CAPÍTULO 05.

Certamente que, quando Eliyahu foi embora, ele estava anunciando os males que iria recair sobre minha família.

Acho que o ser humano nasceu com fome de sangue. Só pode. Tem dia que eu acordo e fico olhando pro teto, ouvindo os barulhos da casa—o ventilador quebrado, o resmungo da minha irmã, a tosse seca da minha mãe—e me pergunto como a gente sobreviveu até aqui. Não é drama, é só... observação. O homem, em sua essência, é um animal predador. E o pior é que ele ainda finge que não é.

Eu tinha treze anos quando entendi isso pela primeira vez. E esse dia não sai da minha cabeça. Como se tivesse ficado preso dentro de mim, arranhando as paredes do meu peito cada vez que eu tento dormir. Às vezes, quando fecho os olhos, ainda escuto o som da porta batendo com força, os gritos, a risada torta de um dos caras, como se fosse engraçado machucar alguém. Como se fosse um jogo.

Foi numa terça-feira, lembro porque era dia de arroz com ovo—único dia que minha mãe não chorava enquanto cozinhava. Ela tinha começado a atender casa vez menos clientes, porque sua saúde não andava assim tão boa. A gente tava quieta, comendo devagar pra enganar o estômago.

De repente, BAM!, a porta abriu como se não fosse de ninguém. Eu quase engasguei com a comida. Entraram dois caras, depois mais um. A sala ficou pequena demais pra tanto ódio.

Um deles gritou com minha mãe. Chamou ela de "vagabunda", "caloteira", "fujona". Eu nem sabia o que tudo aquilo queria dizer direito, mas o jeito que ele falava... doía nos ouvidos. O outro segurou minha irmã pelo cabelo. A gente chorava. Minha mãe tentou se explicar. Disse que não fugiu, que só não tinha como pagar. Disse que um dia ia conseguir, que tava tentando. Tentando. Sempre tentando. Mas pra eles, tentar não bastava.

Um deles, o mais magro, com o olho meio torto, disse que se ela não podia pagar com dinheiro, ia pagar com a vida. Falou isso como quem avisa que vai chover. Frio. Simples. Real.

Outro disse que a morte seria uma bênção pra uma caloteira como ela. E aí riu. Riu como quem pisa num bicho e gosta do barulho dos ossos quebrando. Foi aí que eu soube, com uma certeza gelada: o mal não é sempre por maldade. Muitas vezes vem da ignorância. Esses homens... talvez achassem que tavam fazendo justiça. Que minha mãe merecia. Vai saber o que ensinaram pra eles. Que dívida é pecado. Que mulher sozinha é lixo. Que pobre não é gente.

Mas boa intenção, quando vem de mente podre, faz mais estrago que uma bala.

Eles bateram na minha mãe. Muito. Eu gritava, mas ninguém ouvia. Minha irmã tentou se soltar, levou um chute nas costelas. Eu não sabia o que fazer. Queria morrer. Queria ser forte. Queria sumir.

Então eles disseram que ia estuprar a minha mãe e a irmã mais velhas. Eu e o meu sobrinho choramos assustados. Sempre que um dos homens tentava bater bater no meu sobrinho de 6 anos, eu colocava meu corpo na frente. Aqueles homens queriam me estuprar também, mas segundo eles eu não tinha carne o suficiente era isso. Mas para fazer minha mãe sofrer, eles decidiram cortar o meu dedo medinho. Nunca chorei tanto na vida. Quanto naquele momento.

Minha mãe, caída no chão, com o rosto inchado, ainda teve forças pra me olhar e dizer.

— Não odeie o mundo, filha. Ele já é cheio demais de ódio.

Mas eu não consegui prometer isso. Porque naquele momento, eu odiei tudo. O mundo, os homens, Deus, se é que Ele existe. Porque se Ele existe... ele tava vendo tudo e não fez nada.

Depois disso, eles foram embora como se tivessem só passado pra tomar um café. Levaram o pouco dinheiro que a gente tinha guardado. Deixaram sangue no chão e silêncio nos olhos da minha mãe.

Fiquei dias sem conseguir falar. Não conseguia olhar para minha mão e não ver o meu dedo medinho faltando. Vomitei quando vi meu dedo no chão. Por mim, eles que me matassem.

Dói demais.

Eu fiquei acordada as noites seguintes, ouvindo os barulhos da casa, sentindo medo de cada estalo na madeira. Como se o mundo tivesse virado um bicho grande demais pra gente.

Sabe... tem gente que diz que o ser humano é bom por natureza. Que nasce puro. Que é a sociedade que estraga. Eu acho que isso é conversa de quem nunca levou tapa na cara da realidade. Porque tem maldade que nasce no berço. Tem criança que já quebra as asas das borboletas só pra ver o que acontece. Tem adulto que cresce achando que dor é forma de cobrar. Que justiça é sinônimo de vingança.

E se tem uma coisa que aprendi, é que o homem não caça só por fome. Ele caça porque gosta. Porque sente poder. Porque aprendeu, desde cedo, que dominar o outro é sinônimo de vencer. E é por isso que o mundo tá do jeito que tá: todo mundo se mordendo, se machucando, se cobrando, se destruindo.

Eu ainda sou só uma menina. Treze anos e um coração cheio de buracos. Mas eu já entendi mais da vida do que muito adulto. E sei que o mal existe. Não como monstro debaixo da cama, mas como vizinho, cobrador, chefe, irmão, pai. Ele veste terno, uniforme, ou anda descalço. Ele diz que é por bem. Diz que é justiça. Mas só é mal disfarçado de certo.

E eu?

Depois daquele dia decidi enterar tudo o que vivi com Eliyahu. Carregar essas lembranças, ia me destruir de dentro para fora. E eu já estava destruída demais para carregar essas lembranças.

Então eu me forcei a esquecer, para poder lidar com tudo. Para poder bater de frente com a maldade e dizer.

Eu não vou recuar. Eu vou sangrar, mas eu não vou recuar. Eu vou chorar, mas eu não vou recuar. Minha família precisa de mim.  Eu não tenho nada, mas minha família precisa de mim.

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