Dante despertou com um sobressalto, ofegante como se tivesse corrido uma maratona. Não era um sonho. Era a dura realidade. Lá estava, pesando sobre seus ombros: todo o legado — e a maldição — de seu pai. Vittorio Bellandi. O homem que marcara a máfia calabresa com sangue e medo, mas que agora vivia apenas nas sombras que nunca se dissipavam.
O chão frio o recebeu ao se levantar. Descalço, com o coração acelerado. Não havia tempo para pensar. O terno escuro que pegou parecia um jugo. Vestiu-se às pressas, ajustou a gravata com um puxão seco, sentindo o peso da responsabilidade esmagá-lo. Seus olhos castanhos cruzaram-se com os do espelho. Os mesmos do pai. Cansados. Determinados. Temerosos.
— É a sua vez, Dante —murmurou, sem pedir nem ordenar.
Caminhou até a sala de reuniões como quem vai ao patíbulo. O cheiro de couro, tabaco e traições o envolvia. Fabio já estava ali, firme, em silêncio. Levantou-se ao vê-lo.
— Signore.
Dante assentiu, enquanto os demais o observavam. Não havia respeito, apenas julgamento frio.
— Sentem-se.
O silêncio foi rompido pelo arrastar das cadeiras.
— Ferrara está mexendo as peças no porto —disse Fabio. — Não quis incomodar antes, mas…
— Estou aqui. Diga o que está acontecendo.
As palavras fluíram. Nomes, ameaças, movimentações. Dante absorveu tudo e ordenou:
— Reforcem a vigilância. Não podemos nos permitir falhas.
Fabio assentiu.
— Ferrara quer nos provocar. Não vamos lhe dar esse prazer.
— Não vai acontecer. Vamos fazê-lo esperar.
Um silêncio tenso. O meio sorriso de Fabio, como um pacto mudo.
— Como quiser, signore.
Horas depois, Dante se levantou. Pesado, exausto.
— Por ora, basta. Mantenham-me informado.
Saiu sem esperar resposta, e o ar fresco lhe deu um tapa no rosto. Precisava escapar, ainda que por um instante. Seu jardim privado, seu único refúgio.
A luz do sol bateu-lhe no rosto. Quente, uma zombaria diante da frieza que carregava por dentro. Caminhou devagar, as mãos nos bolsos, sem saber se o murmúrio da água e dos pássaros o acalmava ou o afundava ainda mais em sua solidão.
E então a viu.
Uma mulher, pendurada no muro, desafiadora.
Sorrindo, ele se divertiu.
— Está entrando ou saindo? — perguntou.
Ela virou o rosto, e nos olhos surgiu o pânico. Soltou-se, caindo no vazio — mas Dante foi mais rápido. A segurou no ar. O tempo parou quando seus olhares se cruzaram.
Era a mulher mais linda que já tinha visto.
Um anjo? Uma visão?
— Quem é você? — murmurou, enfeitiçado.
Bastou um instante para saber.
Era ela. Sua fada de açúcar.
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Alguns minutos antes...
Às nove em ponto, Svetlana estava sentada na cozinha da villa Bellandi, diante de um prato que nem sequer tocava. Fabio havia ordenado que a levassem para conhecer o local, para que “se familiarizasse”. Mas a casa cheirava a madeira antiga e especiarias, e para ela era uma prisão disfarçada de palácio.
Giulia, a mulher encarregada de vigiá-la, a observava com desdém, fazendo um gesto para que comesse. Svetlana não se mexeu. Não tinha fome. A mente ardia em um turbilhão de medo e raiva. Estava presa em um mundo que não compreendia, longe de tudo o que havia amado. Só queria desaparecer.
De um canto da cozinha, uma jovem a observava com olhos brilhantes. Fiorella tinha a mesma idade de Svetlana, mas seu olhar carregava uma mistura perigosa: curiosidade e algo parecido com inveja.
—Fiorella, pare de encarar e venha me ajudar —rosnou Giulia, sem desviar os olhos da tábua de cortar. — Hoje vamos preparar um banquete para os convidados do signore Dante.
Ao ouvir aquele nome, Fiorella sorriu, quase sem perceber. Tinha visto Dante crescer, e em silêncio havia sonhado com ele durante anos. Agora, vê-lo transformado no senhor absoluto do clã Bellandi despertava nela desejos que jamais ousara confessar.
—Pare de sonhar acordada e trabalhe —advertiu a mãe, com a voz áspera.
Fiorella descascava a cenoura, mas seus olhos continuavam cravados em Svetlana, que permanecia imóvel diante da comida.
—Quem será ela? —murmurou, mais para si do que para a mãe.
—Trouxeram-na para o signore Dante —respondeu Giulia com indiferença, como quem sabe demais e prefere não falar.
—Uma puta? —cuspiu Fiorella com uma risada cortante. O olhar fulminante da mãe apagou o sorriso do rosto dela.
—É russa. Dizem que foi prometida a Dante —esclareceu Giulia, com frieza.
Fiorella lançou um olhar venenoso para Svetlana.
—Por que trazer uma estrangeira, se há tantas italianas lindas por aqui?
Giulia afastou-se por um instante, deixando uma advertência seca no ar:
—Não faça nenhuma estupidez.
Fiorella ignorou o aviso da mãe e avançou em direção à mesa, onde Svetlana seguia pálida e perdida em seus pensamentos. Cada passo ressoava frio sobre o chão. Svetlana se enrijeceu, sentindo o peso daquele olhar que a perfurava.
—Então você é o novo brinquedinho do chefe —disse Fiorella, sentando-se diante dela com um sorriso cruel e calculado.
Svetlana a fitou, lutando para controlar o tremor na voz.
—Quem é você?
Fiorella arqueou uma sobrancelha, surpresa com o desafio.
—Fiorella —respondeu, apoiando os cotovelos sobre a mesa, analisando sua presa com ar de dona.
Svetlana se remexeu, desconfortável, um arrepio percorrendo suas costas. Não suportava aquele escrutínio. A hostilidade acumulada acendeu-se em suas palavras.
—Não quero estar aqui. Estou contra a minha vontade.
Fiorella inclinou a cabeça, divertida, com um brilho sombrio no olhar.
—Já viu o signore?
Svetlana balançou a cabeça, sentindo uma sombra de medo crescer dentro de si.
O sorriso de Fiorella tornou-se lento, malicioso, como o de um gato diante da presa.
—Ele é complicado —disse em tom grave. — Quando conhecê-lo, não se assuste. Ele é impiedoso.
As palavras de Fiorella cortaram o ar como lâminas, cravando-se no peito de Svetlana.
—Não olhe nos olhos dele. Nunca —advertiu Fiorella, balançando a cabeça com falsa compaixão. — Queria que alguém tivesse avisado a moça que trouxeram antes de você...
Svetlana piscou, presa entre o medo e a curiosidade.
—Quem? —sussurrou, inclinando-se um pouco.
Fiorella baixou a voz, como se temesse que o simples som fosse perigoso.
—A anterior. Não sabia o quão cruel ele era. Só por encará-lo sem permissão, mandou matá-la. No jardim.
O ar ficou mais denso, quase impossível de respirar. Svetlana engoliu em seco, tentando controlar o tremor das mãos.
—Não... —murmurou, negando com a cabeça.
Mas Fiorella não parou. Inclinou-se mais, os olhos brilhando com crueldade.
—Antes, deixou que seus homens a... “aproveitassem”. Sabe do que estou falando?
O terror tomou conta de Svetlana. Seu corpo se enrijeceu, como se esperasse um golpe. Fiorella recostou-se, satisfeita com o efeito.
O chão pareceu sumir sob seus pés. Sua mente buscava uma saída, qualquer esperança.
—Ajude-me a fugir —implorou, a voz rachada pela angústia.
Fiorella ergueu a sobrancelha, fingindo surpresa, saboreando o poder.
—Impossível. Só posso te dizer uma coisa: não olhe para ele, fique parada, sem se mover. Talvez assim... ele não te machuque.
Fez uma pausa teatral, antes de soltar a sentença mais sombria:
—Ele gosta de quebrar meninas como você.
Cada palavra apertava o nó em seu peito.
—Por favor... me ajude —repetiu, as lágrimas surgindo, a voz trêmula.
Fiorella negou com a cabeça, sorrindo cruelmente.
—Não posso. Mas se conseguir sair por aquela porta —apontou uma lateral— e correr rápido, vai chegar ao jardim. Se conseguir enganar os homens dele, talvez alcance o portão e escape.
Levantou-se com calma, deixando Svetlana afundada no caos. Seu sorriso cresceu. Tinha saboreado cada segundo daquele jogo de terror.
Da cozinha, a mãe de Fiorella a observava com reprovação. Sabia que sua filha podia ser cruel, mas não havia tempo para repreensões.
Svetlana ficou sozinha, o pânico crescendo como um incêndio. Cada palavra ressoava em sua cabeça. Olhou ao redor, o coração disparado. Seu instinto dizia para ficar, mas a adrenalina venceu.
Sem pensar, cruzou o limiar indicado por Fiorella.
Inspirou fundo, buscando coragem. Correu o mais rápido que pôde. O ar frio golpeava seu rosto, alimentando sua determinação.
Ao chegar ao jardim, parou bruscamente ao ver um guarda.
Colou-se à parede, respirando rápido. Procurou outra saída. Um caminho entre arbustos surgiu. Esgueirou-se por ele, torcendo para não ser vista.
Chegou a um canto solitário. O alívio e o medo se misturaram. Correu sem rumo, procurando uma saída.
O jardim era um labirinto, idêntico em todos os cantos. O portão que lembrava parecia ter sumido.
Mas então viu um muro de tijolos.
Não era alto. Podia escalá-lo.
A esperança a impulsionou. Subiu com agilidade, ignorando o frio que atravessava suas roupas.
Ao alcançar o topo, pulou para o outro lado.
O impacto a fez cambalear, mas ao erguer o olhar ficou sem fôlego.
Um jardim mágico a cercava.
Rosas vermelhas vibravam em arbustos impecáveis. Uma fonte de mármore com um cisne branco reluzia sob o sol, que espalhava reflexos coloridos como em um sonho.
Por um instante, esqueceu o medo. Amava cisnes. Para ela, significavam liberdade e graça. Permitiu-se imaginar que era como aquele cisne: livre, elegante, longe do perigo.
Mas a realidade a atingiu em cheio.
Procurou uma saída, mas o jardim era fechado, inacessível.
Suspirou e se virou para escalar novamente.
Suas mãos tocavam o topo quando uma voz profunda a deteve.
—Está entrando ou saindo?
O tom era zombeteiro, como um trovão rompendo o silêncio do jardim.