MARIA AMARAL
Antes de mesmo de abrir os olhos ao acordar de repente, sinto o alivio invadir meus ossos. Um maldito pesadelo, uma maldita lembrança daqueles três anos no inferno. Foi isso que me despertou.
Como um zumbi, caminho até o banheiro e tomo um banho, esfregando com força a pele do meu corpo todo, ao ponto de ficar vermelha e ardendo. É sempre assim quando as lembranças vem em forma de pesadelo. Antes de me vestir paro na frente do espelho. Sorrio com amargura. Por mais que minha alma e meu coração pareçam mortos, meu corpo se mostra saudável. Dentro do peso ideal para meus 1,59 de altura. A visão seria um bálsamo se não fossem as manchas pequenas e esbranquiçadas nas dobras de ambos os braços. Já estão com um aspecto suave, mas continuam ali, como um lembrete dos piores momentos. Minha pele não esquece, nem eu.
Às vezes, como um fantasma, ainda posso sentir a agulha entrando e levando minha mente a não lutar mais, a desistir, assim como meu corpo.
— Mais um dia de merda! — Suspiro e me visto.
Saio do quarto e desço as escadas do pequeno sobrado onde vivo com meu irmão. A casa é cortesia do seu chefe, o dono do morro.
João está à mesa com seu estilo malandro que adquiriu no tempo em que estive fora de sua vida. Camisa, jeans, uma corrente prata fina sem pingente, além dos óculos escuros que estão sobre a mesa. Sem contar todos os músculos que meu maninho franzino ganhou nesse pouco tempo. Dezessete anos apenas... e tanta carga e responsabilidades. Ele não fala muito sobre, mas sei que matou a mulher que nos levou de casa, e não foi uma morte rápida.
Seu olhar desvia da xícara de café preto e me encara. Só assim percebo que estou parada na porta.
— Está bem? — questiona olhando meus braços, ainda vermelhos.
Apenas assinto. Nem pergunto mais se meus gritos durante a noite incomodaram. Já tivemos essa conversa várias vezes e ele sempre diz que não incomoda e que nem aceita que eu more em outro lugar.
— O de sempre. — Finalmente respondo, me sentando e pegando uma maçã.
— Quando você vai vê-los? Eles sempre perguntam por você.
Solto um longo suspiro. Meus pais. Sinto tanta saudade deles. Mas só de pensar em encará-los meus olhos querem vazar as lágrimas que tanto prendo.
— Maninha, eles não sabem o que aconteceu. Se você não quiser contar, nunca vão saber. E sentem sua falta.
— Eu sei.
Diferente de mim, que fiquei anos nas mãos daquelas pessoas, João foi resgatado logo no início. E ele sempre fazia contato com nossos pais, mentia que eu estava em uma fazenda e que lá não tinha sinal de telefone nenhum. Dizia que estávamos bem e felizes, só com saudades.
Não sei se nossos pais realmente acreditavam. Talvez sim, porque esse meu irmão mandava cartas em meu nome. Ele sabe imitar minha letra. E, segundo ele, também imita meu jeito feminino.
— Vamos no Natal — digo, sentindo meu estômago remexer de medo e ansiedade com a promessa que essas palavras trazem. — Agora me deixe tomar esse café em paz. Quero ver a Branca hoje ainda. Vamos até a praia.
— Não pode mudar de ideia. Vou avisar a eles.
Dou de ombros. Não quero mais falar sobre isso. Sequer quero pensar no que vai acontecer nesse encontro. Pode parecer tolice, mas só de imaginar a pena e a culpa no olhar dos meus pais tenho vontade de desaparecer desse mundo de merda.
— Já desistiu daquela ideia louca?
Nego com um gesto de cabeça.
— Maria! — repreende. Nego com a cabeça.
— Você vendeu sua alma ao diabo para eu estar aqui, viva e livre. Posso fazer algo parecido.
— É meu dever de irmão que te ama, acima de tudo protegê-la.
— Você não acredita na minha força? Na minha capacidade? Que também tenho direito de protegê-lo?
— Você é forte e capaz de tudo. Só acho que não precisa se arriscar. Estamos bem.
— Eu não estou. Me sinto impotente. Preciso lidar com esse sentimento, preciso me provar a minha própria força. Por favor, apenas me apoie.
Ele suspira.
— Sempre terá o meu apoio.
Me levanto, deixando o café inacabado, e levo as coisas até a pia, quando voltar cuido de lavar.
— Obrigada. — Beijo sua cabeça. — Agora me deixa ir que a Branca está me esperando.
Abraço meu irmão com força, como todas as vezes que nos separamos desde que nos reencontramos. Tenho medo de não voltar a vê-lo toda vez.
O caminho até a casa de Branca é um pouco longe e íngreme para ir andando, então pego o carro. João prefere motos mesmo.
Quando chego minha amiga já está no portão com sua sacola de praia, short jeans e a parte de cima do seu biquini favorito, azul.
— Demorei? — pergunto abrindo a porta para ela entrar.
Branca vem correndo, entra e coloca o cinto. Não somos o tipo de amigas que se cumprimentam com abraços e beijos, reservamos isso para momentos de fossa.
— Sabe que me sinto sufocada ali dentro. Preferi te esperar fora da casa. Mas você está no horário combinado. — Ela olha ao redor. — Cadê suas coisas?
— Não trouxe nada. Só vou andar pela praia um pouco.
— Achei que ia querer fazer uma marquinha. — Sei que ela está dizendo essa bobagem para me fazer rir, e consegue. Não sou o tipo que faz marquinhas na praia.
— Deixo isso para você. Ficar mais bonita e deixar sua madrasta puta. Quem mandou nascer com cabelos negros como a noite, pele clara como a neve e a boca vermelha como morango. — Brinco também.
Ela revira os olhos escuros. A partir dai nosso assunto são fantasias de como seria bom estrangular Cristal, a invejosa madrasta da minha amiga.
O passeio na praia traz muitas surpresas, inclusive um homem que acaba se tornando “prisioneiro” na casa da minha amiga. Mas isso é outra história.