Mundo de ficçãoIniciar sessãoRuby
Dois anos. Setecentos e trinta dias acordando sozinha naquela cama fria. Setecentos e trinta noites ouvindo o ronco da moto dele chegando de madrugada, sabendo exatamente para onde ele tinha ido. Setecentos e trinta cafés da manhã em que eu sorria para os empregados como se tudo estivesse bem, enquanto por dentro eu morria um pouco mais. Ethan nunca gritou comigo. Nunca me bateu. Nunca me humilhou na frente de ninguém. Ele simplesmente me apagou. Eu era a esposa perfeita de fachada, acompanhava ele nos eventos, sorria para as fotos, usava os vestidos caros que ele mandava comprar. Em público, ele colocava a mão na minha cintura, me apresentava como “minha Ruby” e todo mundo babava, dizendo o quanto éramos o casal perfeito. Em casa, eu era invisível. Eu já tinha tentado de tudo. Tinha chorado, implorado, me jogado, me humilhado. Depois parei de tentar. Parei de usar roupas curtas, parei de passar perfume, parei de esperar ele chegar. Comecei a viver como um fantasma dentro da própria casa. Mas tem um limite para o quanto uma pessoa aguenta. Naquela tarde de terça-feira, eu estava no corredor do segundo andar quando ouvi a voz dele vindo do escritório. A porta estava entreaberta. Eu parei, como sempre fazia, porque mesmo sabendo que ia doer, eu ainda precisava ouvir. — Eu também sinto sua falta, Astrid… — a voz dele estava suave, quase carinhosa. — Claro que vou te buscar mais tarde, amor. Deixa comigo. Amor. Ele nunca tinha me chamado de amor. Nem de querida. Nem de nada. Algo dentro de mim quebrou de vez. Eu entrei no quarto, abri o cofre que ficava atrás do quadro, ele mesmo tinha me ensinado a combinação meses atrás, “caso precise de dinheiro rápido”, peguei o envelope que eu tinha preparado há semanas. Dentro, o pedido de divórcio já assinado por mim e revisado pelo advogado que eu contratei escondido. Respirei fundo, limpei o rosto, endireitei a coluna e desci as escadas. A porta do escritório estava aberta. Ethan estava de pé, de costas para mim, olhando pela janela enorme. Camisa preta com as mangas dobradas como sempre, celular no ouvido, sorriso na voz. — Sim, meu amor… eu também mal posso esperar pra te ver. Eu entrei. Parei no meio do tapete. — Ethan. Ele virou a cabeça de lado, me viu, mas continuou falando no telefone. — Um segundo — disse para ela, e cobriu o celular com a mão. — O que foi, Ruby? Eu coloquei o envelope em cima da mesa dele, bem no centro. — Preciso que você assine isso. Ele nem olhou para o envelope. Pegou a caneta que estava ao lado do teclado, abriu sem ler, virou a página e assinou no lugar marcado com um X vermelho. — Tá bom assim? — perguntou, já voltando o celular para o ouvido. — Tá — minha voz saiu firme, surpreendentemente firme. — Perfeito — ele murmurou, já virando a cadeira de volta para a janela. — Astrid, amor, continua… eu tô ouvindo. Eu peguei o documento assinado. As lágrimas começaram a cair, quentes, dolorosas, escorrendo pelo meu rosto enquanto eu olhava para as costas dele. Ele nem percebeu. — Está feito — sussurrei, mais para mim mesma. Ele continuou falando, rindo baixo, planejando o encontro daquela noite como se eu nunca tivesse existido. Eu subi as escadas devagar. Entrei no quarto, abri o closet e tirei as duas malas que já estavam prontas há dias. Coloquei a roupa mais simples que tinha, um jeans, uma blusa branca, tênis. Peguei só o necessário… documentos, algumas roupas, o notebook. Deixei todas as joias, todos os cartões, todos os presentes caros que ele tinha me dado. Antes de sair, peguei um papel e uma caneta na mesinha ao lado da cama. Escrevi com a letra tremendo: — “Obrigada por cuidar de mim, mesmo sem me amar. Agora vou cuidar de mim mesma. - Ruby.” Deixei o bilhete bem no meio da cama dele, em cima do travesseiro que ele nunca usava. Desci as escadas pela última vez. O motorista particular estava no hall, surpreso de me ver com malas. — Senhora Storm, precisa que eu… — Não precisa mais me chamar assim — interrompi, a voz firme. — Me leva até a casa do meu pai, por favor. Ele hesitou, mas obedeceu. No caminho, eu olhei pela janela do carro. Londres passando rápido, luzes borradas pelas lágrimas. Eu não conseguia parar de chorar, mas era um choro diferente. Não era mais de dor. Era de alívio. Quando o carro parou na frente da casa do meu pai, eu respirei fundo. — Obrigada por tudo, Carlson — falei para o motorista. — Pode voltar pra mansão. E… pode dizer pro Ethan que eu fui embora se quiser caso ele pergunte. Ele abriu a boca para falar alguma coisa, mas eu já estava saindo do carro. Subi as escadas da varanda, bati na porta da casa onde meu pai agora morava. Ele abriu, viu minhas malas, viu meu rosto inchado, e me puxou para um abraço. — Minha filha… Eu chorei no ombro dele como se tivesse cinco anos de novo. Naquela noite eu dormi no sofá, com o cheiro de casa me acompanhando e segurança. Pela primeira vez em dois anos, eu dormi sem esperar o ronco da moto dele chegar. Eu estava livre. Doía pra caralhø. Mas eu estava livre. Fechei os olhos no sofá do meu pai e tentei imaginar a cara dele quando finalmente percebesse. Talvez só daqui a duas, três semanas. Talvez quando precisasse de mim para alguma festa importante e eu não estivesse na mansão. Talvez quando Astrid perguntasse por que a esposa dele nunca mais aparecia nos eventos e ele fosse obrigado a inventar uma desculpa. Eu queria estar lá pra ver. Queria ver o momento exato em que aqueles olhos cinza-gelo lessem o bilhete e entendessem que eu não era mais dele. Que ele tinha assinado minha saída da vida dele enquanto falava “meu amor” para outra mulher. Eu queria que doesse nele pelo menos metade do que estava doendo em mim agora. Porque, naquele instante, ele ainda estava no escritório, de costas para a mesa, planejando a noite com ela. Ainda rindo baixinho. Ainda achando que eu estava lá em cima, no quarto, esperando como uma idiota de sempre. Ele não fazia ideia de que as malas já estavam no closet prontas há dias. Não fazia ideia de que eu tinha deixado a aliança de casamento em cima do bilhete. Não fazia ideia de que eu nunca mais ia voltar. E essa era a única coisa que me dava força para respirar. Porque, pela primeira vez em dois anos, eu tinha tomado uma atitude que ele não esperava. Eu tinha ido embora sem avisar, sem brigar, sem dar a ele o prazer de me ver implorar mais uma vez. Eu tinha simplesmente desaparecido. E quando ele descobrisse… aí sim eu queria estar bem longe. Longe o suficiente para não correr de volta só porque ele mandasse me buscar. Naquela noite eu dormi com o coração em pedaços, mas com uma pontada nova no peito. Não era mais só tristeza. Era raiva. Era orgulho. Era o começo de algo que eu ainda não sabia nomear, mas que já me fazia sentir viva de novo.






