Capítulo 6

Matheus narrando

A porta do meu quarto bateu, mas o som não abafou o que ela disse.

"Não é agora que vou depender de você."

As palavras ficaram ali, rondando a minha cabeça como um enxame de abelhas irritadas. Tirei a camisa, joguei no canto, mas o calor dentro de mim não vinha do álcool. Era raiva. Raiva dela. De mim. Do mundo inteiro.

Valéria.

A menina com cara de calma e alma de furacão.

Eu queria dormir. Queria apagar tudo. Mas minha cabeça latejava, e meu coração parecia engasgado num grito. Me joguei na cama, mas não durou dois minutos. Levantei. O gosto amargo na boca não era da bebida. Era dela. Da discussão. Da verdade esfregada na minha cara sem anestesia.

Desci as escadas de novo, sem saber se queria pedir desculpa ou gritar mais. Mas ela ainda estava lá, na sala. De braços cruzados, respirando pesado. Como se tivesse acabado de sair de um campo de batalha.

Ela virou o rosto assim que ouviu meus passos.

— Esqueceu alguma ofensa pra me jogar na cara? — ela perguntou, fria.

— Eu não… — comecei, mas parei. Porque nem eu sabia o que ia dizer. — Você tem um talento absurdo pra me tirar do eixo, sabia?

— O eixo já tava torto antes de eu chegar — ela rebateu, sem hesitar.

— Você fala como se me conhecesse.

— E você age como se ninguém merecesse te conhecer.

Silêncio. De novo. Mas não aquele silêncio cortante de antes. Era mais… carregado. Tenso. Quente.

Dei dois passos em direção a ela. Ela não recuou. O que só piorou o meu desequilíbrio.

— Por que você me provoca tanto? — perguntei, quase num sussurro.

— Porque você se esconde atrás da raiva. E eu odeio covardes.

— E se eu dissesse que tô com medo?

— Eu diria que pelo menos isso é verdadeiro.

Ela não piscava. Não tremia. E era isso que mais me desarmava. Porque todo mundo ao meu redor sempre teve medo de mim. Ou desprezo. Ou interesse. Mas ela…

Ela me enfrentava com os olhos em chamas e as mãos firmes.

— Você tem alguma ideia do que tá fazendo comigo? — perguntei, mais pra mim mesmo do que pra ela.

— Talvez a pergunta seja o que você tá fazendo com você mesmo, Matheus.

Senti o chão sumir por um instante. E então, antes que eu pudesse racionalizar, antes que o orgulho gritasse mais alto, eu avancei.

Um passo. Depois outro. Até que estávamos a centímetros.

Meu rosto perto do dela.

Minha respiração cruzando a dela.

— Se você quiser me b**er, b**e logo — ela disse, num tom entre o desafio e o deboche.

— Não quero te bater.

— Então o que você quer?

— Calar essa boca.

E foi o que eu fiz.

O beijo não foi bonito. Nem suave. Foi impulsivo, bruto, urgente. Um choque de dois mundos que se odiavam e se desejavam na mesma intensidade. Ela podia ter me empurrado. Podia ter gritado, cuspido, fugido. Mas não.

Ela me puxou pela camisa como se quisesse rasgar mais do que tecido. Como se quisesse despir meus muros, minhas desculpas, minha autopiedade.

As mãos dela foram para os meus ombros. As minhas, para a cintura dela.

Tudo girou por um instante.

A sala, o mundo, o luto, a raiva… tudo virou poeira.

Só havia nós dois.

Respirando ofegantes quando nos afastamos. Um segundo. Dois.

— Isso foi um erro — ela disse, a voz rouca, os lábios ainda trêmulos.

— Talvez — respondi. — Mas foi o primeiro erro que me fez sentir vivo em muito tempo.

Ela me olhou. Um olhar carregado de dúvida, desejo e medo.

— Eu não vou ser mais uma distração na sua autodestruição, Matheus.

— E eu não vou fingir que você não me desmonta toda vez que me enfrenta.

Ela recuou um passo. Pegou a bolsa no sofá. Mas antes de ir, virou o rosto.

— Boa noite, Matheus.

— Boa noite, Valéria.

E ela subiu.

Sozinha.

Mas dessa vez, com o gosto do meu caos na boca.

Fiquei ali, parado, como um idiota. O peito ainda em chamas. A mente querendo mais.

Mas alguma coisa dentro de mim sussurrava que, a partir dali, nada mais seria igual.

Nem o silêncio.

Nem ela.

Nem eu.

Fiquei ali, olhando a escada por onde ela tinha subido, como se a qualquer momento ela fosse voltar e dizer que não, que queria continuar, que estava tão perdida quanto eu. Mas o som dos passos cessou. E com ele, a esperança idiota que eu não sabia que estava alimentando.

Sentei no sofá, a respiração ainda descompassada. O gosto dela ainda na minha boca, o cheiro dela grudado na minha pele, como se tivesse deixado uma marca invisível. Talvez tenha deixado mesmo. Não só no corpo. Na alma também.

E agora?

O que eu faço com isso?

Com esse nó na garganta e esse buraco no estômago?

A mão foi sozinha até o cigarro no bolso da calça. Acendi. Traguei como quem precisava desesperadamente envenenar o que ainda restava de mim. A fumaça subiu lenta, e eu me senti menor. Fraco. Desarmado.

Ela tinha razão.

Eu me escondia atrás da raiva.

Porque era mais fácil sentir ódio do que sentir medo. Mais fácil atacar do que admitir que tava doendo. Que eu tava sozinho. Que talvez, no fundo, tudo o que eu sempre quis era alguém que não fugisse.

E ela… ela ficou.

Mesmo quando eu gritei, mesmo quando eu joguei verdades como pedras.

Ela ficou.

Por isso o beijo foi tão desesperado. Porque era uma chance. Uma janela. Um pedido de socorro disfarçado de desejo.

Joguei a cabeça pra trás e fechei os olhos.

A imagem dela veio na mesma hora.

O olhar firme. A boca inchada. O peito subindo e descendo como o meu. A bolsa no ombro. A última frase.

"Boa noite, Matheus."

Mas não era só isso. Tinha algo por trás daquele boa noite. Um aviso. Um limite. Um talvez.

E eu sabia que, se eu cruzasse a linha de novo, ela não ia ficar.

Ou eu me reconstruía…

Ou ela ia ser mais uma cicatriz.

A diferença é que essa eu ia sentir todos os dias.

Apaguei o cigarro. Levantei.

Olhei pro alto, pro corredor do andar de cima.

Queria bater na porta dela. Pedir desculpa. Ficar. Sentir o gosto dela de novo.

Mas não fui.

Em vez disso, caminhei devagar até meu quarto.

Sozinho.

Com o gosto dela queimando na alma.

E a certeza cruel de que ela não era meu caos.

Ela era o único pedaço de ordem que eu já conheci.

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