A floresta parecia viva naquela noite, como se as árvores sussurrassem entre si segredos antigos. Lia Ashford corria entre os troncos, os pés descalços tocando a terra fria e úmida, o coração trovejando em ritmo de guerra.
O uivo que ouvira mais cedo ainda ecoava em sua mente. Era um chamado. Uma convocação. Sua família a esperava — e ela já estava atrasada. Ela parou num pequeno riacho e olhou seu reflexo na água. Os olhos ainda eram seus — um verde, um azul — mas havia algo de selvagem crescendo neles. Algo que só surgia quando a lua estava cheia. — Controle — ela sussurrou para si mesma. — Respira. Você ainda é você. Mas no fundo, ela sabia que isso era mentira. A cada ciclo, a cada lua, Lia sentia-se escorregar. Como se uma parte dela quisesse ser como eles: feroz, impiedosa, predadora. E era justamente essa parte que ela mais temia. Quando finalmente chegou à clareira, o círculo já estava formado. Lobos e humanos misturados, em diferentes estágios de transformação. Alguns com olhos dourados reluzindo no escuro. Outros, como sua tia Helena, já em forma completa — pelagem cinza e postura imponente. O pai de Lia, Damian Ashford, estava no centro, usando um sobretudo longo e um olhar que impunha silêncio. — A última a chegar — ele anunciou, sem levantar a voz. — Como sempre. Todos se voltaram para ela. Lia permaneceu firme, os ombros erguidos, mesmo que por dentro estivesse tremendo. Não de medo. Mas de repulsa pelo que sabia que viria. — A presa desta noite foi escolhida — continuou Damian. — Um vagabundo de rua, alguém que canta nas praças. Sem família. Sem raízes. Sem consequências. Lia congelou. Não. Não podia ser. Damian abriu um papel amassado e ergueu diante de todos. Era uma foto impressa, borrada, recortada de um jornal local ou de uma rede social. Era Etan. A mesma imagem que Lia gravara na mente: o sorriso leve, o boné caído de lado, o violão em mãos. Só que agora, aquele rosto era a sentença de morte de um ritual ancestral. — Encontraram ele hoje — disse o primo Ulric, com um tom de desprezo. — Vadia da cidade. Cantando feito um encantador de serpentes. Lia sentiu o sangue gelar. Não sabia se tremia de ódio ou pavor. — Ele não é um deles — ela conseguiu dizer. — Ele é... inocente. Um silêncio pesado caiu sobre o grupo. — Inocente? — Damian arqueou uma sobrancelha. — Desde quando isso importa para nós, Lia? — Desde que decidimos não ser monstros. Alguns uivaram, outros riram. Mas Damian não. Ele deu dois passos à frente e olhou a filha nos olhos. — Está defendendo um humano, filha? Está desafiando o sangue que corre nas suas veias? Lia não desviou o olhar. — Estou defendendo uma escolha. — Então escolha agora — disse Damian. — A caçada começa à meia-noite. Ou você se junta a nós... ou será caçada também. O silêncio virou ameaça. Helena, a tia, se aproximou com olhos vermelhos como brasas. Ulric rosnava de forma baixa. Outros se entreolhavam, como se já vissem o desfecho. Lia fechou os punhos. Sentia o calor do sangue pulsar sob a pele. Queria gritar. Queria correr até Etan, arrancá-lo dali, escondê-lo do mundo. Mas havia algo que precisava fazer antes: desafiar a ordem. — Se querem ele, terão que passar por mim. Ulric avançou. Lia girou o corpo e o acertou com uma rasteira rápida, caindo com o joelho sobre seu peito. Era ágil. E agora, estava com raiva. — Chega! — gritou Damian. — Lia, você perdeu o juízo! — Talvez — ela disse, arfando. — Ou talvez eu tenha encontrado algo que vocês perderam há muito tempo: compaixão. Ela se ergueu, os olhos agora brilhando com luz prateada. A transformação começou devagar — os dedos se alongando, os dentes tomando forma. Mas Lia recuou. Ela não queria lutar. Não ainda. — Ele vai embora da cidade — ela disse. — Hoje. E vocês vão esquecê-lo. Damian a observou por longos segundos. Depois virou as costas. — Vamos caçá-lo. Com ou sem você. E com isso, os lobos sumiram na mata. --- A cidade dormia. Mas Lia corria. Cada rua, cada viela, cada sombra... tudo era ameaça. Ela correu até a praça, o coração pulando na garganta. Etan estava lá, como sempre, cantando baixo para ninguém além de si mesmo. — Etan! — ela gritou, ofegante. — Você precisa vir comigo. Agora. Ele a olhou confuso, mas a urgência em seus olhos não permitia perguntas. — Pegue seu violão. Só isso. Vem. Sem hesitar, ele obedeceu. Eles correram pelas ruas até uma antiga estação abandonada. Lia conhecia o lugar. Um ponto neutro. Ali, os lycans não cruzavam. — Lia... o que está acontecendo? Ela o olhou, as lágrimas misturadas ao suor. — Minha família quer te caçar. Eles te escolheram. Como fazem com todos que acham que ninguém vai notar. Etan empalideceu. Mas não fugiu. Não gritou. — E você? Vai me proteger deles? Ela assentiu. — Nem que eu precise me tornar Alfa para isso. — E o que acontece se você não conseguir? Lia respirou fundo. Os olhos agora estavam banhados em dor e certeza. — Então você vai cantar pra mim... do outro lado. Ele a puxou num abraço repentino. Forte. Humano. Quente. Lia sentiu que, pela primeira vez, não precisava se esconder. Nem mentir. — Eu não vou te deixar, Lia — disse Etan. — Nem que eu precise uivar com você sob essa lua maldita. E foi naquele instante que Lia soube: ou mudava a alcateia... ou criava uma nova. Com ele.