talvez fosse imaginação minha. Talvez eu estivesse ficando louca, mas eu senti. A sala seguia normal, com colegas fazendo anotações, alguns cochichando. Até que uma voz se levantou: - Professor — perguntou Mariana, da primeira fileira - esse semestre vamos ter aulas práticas também? - Sim, claro - respondeu André, sem hesitar. - A prática é fundamental. Vamos trabalhar no laboratório de movimento, com simulações e análises corporais. Vocês terão contato direto com equipamentos e… entre si. Um sorriso discreto surgiu nos lábios dele. Não para ela, mas… para mim. Eu juro que vi. E aquele pequeno gesto foi suficiente para fazer meu estômago despencar, respirei fundo, tentando controlar o calor que se acumulava entre minhas pernas. Estava ridículo, eu sabia. Era uma sala cheia, e ainda assim eu me sentia sozinha com ele. Ele retomou a explicação, mas cada palavra parecia ter um duplo sentido só para mim. - Força, resistência, equilíbrio, flexibilidade… - dizia, escrevendo no quadro. - São conceitos que precisam ser dominados para que possamos compreender o movimento humano. Meu corpo inteiro reagia a cada termo como se fosse um código secreto entre nós dois. Paula voltou a me cutucar. - O que foi? - sussurrei. - Você tá vermelha… - disse ela, estreitando os olhos. - Tá doente? Balancei a cabeça rápido demais. - Não, só… calor. Ela riu, duvidando. - Calor em ar-condicionado? Tá bom, né, Camila… Não respondi. Não havia como explicar. E então ele voltou a olhar para nós. Ou melhor, para mim. Por um segundo que pareceu uma eternidade, André me prendeu com os olhos. Um olhar cheio de lembranças, de segredos, de perigo. Eu segurei a respiração, incapaz de desviar. Até que ele pigarreou, retomando a postura firme. - Vamos encerrar por hoje. Quero que leiam o primeiro capítulo do material que vou disponibilizar na plataforma e preparem perguntas. Semana que vem começaremos a parte prática. O barulho de cadeiras arrastando e mochilas sendo fechadas encheu a sala. Eu ainda estava imóvel, como se tivesse levado um choque. Paula se levantou, animada: - Bora almoçar? - Já vou… - murmurei, tentando recuperar o fôlego. E, enquanto todos saíam, eu não consegui evitar. Olhei para trás. André ainda estava ali, organizando os papéis. E, no instante em que nossos olhares se encontraram de novo, ele deixou escapar um sorriso quase imperceptível. Um sorriso que só eu entenderia. Meu coração disparou. Ele lembrava. O corredor estava cheio de vozes, passos apressados e risadas altas. Os alunos se dispersavam como um enxame, cada um indo para seu canto, mas eu sentia como se estivesse andando em câmera lenta. Cada parte do meu corpo ainda vibrava depois daquela aula. Paula caminhava ao meu lado, observando demais para o meu gosto. - Tá estranha… - disse, franzindo a testa. - Não me enrola, Camila. Eu te conheço. - Estranha como? - perguntei, tentando fingir normalidade. Ela arqueou uma sobrancelha, aquele olhar acusador que só uma amiga íntima sabe dar. - Você ficou o tempo todo encarando o professor. Não vem dizer que não, porque eu vi. - Não fiquei! - respondi rápido demais, e a minha própria voz me traiu. Paula riu, cruzando os braços. - Ah, meu Deus… ficou sim. Tá na sua cara! Até parecia que vocês estavam falando em código com o olhar. Meu coração acelerou com aquela frase. Se ao menos ela soubesse… - Para de viajar, Paula… - murmurei, mas não convenci nem a mim mesma. - Tá, não vou insistir - disse, mas com um sorriso travesso. - Só vou esperar a fofoca completa quando você resolver desabafar. Revirei os olhos e segui em silêncio, tentando não demonstrar. Mas a verdade era impossível de esconder: o nome dele ainda ecoava na minha mente, do jeito que ele havia pronunciado na chamada, com aquela voz grave que me arrepiava inteira. Foi nesse exato instante, quando dobramos o corredor, que o destino resolveu brincar comigo. André surgiu na direção contrária, segurando uma pasta de papéis contra o peito. Caminhava devagar, sereno, como se o mundo ao redor não tivesse pressa. E eu senti minhas pernas travarem. Paula não percebeu nada, estava ocupada mexendo no celular. Mas eu sim. Eu percebi cada detalhe: a forma como ele ajeitou o blazer, a maneira como seus olhos varreram o corredor até encontrar os meus. E quando encontrou… não desviou. Meu coração martelava tão alto que eu temia que todos ouvissem. Ele passou por nós sem alterar a expressão, como um professor qualquer cruzando com alunas nos corredores. Mas, no exato segundo em que ficou ao meu lado, sua mão esquerda roçou de leve na pasta que segurava, e seus lábios se moveram quase imperceptíveis. Um sussurro baixo, rápido, apenas para mim: — Camila... Aquele som, dito tão perto, tão carregado de lembrança, me atravessou inteira. Eu prendi a respiração, incapaz de reagir, e em um piscar de olhos ele já estava alguns passos atrás de nós, seguindo seu caminho como se nada tivesse acontecido. - Viu isso? - perguntei a Paula, quase sem voz. Ela levantou os olhos do celular, confusa. - Ver o quê? - Nada… esquece. Sorri sem jeito, tentando disfarçar, mas por dentro estava em combustão. Porque naquele sussurro singelo, naquela única palavra, eu tive a certeza de duas coisas: A primeira: Ele lembrava de mim e segundo ele não pretendia me deixar esquecer dele tão cedo.






