— Algo que eu precise saber enquanto estive fora?Minha voz quebra o silêncio do escritório, preenchido apenas pelo som do vento lá fora batendo contra as janelas e do estalar da madeira nas paredes. A luz do fim da tarde invade o cômodo de forma suave, deixando tudo dourado e calmo — uma calmaria que parece temporária. Ao meu lado, Lord mantém a postura firme, os olhos fixos nos papéis à sua frente. Mas sei que ele está só esperando o momento certo para dizer o que realmente quer.— A aldeia se manteve tranquila — responde, finalmente. — Nos limites da cidade também. Ninguém cruzou os territórios e nenhuma movimentação suspeita foi notada.Assinto em silêncio. Já era o esperado. Com tantos olhos atentos e uma tensão rondando cada centímetro do nosso território, seria quase impossível que algo passasse despercebido. Ainda assim, fico aliviado em ouvir da boca dele.— As pessoas estão ansiosas para o Fisp — completa, cruzando os braços e me lançando um olhar de lado. — Alguns já começa
— Você está certo em protegê-la, Lord. A dor de perdê-la ou vê-la sofrer de novo seria muito maior do que a culpa de deixá-la fora dessa missão.Ele respira fundo, o maxilar tensionado.— Eu só quero que ela fique segura. Que ela se recupere. Que tenha tempo de descobrir a força que tem. Sem mais cortes, sem mais cicatrizes. Mesmo que isso seja irreal, sei que nunca vai parar de doer nela e em mim.Assinto, compreendendo mais do que palavras podem explicar.— Eu também tentei convencer a Zoe a não ir — confesso. — Ela precisa disso. Precisa encarar o pai, se o encontrarmos. Olhar nos olhos dele e entender tudo o que foi escondido por tanto tempo. É o tipo de coisa que define quem a gente vai ser daqui pra frente.— Ela vai liderar a alcateia ao seu lado — diz ele, com firmeza.— Sim. E por isso precisa estar preparada.O silêncio se instala entre nós por alguns instantes. Não um silêncio desconfortável, mas daqueles carregados de entendimento. Ambos sabemos o peso do que estamos prest
Encontro Alex na porta de casa. Vamos até a aldeia para conversar sobre o Fisp antes de partirmos. O clima está leve, mas o dia carrega aquela antecipação silenciosa — como o momento exato antes da primeira nota de uma música.Lívia está logo à frente, conversando animadamente com Gabi. Ela tem aquele brilho nos olhos que me lembrou da primeira vez em que a vi. Radiante. Forte. Serena de um jeito que transmite confiança. Tenho certeza de que ela e Gabi vão se tornar grandes amigas — se é que já não se tornaram.— Tudo bem? — a voz de Alex surge ao meu lado, baixa e preocupada. Suas mãos pousam com firmeza na minha cintura, me ancorando.Tomei o tônico que Gabi preparou para mim há pouco. Era necessário, e eu sabia disso. Mas o efeito colateral me pegou de surpresa. Um leve enjoo, uma tontura repentina. Por sorte, minha mãe estava ao meu lado no momento em que minhas pernas falharam, e me ajudou a sentar antes que eu desabasse ali mesmo.Graças à Deusa, já me sinto melhor.— Tudo. — re
A loja de artefatos fica numa das vielas mais antigas da aldeia, um lugar encantador com paredes cobertas de musgo e sinos de vento pendurados na entrada. Quando a porta se abre, um som suave de sino ecoa, e o cheiro de ervas secas e madeira queimada preenche o ar.— Essa loja é um paraíso — Lívia diz, já se adiantando até a prateleira com vidros coloridos.— Cuidado pra não acabar levando coisa demais — Gabi ri, pegando uma pequena estatueta de lobo. — Ainda temos flores pra escolher depois.— Eu só estou… olhando. — Lívia segura uma caixinha dourada com o símbolo da deusa gravado na tampa. — Olha isso, Gabi! Isso seria perfeito pro altar.As duas seguem para o fundo da loja, comentando sobre cores, arranjos, quais flores durariam mais tempo sem murchar e se poderiam usar folhas de lua prateada para o corredor central da celebração. Gabi, claro, já tinha feito uma lista mental de tudo. A bruxinha e Livia está se tornando uma dupla infalível. O que me faz sorrir.Enquanto isso, eu me
Saímos antes do dia clarear por completo. O ar ainda estava úmido da noite, e uma névoa baixa pairava sobre a trilha. Gabi seguia ao meu lado em forma humana, o capuz cobrindo parte do rosto e o passo constante. Ela não pode se transformar, então seguimos no ritmo dela. Mas mesmo assim, estávamos indo bem.Alex e Lord nos cercavam, em suas formas lupinas. Alex liderava o grupo, imponente e atento, enquanto Lord vigiava atrás, garantindo que nenhuma ameaça se aproximasse. A presença dos dois era um alívio. Um lembrete de que, mesmo com o estômago apertado e a mente cheia de dúvidas, eu não estava sozinha.Ontem conseguimos adiantar muita coisa do Fisp, e isso me deixou um pouco mais tranquila. Mas mesmo assim, a sensação de estar voltando à minha antiga casa é como um peso constante nos ombros. Minha mãe me entregou a chave da casa antiga antes de partirmos, e desde então, sinto como se ela queimasse no fundo da mochila.Eu não sinto saudades dessa terra.Na verdade, cada passo é como
— Ele me parece bemambicioso — Lord responde, olhando fixamente para a vegetação à frente. — E orgulhoso. Não acredito que tenha enterrado uma arma como essa só por medo. Ele queria alguma coisa.— Talvez controle — murmuro. — Ou talvez… ele queria libertar o que está preso nela.Um silêncio desconfortável se instala por alguns segundos.— De qualquer forma — Gabi diz, mudando levemente de assunto —, vocês perceberam como as árvores parecem diferentes por aqui?— Mais densas — Alex concorda. — Como se a floresta estivesse tentando esconder alguma coisa.— Ou protegendo — acrescento, observando os galhos tortos e a luz filtrando em feixes tênues entre as folhas.— Eu odiava brincar aqui quando era criança — confesso. — Sempre achei que algo me observava. Mas ninguém acreditava em mim.— Talvez você estivesse certa — Gabi diz, séria.Depois de um tempo, levantamos e seguimos novamente.Meus passos são mais lentos agora. A cada metro que percorremos, a aldeia de Talos se aproxima — e com
Tudo exatamente como me lembro.Em algum lugar da minha mente, reviro os olhos por já ter pensado que um dia eu me encaixaria aqui. Jamais. Não depois de saber o que me esperava. O que me espera.Minha alcateia é meu lar. Do lado do meu alfa. Do lado dos meus. A Deusa realmente sabe o que faz.O cheiro da aldeia é o mesmo — madeira antiga, fumaça, terra molhada. As construções, quase todas de pedra envelhecida e telhado baixo, se apertam umas contra as outras como se o tempo tivesse congelado aquele lugar. A única coisa que parece se mover são os olhares que nos seguem com desconfiança. Os sussurros abafados nas esquinas. O cheiro de estranhamento no ar.— Nem um pouco chamativos — Lord murmura ao meu lado.— Eu diria que somos neutros — respondo, tentando não rir. — Nos misturamos à paisagem.Gabi revira os olhos, mesmo sob o capuz. Sei que está tensa. Todos nós estamos. Nossas roupas são simples, longas o suficiente pra cobrir o rosto e esconder detalhes. As ervas que ela mesma prep
O homem nos encara com olhos semicerrados, como se tentasse reconhecer o passado estampado nos nossos rostos. Ou talvez como se já soubesse exatamente quem éramos, e só não soubesse o que fazer com essa informação.— Eu me lembro de você — ele diz, lentamente. — Você… era só uma filhote quando foi embora com sua mãe.— E agora voltei — respondo, erguendo o queixo. — Não por saudade. Mas por necessidade.Ele balança a cabeça, como se tentasse processar tudo de uma vez só.— Por que agora? — pergunta. — Depois de tanto tempo? Sua mãe quase foi morta e imagino que ainda seja banida!— Porque agora eu posso — digo. — Porque não dá mais pra fugir do que ficou pra trás.O homem desvia o olhar por um instante. A tensão entre nós é densa, como se o ar carregasse tudo o que foi enterrado aqui. Memórias. Mágoas. Verdades demais.— Não esperava vê-la de novo — ele confessa. — Muito menos assim.— Eu também não esperava voltar — admito.— E o que está procurando aqui?— Meu pai.O silêncio que se