Capítulo 3.
VALÉRIA NARRANDO
O portão se abriu lentamente, como se soubesse que estava prestes a engolir alguém que não pertencia àquele mundo. O segurança mal me olhou nos olhos , apenas liberou a entrada com um gesto automático. O carro de Eduardo deslizou pela rua interna do condomínio como um intruso. Tudo ali era calado demais, limpo demais, irreal demais.
Era como estar num daqueles filmes de drama onde a protagonista é arrancada de sua realidade e jogada numa vida que nunca pediu.
Quando o carro parou diante da casa, senti minhas mãos suarem. Não pelo calor, mas por medo. Medo de encarar o homem que sempre foi só um nome nos documentos, uma lembrança distante nos olhos da minha mãe quando falava sobre “o erro que não repetiria”.
Eduardo desceu primeiro. Deu a volta e abriu a porta pra mim.
— Vai dar certo — ele disse, mas até ele soava como se não acreditasse nisso.
Respirei fundo. Saí.
A casa era enorme, de vidro e concreto. Nada ali lembrava lar. Era tudo muito moderno, muito caro, muito… frio.
Antes mesmo que eu pudesse tocar a campainha, a porta se abriu. E lá estava ele.
Otaviano Araújo.
Alto, imponente, com o mesmo olhar cortante de sempre. Terno impecável mesmo dentro de casa, como se estivesse eternamente pronto pra uma reunião. Os cabelos grisalhos estavam alinhados, e o rosto, sério, impassível.
— Valéria — ele disse, como se testasse o som do meu nome depois de anos sem usá-lo.
— Otaviano — respondi, sem emoção. Me recusei a chamá-lo de pai. Ainda não. Talvez nunca.
O olhar dele demorou um segundo a mais em mim. Avaliando. Pesando.
— Pode entrar — ele disse, saindo do caminho. — O quarto já está pronto.
Nem um “sinto muito pela sua mãe”, nem um “como você está?”.
Só ordem.
Entrei. Eduardo veio atrás, mas Otaviano levantou uma das mãos.
— A partir daqui, cuidarei da minha filha.
“Agora você lembra que tem uma filha?”
quis gritar. Mas fiquei calada. Eu não tinha força pra brigar. Ainda.
Olhei pra Eduardo. Ele me lançou um olhar cúmplice, preocupado.
— Qualquer coisa, me liga, tá? Tô a uma mensagem de distância.
Assenti. Ele partiu. E eu fiquei.
A porta se fechou atrás de mim com um baque seco.
E então surgiu ela.
A esposa.
Alta, loira, perfeitamente maquiada às sete da noite. Um sorriso plástico nos lábios e olhos que me mediam de cima a baixo, como se eu fosse uma amostra grátis de algo que ela não pediu.
— Então você é a Valéria — ela disse, com voz doce demais pra ser sincera. — Sou Clarissa. Seu pai falou muito de você.
“Duvido” pensei. Mas respondi apenas com um aceno.
— Você deve estar cansada. Vem, vou te mostrar o seu quarto — disse ela, já andando pelo corredor sem esperar resposta.
Passei por salas imensas, quadros que pareciam custar mais que minha vida inteira, móveis minimalistas que me lembravam salas de espera. Tudo era silencioso, exceto o som dos meus passos e da voz de Clarissa despejando frases vazias sobre decoração e reformas.
Até que chegamos ao quarto.
Era bonito, sim. Perfeito. Gelado.
— Espero que goste — ela disse, antes de virar as costas. — O jantar é às oito.
Fiquei ali, parada. Sem saber o que fazer. O quarto parecia de catálogo. Tudo novo, impessoal. Nada que me lembrasse casa.
Abri a mala e olhei para dentro. Me senti como uma visitante na própria vida.
E então, ele apareceu de novo. Otaviano, parado na porta, como uma sombra.
— Preciso que assine uns documentos amanhã. Para o tribunal saber que está sob minha guarda. — Ele pausou. — Não se preocupe. Vai ter tudo do bom e do melhor aqui.
— Não foi isso que eu perdi — rebati, sem pensar.
Ele me olhou por longos segundos. Não havia culpa nos olhos dele. Só… cansaço. Ou tédio.
— Descansa — disse, antes de sair.
A porta se fechou, e eu desabei na cama.
Chorei em silêncio.
Não por ele. Mas por tudo. Por minha mãe. Por mim. Por estar presa em um lugar onde ninguém me queria de verdade.
Naquela noite, escrevi no diário que mamãe me deu:
"Estou cercada por luxo, mas nunca me senti tão pobre. Pobre de afeto, de abraço, de verdade. Mas eu vou resistir. Por você, mãe. Por tudo que ainda preciso descobrir sobre mim."
E assim adormeci.
No meio do frio de lençóis caros, com o calor da saudade queimando meu peito.
Acordei com a luz do sol invadindo o quarto por entre as frestas da cortina de linho branco. Por um instante, tive a ilusão de que ainda estava no meu quarto antigo, que ao sair pela porta encontraria minha mãe na cozinha, preparando café e cantarolando Elis Regina.
Mas então me lembrei.
Do hospital.
Do silêncio do telefone.
Do envelope.
Do olhar vazio de Otaviano.
E a ausência dela voltou a me sufocar.
Levantei devagar, tentando me reconhecer naquele quarto. Vesti uma roupa qualquer, prendi o cabelo de qualquer jeito e desci.
A casa estava estranhamente silenciosa, até demais. Sentei à mesa do café com um pedaço de pão seco e uma xícara de café pela metade. Clarissa apareceu minutos depois, impecável, como se tivesse saído de uma propaganda de vida perfeita.
— Dormiu bem, querida?
"Querida" como se fôssemos íntimas.
— Dormi — menti.
— Matheus deve estar chegando da empresa. Ele sempre passa por aqui de manhã antes de ir pra obra.
Engasguei com o café.
Matheus.
O filho dela.
Meu meio-irmão.