POV Daniel Lacerda
Aquilo sim era poder. As luzes, os flashes, os apertos de mão forçados. Cada detalhe cuidadosamente arquitetado pra nos manter no topo. Era bonito de ver. E ainda mais bonito de controlar. Minha mulher era perfeita. Impecável. Fria quando precisava, gentil quando o script mandava. Isabela sempre foi isso: uma estátua de cristal colocada sob os holofotes pra me engrandecer. Um acessório caro. Útil. E perfeitamente previsível. A homenagem da Lívia foi exagerada, sim. Mas estratégica. A associação nos rendia manchetes suaves, sorrisos de colunistas e selinhos da elite progressista. E com Lívia ali ao meu lado, no palco e na cama, eu controlava os dois lados da moeda. Eu havia vencido. Pelo menos era isso que pensei… até aquele sorriso dela. Isabela. Quando Lívia citou seu nome, eu observei Isabela direto da mesa. Ela não sorriu de orgulho. Não corou. Não fingiu gratidão. Só ergueu a taça e devolveu a homenagem como se cuspisse ouro derretido. O público achou divertido. Uma provocação elegante. Mas eu conhecia aquele olhar. Isabela nunca foi passional. Nunca foi escandalosa. Mas, quando quer machucar, ela não grita. Ela esculpe. Palavra por palavra. Silêncio por silêncio. Fiquei alerta, mas não muito. Ela não era uma ameaça. Não fora criada para isso. O pai a moldou pra ser uma princesa política. Ela não sobreviveria um dia sem o próprio sobrenome. Depois da cerimônia, fui até o lounge, mas me perdi em dois brindes com empresários da construção civil. Quando vi, ela tinha sumido. E Lívia… também. Liguei. Ela atendeu no terceiro toque. — Estou no segundo andar. Esperando. Subi sem ser visto. Entrei pela lateral de serviço. O corredor estava vazio, abafado. O tipo de lugar onde qualquer coisa pode acontecer... e ninguém ouve. Ela estava lá. De costas pra mim, olhando pela janela. Quando virou, já tirava os brincos. — Você demorou — disse ela, voz baixa, lascada de adrenalina. — Esse jantar me matou — menti. Mas meu corpo dizia o contrário. Ela me puxou pela gravata. Eu empurrei-a contra a parede. E, como sempre, Lívia me recebeu com a fome dos que acreditam que estão ganhando. O mundo parou. Até o som da maçaneta girando. Olhei. Nada. Só uma leve movimentação. A porta entreaberta. Vento? Não me importei, só queria sentir, então eu continuei. Mais rápido. Mais fundo. Mas, por um instante, o prazer deu lugar à dúvida. Ao arrepio. Como se alguém estivesse nos olhando. Terminei o que tinha que terminar. Saí sozinho primeiro. Lavei o rosto no banheiro. Ajeitei o cabelo. Revisei o discurso que daria no encerramento do jantar. Voltei ao salão. E ela estava lá. Isabela. Sorrindo para uma repórter. Olhos calmos. Postura intacta. Mas algo ali estava diferente. Ela me viu. E me ignorou. *** POV Isabela Costa As luzes do salão já estavam mais suaves. O jantar, oficialmente encerrado. Mas as verdadeiras negociações aconteciam no lounge do mezanino, onde a política sussurra mais do que grita. A música ambiente soava abafada sob os tapetes caros. Eu caminhei lentamente, taça na mão, olhando em volta. — Sozinha? — perguntou Leonel, encostado na divisória de madeira entalhada. Terno impecável, gravata afrouxada. Olhos atentos. — Só por fora — respondi. Ele não sorriu. Apenas acompanhou meu olhar, como se procurasse o mesmo que eu. — A Lívia ainda está aqui? — perguntei, casual. — Sumiu depois da homenagem. Foi ao banheiro e não voltou. Por quê? Dei de ombros. — Só queria agradecer pessoalmente. — Isabela — ele disse meu nome como se testasse seu peso — se quiser que eu cuide de algo... ou de alguém... é só dizer. Havia um tom ali. Algo que queimava por baixo das palavras. Mas agora não era sobre Leonel. — Eu cuido — respondi. — Como sempre. Deixei-o ali e subi a escada lateral para o segundo andar, onde ficavam os lounges privados. Um corredor com pouca iluminação, cheiro de uísque, veludo e silêncio. Andei devagar. Cada passo ecoava nos saltos finos. Meu estômago embrulhava. O coração não batia, ele marchava. E então ouvi. Um gemido abafado. Seguido de outro. E o som ritmado de algo, alguém, batendo contra a parede. O corredor da esquerda. Última porta. Entreaberta. Dei mais dois passos. Parei. A respiração parou junto. Era Daniel. Camisa aberta. Gravata no chão. Corpo pressionado contra o de Lívia, que gemia com a boca entreaberta, cravando as unhas no pescoço dele como se o marcasse como propriedade. Eles não me viram. O som deles era o de dois animais. Nenhuma palavra. Só desejo sujo. Traição nua. Sem vergonha. Sem culpa. Eu observei por cinco segundos. Talvez dez. Peguei o celular, tirei fotos e gravei alguns segundos, precisava de provas! Depois voltei. Passo por passo. Controlada. Como se não tivesse visto nada. Como se minha alma não estivesse se desfazendo em silêncio. Quando cheguei ao pé da escada, Leonel ainda estava lá. Assim que ele me viu, descruzou os braços. — Isabela? — disse ele, com a testa franzida. — Você está... — Cuida disso — interrompi, sem olhá-lo. — De tudo. Dele. Da imprensa. Da porra da imagem. — O que aconteceu? Virei o rosto. Pela primeira vez naquela noite, deixei cair o disfarce. Só por um segundo. — Ele não está só me traindo, Leo. Ele está me desafiando. Ele arregalou os olhos. — Eu vou enterrar aquele homem com a própria gravata. E você... ou vem comigo. Ou sai da frente. E então caminhei até o salão principal. Sorri para uma repórter. Posei para uma última foto. E por dentro, jurei: Eles vão pagar. Um por um. Com tudo. E foi quando o vi. Daniel. Descendo as escadas como se nada tivesse acontecido. Gravata alinhada, rosto limpo, o mesmo sorriso político que enganava a cidade inteira, mas não a mim. O coração batia firme, ritmado como um relógio de guerra. Eu me afastei do salão. Caminhei pelo corredor lateral até a varanda externa do hotel, onde os seguranças evitavam interferir. O vento noturno levantava os fios soltos do meu cabelo. O vestido colava no corpo, pesado de cólera. Apoiei as mãos no parapeito e fechei os olhos. Mas não fiquei sozinha por muito tempo. — Isabela — disse Leonel Ferraz, com a voz baixa e firme. — O que houve? Por que saiu quase correndo do salão? Virei o rosto. Ele estava ali. Terno escuro, sem gravata, o olhar que misturava cuidado e raiva contida. Ele já sabia. Ou pelo menos, sentia. Leonel sempre soube ver por trás do espetáculo. O ar da varanda estava denso, quase elétrico. Leonel se aproximava com passos controlados, o olhar sério. Não respondi. Só encarei o horizonte escuro, o corpo em alerta, a mente girando como faca. E então o vi. Daniel. Descendo as escadas com pressa, os olhos varrendo o ambiente até me encontrar. O terno impecável de antes agora parecia apertado, suado. A pose, torta. Ele vinha na minha direção como um cão mordido. Meu sangue ferveu. Ódio. Vergonha. Raiva. Nojo. Pensei em tudo que vi. Em Lívia, arqueando as costas sob ele. No gemido. No riso. No deboche. E quando Daniel chegou a poucos passos, respirei fundo… e puxei Leonel com força pela gola. Beijei-o com raiva. Com fúria. Com a intenção de que ele visse. Daniel parou. Os olhos arregalados, injetados de fúria. — Sua desgraçada! — gritou. Ele avançou sem pensar e, num movimento brusco, me empurrou. Cambaleei dois passos pra trás, o salto raspando o chão de pedra. Leonel me segurou antes que eu caísse. — Está maluco?! — ele gritou, virando-se pra Daniel. — Tira as mãos dela, seu verme! — Daniel berrou, e desferiu um soco direto no rosto de Leonel. O estalo ecoou na varanda. Leonel revidou com força. Um direto no estômago de Daniel, que se curvou com um gemido abafado. Os dois se agarraram, cambaleando entre as cadeiras de ferro forjado, derrubando uma mesa lateral. — Parem com isso, antes que a mídia veja! — gritei, minha voz rasgando o ar. Seguranças se aproximaram, hesitando. Um deles olhou para Leonel, reconhecendo-o. Ninguém sabia se intervia. Daniel limpava o sangue do lábio com o dorso da mão. — Isso... isso é traição! Eu vou acabar com vocês dois! — ele cuspiu. — Você já acabou, Daniel — respondi, firme. — E não percebeu porque estava ocupado demais se afundando no próprio lixo. Leonel respirava fundo, tentando conter a raiva. — Você não toca mais nela — disse, encarando Daniel com uma frieza que eu nunca tinha visto antes. Daniel apenas me olhou, olhos faiscando ódio. — Você vai se arrepender disso, Isabela. — Me arrependi de me casar com você. O resto? Só vai ser consequência.