Capítulo 4

Ruby

Eu precisava sair da casa do meu pai. Não por ele, ele teria me deixado morar ali para sempre, mas por mim. Toda manhã eu acordava com o cheiro de café forte e o som da televisão ligada no noticiário, e aquilo me lembrava que eu tinha vinte e quatro anos e estava vivendo como se tivesse setenta.

Então, três semanas depois de deixar a mansão, aluguei um apartamento minúsculo em Camden. Um quarto, uma cozinha tão pequena que mal cabia uma pessoa, banheiro com azulejo rachado e uma janela que dava para um muro. Era perfeito. Era meu.

Cortei o cabelo até o ombro, eu me senti linda e sexy com esse corte. Comprei roupas com meu próprio dinheiro, não com cartão black de ninguém. Consegui um emprego de assistente administrativa numa agência de eventos pequena.

Salário baixo, chefe exigente, mas era honesto. Eu chegava em casa cansada, tomava banho, comia algo simples de fazer na frente da televisão e dormia sem esperar o ronco de nenhuma moto. Pela primeira vez na vida, o silêncio da noite era meu.

Mas as noites ainda doíam. Eu sonhava com ele. Sonhava com aqueles olhos cinza me olhando como se eu fosse nada. Acordava com o travesseiro molhado e o peito apertado. Às vezes pegava o celular e quase ligava para o número que eu ainda sabia de cor. Depois jogava o aparelho longe e xingava até cansar.

Numa sexta-feira, minha chefe me chamou no canto da sala.

— Ruby, tem uma festa amanhã à noite. Gala de tecnologia, clientes importantes. Preciso de alguém pra ajudar no credenciamento e ficar de olho nas listas VIP. Pago hora extra e ainda te dou carona. Topa?

Eu quase disse não. Festa chique era o mundo dele. Mas o aluguel estava atrasado e eu precisava do dinheiro.

— Topo.

No sábado eu coloquei o único vestido preto decente que ainda tinha do tempo de mansão, justo, decote discreto, comprimento na canela, e prendi o cabelo num coque baixo. Nada de joias. Nada que lembrasse quem eu tinha sido.

O evento era no Shard, aquele prédio de vidro que parece furar o céu de Londres. Luzes brancas, taças de champanhe, gente falando alto sobre ações e criptomoedas. Eu fiquei atrás da mesa de credenciamento com um tablet na mão, sorrindo para estranhos e carimbando pulseiras VIP.

Foi quando eu senti. Aquele arrepio na nuca que a gente sente quando está sendo observado. Levantei os olhos e ele estava do outro lado do salão.

Andrew Sinclair.

Eu sabia quem ele era, todo mundo sabia. Ceo da Sinclair Tech, quarenta anos, um metro e noventa de puro perigo em forma de homem. Cabelo castanho com corte asa-delta impecável, barba de três dias, terno cinza-escuro aberto no peito, camisa branca sem gravata. Ele conversava com um grupo de investidores, mas os olhos estavam em mim. Olhos verdes, intensos, quase felinos.

Eu abaixei a cabeça rápido, sentindo o rosto esquentar. Quando voltei a olhar, ele já vinha andando na minha direção, cortando o salão como se ninguém mais existisse.

Ele parou na minha frente, apoiou as mãos na mesa e se inclinou um pouco.

— Você parece deslocada aqui — disse, a voz rouca, com um leve sotaque que eu não consegui identificar.

Eu levantei o olhar. De perto ele era ainda mais bonito. E mais perigoso.

— Estou — respondi, sem desviar o olhar. — É o que acontece quando a gente tenta se encaixar num lugar que não é nosso.

Ele sorriu de canto. Aquele sorriso que prometia problemas bons.

— Engraçado. Eu acho exatamente o oposto. — Ele pegou uma taça de champanhe da bandeja que passava e tomou um gole sem tirar os olhos de mim. — Você parece alguém que nasceu pra estar no centro de tudo, só ainda não descobriram.

Eu ri sem querer. Foi um riso curto, nervoso.

— Você nem me conhece.

— Ruby Wilder — ele falou meu nome inteiro, devagar, como se estivesse provando o gosto. — Vinte e quatro anos feitos recentemente. Ex-esposa de Ethan Storm. Divórcio assinado há um mês. Mora num apartamento de merda em Camden e está trabalhando de hostess porque precisa pagar as contas. Acertei?

Eu congelei. O tablet quase escorregou da minha mão.

— Como você…

— Eu faço meu dever de casa — ele interrompeu, ainda sorrindo. — E você é o tipo de mulher que faz homem como eu querer saber tudo.

Antes que eu pudesse responder, alguém gritou o nome dele do outro lado do salão. Um grupo de japoneses com crachás de investidores. Ele ergueu a mão num gesto de “já vou”, mas não se mexeu.

— Tenho que ir — disse, tirando um cartão preto do bolso interno do paletó. Colocou na minha mão e fechou meus dedos em cima dele. O toque foi rápido, mas queimou. — Quando decidir parar de sobreviver e começar a viver de verdade, me liga. Dia ou noite. Eu atendo se for você.

Ele se afastou. Eu fiquei olhando para as costas largas dele desaparecerem no meio da multidão, o coração batendo tão rápido que parecia que ia explodir no peito.

Guardei o cartão no sutiã, o único lugar que eu sabia que não ia perder.

Naquela noite, quando cheguei no meu apartamento, joguei as chaves na mesinha, tirei os sapatos e sentei no chão da sala com o cartão na mão.

Andrew Sinclair.

O homem que olhava para mim como se eu fosse a única mulher do planeta. Eu ainda não estava pronta. Ainda doía demais. Ainda sonhava com Ethan todas as noites.

Mas depois de muito tempo, eu senti um calafrio que não era de tristeza. Era de curiosidade. Era de perigo. Era de vida. E aquilo me assustou mais do que qualquer coisa.

Eu me levantei do chão, ainda com o cartão preto entre os dedos, e fui até o espelho pequeno do corredor.

O reflexo que me encarava não era mais a esposa de fachada de Ethan Storm. O cabelo estava mais curto, os olhos fundos de tanto chorar, mas havia algo novo ali. Uma faísca. Uma raiva quieta que estava virando combustível.

Olhei de novo o cartão.

Não tinha nome de empresa, só um número de celular e três palavras escritas à mão, em letra firme:

— “Sem medo, Ruiva.”

Sem medo? Presunçoso.

Eu ri sozinha, um riso amargo que ecoou no apartamento vazio. Medo era tudo que eu conhecia nos últimos dois anos.

Guardei o cartão na gaveta da cômoda, embaixo das calcinhas, onde eu sabia que ia ver todo dia. Não ia ligar. Ainda não. Mas também não ia jogar fora.

Tomei um banho quente, deixei a água deslizar na pele até ficar vermelha. Quando saí, o espelho estava embaçado. Passei a mão e escrevi com o dedo:

— “Ruby Wilder volta a viver amanhã.”

Deitei na cama pequena e confortável, abracei o travesseiro e então, desde que saí da mansão, não sonhei com Ethan.

Sonhei com olhos verdes me encarando como se eu fosse o prêmio mais valioso do mundo. E quando acordei, no meio da noite, com o coração acelerado, eu sorri no escuro.

Ainda não estava pronta. Mas eu queria estar.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App