Capítulo 4.
Matheus narrando
"Minha ex-mulher faleceu."
A frase doeu no ar, como se tivesse sido dita de propósito para me paralisar.
Por um segundo, pensei ter ouvido errado. Minha mente demorou a conectar as palavras. Ex-mulher. Falecimento. Morte. E então veio o nome.
— A Laura…? — minha voz saiu baixa, quase num sussurro.
Otaviano apenas assentiu. O olhar fixo em mim, como se esperasse alguma reação mais explosiva. Mas eu fiquei ali, calado. Estático.
Laura.
Eu não a via há muitos anos, mas sempre soube que ela existia em silêncio, em alguma parte da cidade. Como uma memória trancada em algum porão da minha mente.
— Acidente de carro — completou ele, como se a explicação resumisse tudo. — Está sendo enterrada hoje mesmo. Foi tudo rápido.
— E sua filha , Valéria? — perguntei, antes que pudesse me conter.
— Está vindo pra cá. Vai morar conosco — ele disse como quem lê uma nota fiscal. Sem dor. Sem pausa. Sem alma.
Meu sangue gelou.
Valéria.
A filha da mulher que ele destruiu, a garota que cresceu longe de nós, e que agora, por força do destino , ou do capricho cármico do universo. voltava direto pra boca do lobo.
— Você está falando sério? — perguntei, me inclinando na cadeira, sem conseguir esconder o desconforto. — A garota acabou de perder a mãe e você já está a trazendo pra cá? Pra este inferno de fachada luxuosa?
— Ela é minha filha. O lugar dela é aqui. Vai se adaptar.
Revirei os olhos. Esse era o problema com Otaviano. Ele achava que tudo e todos podiam ser administrados. Até sentimentos. Até o luto.
— Você é inacreditável. — me levantei, passando a mão pelos cabelos, nervoso. — A menina deve estar em pedaços, e você preocupado em encaixá-la na sua agenda de monstros.
— Chega, Matheus. — Ele se levantou também, com o tom mais duro. — Não é você quem decide. Ela vai morar aqui, vai se ajustar. E quanto a você… trate de se comportar.
Aquelas palavras me atravessaram como navalhas.
Trate de se comportar.
Por dentro, uma fúria fria começou a crescer. Ele queria me prender em um casamento arranjado, me transformar em uma marionete de negócios… e agora trazia uma garota em luto para dentro da nossa casa como se fosse uma peça de xadrez no tabuleiro?
— E ela sabe quem eu sou? — perguntei, sem esconder o sarcasmo. — O “filho do padrasto” que nunca foi oficialmente reconhecido?
— Não importa. — Ele virou as costas e saiu, como se a conversa estivesse encerrada. Como se tivesse me vencido.
Mas ele não entendia. Isso aqui era só o começo.
A cidade lá fora ainda pulsava, mas dentro de mim era só um silêncio incômodo, denso, como o luto mal resolvido que pairava no ar.
E Valéria… essa garota que eu mal conheço, mas que carrega metade do sangue do cara mas manipulador que conheço. Vai morar sob o mesmo teto que eu. Sob o mesmo teto que ele.
Acendi um cigarro, coisa rara para mim, e fui até a varanda. O vento frio batia no rosto, como se quisesse me acordar de um pesadelo. Mas não era pesadelo. Era realidade. E eu precisava estar pronto.
As semanas seguintes foram um exercício de convivência silenciosa. Eu seguia meus dias entre reuniões e estratégias para evitar o casamento que Otaviano ainda tentava empurrar goela abaixo. Valéria andava pelos cantos da casa com passos leves e olhos atentos. Era discreta, mas observadora.
Cheguei em casa por volta das duas da manhã, rindo alto, com um gosto amargo de uísque barato na boca e uma garota pendurada no meu pescoço. Nem me lembro do nome dela. Algo com “L”, talvez. Loira, vestido curto, salto arranhando o piso da entrada enquanto ela tropeçava nos próprios passos.
A porta se abriu com dificuldade, e eu mal tive tempo de acender a luz da sala quando ouvi um barulho seco atrás de mim.
Valéria estava sentada no sofá.
Ela ergueu os olhos, ainda com um livro no colo, mas o olhar agora era de pedra. Silêncio total.
— Relaxa, é só a filha legítima do velho. — E soltei a frase com veneno, sabendo exatamente o estrago que ela faria.
Valéria fechou o livro devagar e se levantou. Não disse nada, mas o olhar dela… o olhar dizia tudo.
Desprezo. Tristeza. Raiva.
— Você acha isso bonito? — ela perguntou, firme, encarando minha ressaca antecipada.