O som das rodas nos trilhos abandonados ecoava pelas paredes escuras da velha estação. Lia sentia cada batida do próprio coração como se fosse um tambor de guerra. A presença de Etan ao seu lado era uma centelha de calor no meio da escuridão, mas mesmo aquela chama parecia frágil diante do que se aproximava.
Ela sabia que sua decisão naquela noite mudaria tudo. Não apenas para ela e Etan. Mas para toda a linhagem dos Ashford. Para toda a alcateia. Etan se acomodou num canto, o violão encostado à parede, as mãos ainda tremendo. — Você sempre soube que era... isso? — ele perguntou, os olhos fixos nos dela. Lia hesitou. — Desde os oito anos. A primeira transformação. Meu pai me levou para o bosque, disse que era a minha noite de nascimento verdadeiro. Não entendi até sentir meus ossos queimarem. Até ouvir meus próprios gritos se tornarem uivos. Etan engoliu em seco. — E nunca pensou em fugir? Ela riu sem humor. — Já tentei. Mas sempre volto. Por medo. Por lealdade. Por sangue. — Ela baixou os olhos. — Mas agora tenho um motivo real para não voltar mais. Ele se aproximou. Tocou seu rosto com cuidado, como se temesse quebrá-la. — Eu não sei o que posso fazer contra monstros. Mas se você me disser pra correr... eu corro com você. — Não quero correr. Não mais. Quero lutar. Quero mudar as regras. — O olhar dela queimava. — Quero ser Alfa. Etan riu baixo. — Você fala como uma lenda. — Talvez eu precise ser uma. --- Horas depois, a floresta voltou a rugir. Os caçadores tinham falhado. Etan escapara. E a ausência de Lia gritava mais alto do que qualquer uivo. Damian Ashford se sentou à cabeceira da mesa de pedra dentro do Salão da Pedra Velha — um local sagrado entre os lycans. Ao seu lado, os anciãos da alcateia. Os que carregavam no corpo as cicatrizes de gerações. — Ela quebrou o pacto — disse um deles. — Salvou um humano. Pior: se apaixonou por ele. — Típico de sangue fraco — rosnou outro. — Devia ter sido casada há anos. O acordo com os Darion foi desonrado. Damian calou todos com um levantar de mão. Seus olhos estavam frios, mas algo queimava por dentro. Raiva? Dor? Vergonha? — Lia é sangue do meu sangue — disse. — E como Alfa, devo protegê-la. Mas como líder... devo puni-la. Os anciãos assentiram. A punição seria decidida no próximo ciclo. Mas Lia sabia que não tinha até lá. A caça já começara. --- Ela e Etan passaram o dia escondidos entre os escombros de um antigo chalé caído, onde as raízes engoliam o teto e musgos cobriam o chão. Lia recitava antigas lendas da alcateia, como se precisasse lembrar quem era — ou reinventar a própria história. — Existem duas formas de ascender — explicou ela, sentada ao lado de Etan. — Pela linhagem... ou pelo desafio. — E o que significa isso? — Que se eu desafiar meu pai e vencer... a liderança é minha. Etan piscou. — Você pode derrotar ele? Ela não respondeu de imediato. — Se eu lutar como loba, talvez. Mas se lutar como humana... nunca. Ele tocou sua mão. — Então lute como os dois. Lute como Lia. A mulher que salvou minha vida. Ela sorriu. E naquele sorriso havia o brilho de uma ideia. --- Na noite seguinte, Lia retornou. Sozinha. Atravessou os portões de ferro da propriedade Ashford com a cabeça erguida e os pés descalços. A lua cheia nascia atrás dela, como uma coroa prateada. Os lobos se reuniram. Os olhos faiscavam. Alguns queriam sangue. Outros, respostas. Damian estava no centro do salão, o olhar flamejante. — Veio sozinha? — Vim por honra. — E o humano? — Está a salvo. Em terra sagrada. Onde nenhum de vocês pode pisar. Ele cerrou os punhos. — Você ousa zombar da nossa lei? — Não. Eu a desafio. Um murmúrio percorreu os presentes. Helena se ergueu, Ulric rosnou. Damian deu um passo à frente. — Você me desafia, Lia Ashford? — Pelo direito de liderar. Pelo direito de mudar. Pelo direito de amar quem quiser. O silêncio foi cortado por um trovão distante. A floresta parecia segurar o fôlego. — Que assim seja — disse Damian. — No nascer do sol. Diante da alcateia. --- A batalha seria feita na Clareira do Eco — um local onde os uivos da história ainda vibravam nas árvores. Etan, escondido entre sombras, assistia de longe. Ele queria correr, gritar, impedir. Mas sabia que esse era o destino dela. Lia se despiu das amarras. Das dúvidas. Da obediência. E com o primeiro raio de sol, se transformou. O lobo que emergiu era dourado como o amanhecer, os olhos bicolores queimando com a fúria do amor e a coragem da escolha. Damian se transformou logo depois — um gigante de pelagem escura como carvão. O embate foi brutal. Garras contra presas. Força contra agilidade. Cada investida estremecia o chão. Lia foi ferida. Sangrou. Mas resistiu. Lembrou de Etan. Lembrou do primeiro olhar. Da praça. Da canção. Da promessa. E então, numa última manobra, saltou sobre o pai e cravou as presas na lateral do pescoço, forçando-o ao chão. Silêncio. Damian arfava. Mas não lutava mais. A rendição estava ali, no olhar. Lia soltou. Retornou à forma humana, sangrando e suando, mas de pé. — Quem sou eu agora? — ela perguntou, a voz firme. Os anciãos a olharam. Um deles se ajoelhou. — Alfa. E um a um, todos repetiram: — Alfa. Alfa. Alfa. Etan correu até ela, abraçando-a diante de todos. Lia não afastou. — Este é meu par — ela disse. — E ele é bem-vindo nesta alcateia. --- Naquela noite, pela primeira vez em anos, a caçada foi cancelada. Lobos e humanos se reuniram na clareira. Canções foram tocadas. E sob o luar, Lia e Etan dançaram. Dois mundos, antes rivais, agora em paz. Porque o amor, como os lobos... também sabe uivar.