Na manhã seguinte, o cheiro de café recém-passado guiou Emily pela casa. A luz do sol filtrava-se pelas janelas, revelando a poeira no ar e o desgaste dos móveis antigos. Apesar da rusticidade do lugar, havia algo aconchegante. Ou talvez fosse apenas a sensação de distância da realidade que ela havia deixado para trás.
Alexander estava na cozinha, mexendo uma frigideira com ovos enquanto segurava uma xícara de café preto na outra mão. Usava apenas uma calça de moletom cinza e o cabelo desgrenhado fazia parecer que havia dormido pouco — ou nada. Emily desviou os olhos por um instante, tentando controlar a onda de calor que subia por seu corpo. —Bom dia — disse ela, ainda um pouco tímida. —Bom dia — ele respondeu, sem olhar para ela. —Café? —Por favor. Ele serviu a bebida em uma caneca e a entregou com um olhar que parecia pesar mais do que simples cortesia. Sentaram-se à mesa em silêncio por alguns minutos, ouvindo apenas o som da frigideira e o tique-taque de um relógio antigo pendurado na parede. —Pretende ficar quanto tempo? — ele perguntou, quebrando o silêncio. Emily o encarou. A pergunta tinha um tom neutro, mas havia algo por trás dela. Um aviso, talvez. —Não sei. Só… preciso de um tempo pra pensar. Me encontrar de novo. Alexander assentiu devagar. —Se vai ficar aqui, há regras. Ela arqueou as sobrancelhas. —Regras? —Sim. — Ele a olhou nos olhos. —Nada de entrar no sótão. Nada de sair à noite sozinha pelos arredores. E nunca, nunca, tente descobrir o que eu faço quando estou trancado no meu escritório. Emily sentiu a garganta secar. —Você é sempre tão… direto? —É assim que as coisas funcionam comigo. Eu não dou espaço para interpretações erradas. Ela mordeu o lábio, uma mistura de medo e fascínio crescendo dentro dela. —Você não é como os outros homens — disse, mais para si mesma do que para ele. —Graças a Deus, não — retrucou com um meio sorriso sombrio. —Mas isso tem um preço. Emily apoiou os cotovelos na mesa e o observou com mais atenção. Aquele homem exalava controle, poder. Mas havia algo mais. Algo que se escondia por trás da fachada rígida — uma dor antiga, talvez. Um lobo ferido. —E essas regras existem por quê? — ousou perguntar. Alexander largou os talheres e a olhou com frieza. —Porque essa casa carrega mais segredos do que você imagina. E eu não estou aqui para protegê-la deles… estou aqui para impedir que você os descubra. Um arrepio percorreu sua pele. Emily se deu conta de que estava entrando num jogo perigoso, e Alexander era o tipo de jogador que não mostrava as cartas, mas controlava o tabuleiro. —E se eu quebrar uma dessas regras? — perguntou, desafiadora, talvez impulsiva. Alexander sorriu, mas os olhos continuavam frios. —Então você vai descobrir o lado de mim que ninguém deveria conhecer. O silêncio voltou, mais pesado desta vez. Emily não sabia se ele estava blefando ou sendo brutalmente honesto. Mas uma coisa era certa: aquele homem não era feito de metáforas. Terminaram o café em silêncio. Quando ela se levantou, ele a observou como um caçador estuda sua presa — com fascínio e cálculo. E enquanto subia as escadas de volta ao quarto, Emily percebeu algo inquietante. Ela não estava com medo. Estava curiosa. E essa curiosidade seria, inevitavelmente, sua perdição.A chuva retornou naquela tarde, grossa e pesada como se o céu carregasse a mesma tensão que pairava dentro da casa. Emily passava os dedos distraidamente pelas lombadas dos livros em uma estante da sala de leitura. Desde que Alexander saíra sem dizer para onde ia, a casa parecia ainda mais silenciosa, sufocante. Havia nela uma energia contida, como se cada parede guardasse palavras que ninguém ousava dizer. Ela já estava há dois dias ali, e por mais que a casa fosse grande, havia limites muito claros. O sótão trancado, os corredores do segundo andar que pareciam ecoar passos mesmo quando não havia ninguém, e — o mais tentador de todos — o escritório de Alexander. Ele havia sido claro: "nunca tente descobrir o que faço quando estou trancado lá." Era justamente por isso que a curiosidade queimava mais forte. Emily aproximou-se da porta escura do fim do corredor. Era de madeira maciça, com detalhes talhados à mão. Ela já havia passado por ali algumas vezes, mas nunca tivera coragem de
O céu estava coberto por nuvens pesadas quando Emily atravessou os limites da casa e entrou no bosque. O mapa deixado por Alexander estava dobrado no bolso da jaqueta, com uma marca em vermelho no canto inferior. Um círculo irregular no meio da vegetação, sem nenhuma indicação do que deveria encontrar lá. Os galhos estalavam sob seus pés. O ar estava úmido, carregado de cheiros antigos — terra molhada, folhas apodrecendo, e algo mais... metálico, quase como ferrugem. A floresta parecia respirar em silêncio, viva de um jeito desconfortável. Cada passo mais fundo era também um passo mais longe da lógica. Ela seguiu pelo caminho indicado, ultrapassando arbustos densos até que, enfim, encontrou o que buscava: uma estrutura de pedra, quase totalmente coberta por musgo. À primeira vista, parecia uma ruína, uma simples parede caída. Mas ao se aproximar, percebeu que era uma porta. De ferro. Pesada. Enferrujada. Emily engoliu em seco. Não havia tranca visível. Apenas um puxador com marcas
O caminho de volta pela floresta parecia mais escuro do que quando havia chegado, apesar de o céu ainda manter o mesmo tom cinzento. Emily caminhava ao lado de Alexander em silêncio, as palavras presas em sua garganta, como se tivessem medo de tocar o que acabaram de ver. Ela ainda sentia o toque da mão dele em seu rosto, mas mais do que isso, sentia o que aquilo significava: uma confissão muda. Ele podia fingir controle, podia se esconder atrás da frieza, mas havia algo nele que vacilava perto dela. E isso era mais perigoso do que qualquer segredo. Quando chegaram à varanda da casa, Alexander parou e virou-se para ela. —Você devia fazer as malas e ir embora. Emily ergueu o queixo, a raiva contida explodindo em sua voz. —Por quê? Porque eu descobri o que você não queria que eu visse? Porque agora sei que você é mais quebrado do que tenta parecer? Ele a olhou fundo nos olhos, e pela primeira vez, Emily viu algo como medo neles. —Porque se você ficar, não haverá volta. Não vou ser
A casa parecia diferente naquela manhã. Emily acordou com a sensação de que algo nela havia mudado — algo interno, invisível aos olhos, mas impossível de ignorar. O gosto do beijo ainda pairava em seus lábios, misturado à memória das palavras que trocara com Alexander na noite anterior. Era como se uma linha tivesse sido atravessada… uma que não podia ser desfeita. Ela desceu as escadas com o coração acelerado, sem saber o que esperar. Mas Alexander não estava em lugar algum. A casa parecia vazia. Silenciosa. Só o relógio marcando o tempo, impiedoso, como sempre. Na cozinha, encontrou um bilhete em cima da mesa: “No estúdio. Se quiser saber a verdade, venha.” Não havia assinatura, mas era claro quem havia escrito. Emily seguiu o caminho indicado. Nunca estivera no estúdio, e o cômodo era isolado dos demais, com uma porta pesada e uma fechadura antiga. Quando entrou, encontrou um espaço amplo, com as paredes cobertas por quadros, telas inacabadas e cavaletes. Alexander estava sen
No dia seguinte, a casa estava ainda mais silenciosa do que de costume. Emily acordou sozinha — novamente. O quarto estava frio, e a ausência de Alexander era como um vazio físico. Ela sabia que ele se afastava sempre que se sentia exposto. Era o instinto de alguém que passou a vida se escondendo. Mas ela não recuaria. Vestiu-se rapidamente e desceu até a biblioteca. Algo a inquietava desde a noite anterior. A conversa. As cicatrizes. O beijo. E algo mais… algo que ela viu de relance no estúdio, mas não teve tempo de explorar: um cofre embutido atrás de uma das estantes, parcialmente encoberto por uma pintura inacabada. Seguindo o impulso, voltou ao estúdio. O lugar estava vazio, como esperava. A tela em branco continuava no centro da sala, mas agora havia pinceladas agressivas em vermelho e cinza sobre ela. Como se Alexander tivesse passado a noite tentando expulsar demônios à força de tinta e raiva. Ela foi até a estante ao fundo e afastou a pintura. O cofre estava ali. Antigo,
POV: Emily Eu nunca soube como o chão podia sumir sob os pés até aquele momento. Sentada diante do cofre aberto, com papéis ainda espalhados ao meu redor, olhei para Alexander como se ele fosse um estranho. Mas era isso que mais doía — ele não era. Eu o conhecia. Cada toque, cada silêncio, cada sombra no olhar dele… Eu sabia quem ele era. E mesmo assim, não fazia ideia. —Você é pai do Dylan. Minha voz saiu mais fraca do que eu gostaria, mas firme o suficiente para encher o estúdio de gelo. Ele não respondeu de imediato. Ficou parado na porta, como se uma simples palavra pudesse derrubar o pouco que ainda se mantinha de pé entre nós. —Sim — ele disse, finalmente. Só isso. Sim. Como se isso não quebrasse todas as minhas certezas de uma só vez. Senti o calor fugir do meu corpo. O sangue correu frio, e por um instante, pensei que fosse desmaiar. Mas não podia. Eu precisava encará-lo. Precisava ouvir da boca dele tudo o que tinha me sido negado. —Você mentiu pra mim esse tempo to
AlexanderEla se foi. Não de verdade, não com malas e porta batida. Mas se fechou para mim. E isso, no fim das contas, é muito pior.Emily caminhou até o quarto como quem foge de um incêndio e, ainda assim, se recusa a gritar por socorro. E eu fiquei ali, no estúdio, rodeado pelas cinzas da minha própria maldição.Ficar calado sempre foi a minha forma de autopreservação. Mas com ela… o silêncio virou uma arma. Uma lâmina afiada que cortei entre nós. E agora sangramos, um pelo outro.Encostei na parede, sentindo o peso do mundo cair sobre os meus ombros. Olhei para o cofre ainda aberto. As páginas expostas, minha história jogada ao chão como se fosse lixo. E talvez fosse. Uma história de erros, mentiras e abandono.Eu deveria tê-la impedido. Deveria ter trancado aquele estúdio. Mas parte de mim quis que ela soubesse. Porque eu já não aguentava mais carregar isso sozinho.Dylan é meu filho.Minha maldição.A prova viva de um amor proibido, de uma mulher que nunca me pertenceu. A mãe del
EmilyO silêncio dele continuava grudado na minha pele.Mesmo depois que fechei a porta e deixei Alexander do lado de fora, as palavras dele vibravam dentro de mim, latejando como um corte recém-aberto. Eu andava pelo quarto de um lado para o outro, tentando respirar, tentando entender como tudo que parecia tão certo… agora parecia tão condenado.Ele é pai do Dylan.Não importa quantas vezes eu repita isso na minha cabeça, ainda soa como uma mentira. Como uma dessas histórias absurdas que a vida inventa só pra ver até onde conseguimos suportar.E o pior de tudo? Eu queria odiá-lo. Queria gritar, quebrar coisas, fazer com que ele sentisse metade do que estou sentindo agora. Mas quando olhei nos olhos dele… tudo o que consegui ver foi dor. Uma dor antiga. Uma culpa enraizada. E algo em mim que eu não queria admitir: compaixão.Me joguei na cama, sentindo o colchão afundar como se ele também estivesse cansado de tudo. Meus dedos tremiam. Não sabia se era raiva, decepção ou a ausência abs