Valéria narrando
Ele entrou rindo, tropeçando no próprio ego, com uma mulher pendurada no pescoço e um cheiro de álcool barato que me deu náusea. A porta ainda nem tinha fechado direito quando ele soltou a frase:
> "Relaxa, é só a filha legítima do velho."
Aquelas palavras vieram como soco. Frias, calculadas, afiadas.
Levantei devagar, encarando aquele homem torto na minha frente. Ele mal conseguia parar de pé, mas a língua dele... afiada como uma faca.
— Você acha isso bonito? — perguntei, minha voz saindo mais firme do que eu esperava. — Essa entrada de cena digna de um playboy de quinta?
A garota do lado dele arregalou os olhos, desconcertada. Tentou rir, sem graça, e soltou um "acho que vou no banheiro", antes de desaparecer pelos corredores da casa. Covarde.
Ele me encarou, com aquele olhar de quem tá entre a ressaca e a arrogância.
— Achei que você fosse muda. Vive pelos cantos, lendo esses livrinhos e fingindo que não sente nada.
— E você vive fingindo que sente demais — rebati. — Mas é só vazio. Barulho de garrafa vazia rolando no chão.
Ele riu. Mas foi um riso seco. Um riso de quem sangra por dentro e não quer mostrar.
— Olha só, a órfã resolveu filosofar. — Ele se aproximou, jogando o casaco no sofá. — A casa também é minha, garota. Se não tá feliz, pode muito bem…
— Pode o quê? — interrompi, avançando um passo. — Sair? Sumir? Engolir o luto calada como todo mundo aqui faz?
A raiva subiu como fogo. Fazia semanas que eu aguentava aquilo: o silêncio, os olhares de pena, as portas fechadas, os sussurros. Mas ali, diante daquele... homem, eu não ia recuar.
— Eu perdi minha mãe. Você entende isso? — minha voz falhou por um segundo, mas eu continuei. — Não é só uma mudança de endereço. É uma ruptura. É o mundo me dizendo que acabou. E aí eu venho pra cá e dou de cara com você… esse... parasita mimado que se acha no direito de humilhar os outros pra mascarar a própria covardia.
Ele congelou.
Por um segundo, achei que ele fosse explodir. Que fosse gritar, me empurrar, quebrar alguma coisa. Mas não. Ele só ficou ali. Me olhando. A mandíbula tensa, o peito subindo e descendo.
— Você não sabe nada de mim — ele disse, por fim. A voz grave, mas agora baixa. Quase controlada.
— E você não sabe nada de ninguém — retruquei. — Acha que o mundo gira ao redor do seu trauma mal resolvido. Acha que é o único que carrega dor. Mas deixa eu te contar um segredo, Matheus: o mundo tá cheio de gente despedaçada. A diferença é que nem todo mundo tem uma mansão pra se esconder da própria covardia.
Ele deu um passo pra frente. Ficamos cara a cara.
— Cuidado com o que diz, Valéria.
— Por quê? Vai fazer o quê? Vai me chamar de bastarda de novo? Vai me jogar na cara que o Otaviano é seu pai só quando convém?
Ele cerrou os dentes.
— Eu não te pedi nada. Nem sua presença aqui. Nem sua opinião.
— E eu também não pedi pra vir pra essa casa podre, cheia de segredos e gente falsa. Mas tô aqui. E se eu tiver que conviver com você, então você vai ouvir, sim. Cada palavra. Porque a última coisa que eu vou ser é uma espectadora da sua decadência.
Silêncio.
O tipo de silêncio que parece carregar uma faca no meio. Ele olhou pra mim como se estivesse vendo alguém que não reconhecia. E talvez fosse isso mesmo. Eu não era uma criança em luto. Eu era uma mulher com raiva. E eu tinha nome.
— Sabe qual é o seu problema? — ele disse, enfim, com uma calma falsa. — Você quer transformar tudo em guerra. Em justiça poética. Mas aqui dentro, não tem herói. Só sobrevivente.
— E você sobrevive como? Bebendo e pegando qualquer uma que apareça? Legal. Deve ser um plano de vida incrível.
Ele me olhou com raiva. Mas por trás da raiva... eu vi.
Eu vi a dor.
A vergonha.
A fraqueza que ele tentava esconder a todo custo.
Ele virou as costas e foi em direção à escada, mas antes de subir, soltou:
— Eu ia tentar te poupar desse lugar. Mas agora, sinceramente? Se vire.
— Sempre me virei sozinha, Matheus. Não é agora que vou depender de você.
A porta do quarto dele bateu com força segundos depois.
Fiquei ali. O peito doendo. A garganta seca. Mas o coração? Firme.
Porque pela primeira vez, eu senti que ele não era invencível.
Ele era só mais um homem com medo.
E eu… eu não ia mais me calar.