O barulho seco do soco ecoou pela parede de madeira da academia particular. Henrique estalou os ombros, girando os punhos enquanto observava o saco de pancadas balançar de volta.
Suado, com os cabelos escuros grudando na testa, respirava de forma compassada, sem perder o foco. O som abafado de uma música eletrônica ao fundo se misturava ao rangido dos equipamentos e aos gritos roucos de incentivo vindos do ringue improvisado. Os treinos matinais eram sua válvula de escape — o único momento do dia em que podia ser só ele, sem o sobrenome, sem as expectativas. — Você vai acabar perdendo a hora de novo — disse uma voz atrás dele, com um tom provocativo. Henrique parou o movimento, ainda com os punhos erguidos. Virou-se, encontrando Beatriz parada na entrada da academia. Os cabelos castanhos presos em um rabo de cavalo alto ainda brilhavam de suor. Ela usava um short de corrida e um top justo, a pele levemente corada pelo esforço da corrida matinal. Beatriz tinha um corpo que chamava atenção até de quem não queria olhar. Pernas torneadas, cintura fina, seios proporcionais. Tudo em harmonia, mas sem exageros. Era atlética, mas extremamente feminina. E sabia disso. Ela se aproximou com um sorriso divertido nos lábios, estendendo a garrafa d’água que trazia na mão. — Achei que a gente ia correr juntos hoje. — Achei que ia dormir até mais tarde — ele respondeu, aceitando a garrafa. — Não dá pra manter esse corpinho dormindo até tarde — brincou ela, dando uma piscadinha antes de se afastar para alongar. Henrique riu, mas logo olhou para o relógio. Estava mesmo atrasado.. — Só mais cinco minutos — respondeu, pegando a toalha e passando pelo rosto. — Seu pai já está no escritório. Quer te apresentar a um desembargador de Brasília. Aquele mesmo que te indicou para o evento da semana que vem. Henrique suspirou. — Claro. Não seria um bom dia se eu não tivesse que ser o orgulho da família antes das nove. Beatriz sorriu, mas sem alegria. — Vai trocar de roupa. Eu espero no carro. Quando ela saiu, ele ficou mais um instante parado, encarando o próprio reflexo no espelho. O rosto estava mais sério do que lembrava. Não era mais o garoto que pintava o cabelo com spray azul e usava lentes verdes para fugir das obrigações e explorar o submundo que a família fazia questão de ignorar. Agora ele era Henrique Villamar, filho do renomado juiz aposentado Augusto Villamar, neto do ex-ministro da Justiça e cotado para uma carreira política ou uma cadeira no STJ. Mas por dentro… ainda tinha muito do garoto que cruzava vielas escuras só para sentir que era livre. Só que agora, ele escondia isso com um paletó bem costurado e uma oratória imbatível. Trocar de roupa, comparecer, sorrir, impressionar. Essa era a rotina. E ele fazia bem — talvez até bem demais. No carro, a caminho do escritório, Henrique ouvia o noticiário do rádio sem prestar atenção de fato. Os dedos tamborilavam no volante, o maxilar tenso. Como sempre. Chegou ao prédio de advocacia onde trabalhava com o pai e o irmão mais velho, vestindo o terno escuro com a mesma praticidade de quem veste uma armadura. Mais tarde, já sentado à mesa com os documentos espalhados à sua frente, sentiu o celular vibrar. Era uma mensagem de Beatriz. "Hoje foi puxado, mas tô viva. Que tal um café? Três amigas me indicaram um que está famosinho, parece ser super charmoso." Ela mandou junto três fotos do local — um café à beira-mar, com mesas externas e guarda-sóis brancos, ladeado por flores coloridas e vista para o mar. Henrique clicou na localização. Baía das Abelhas. A simples leitura do nome fez algo dentro dele estremecer. Seu corpo reagiu antes da mente. Um arrepio percorreu-lhe a espinha como se alguém tivesse sussurrado um segredo antigo em seu ouvido. Ficou olhando a tela por longos segundos, a imagem das cadeiras brancas e da fachada azul-turquesa do café ainda brilhando no visor. Havia muito tempo que não ouvia aquele nome. Tempo demais.