A chuva retornou naquela tarde, grossa e pesada como se o céu carregasse a mesma tensão que pairava dentro da casa. Emily passava os dedos distraidamente pelas lombadas dos livros em uma estante da sala de leitura. Desde que Alexander saíra sem dizer para onde ia, a casa parecia ainda mais silenciosa, sufocante. Havia nela uma energia contida, como se cada parede guardasse palavras que ninguém ousava dizer.
Ela já estava há dois dias ali, e por mais que a casa fosse grande, havia limites muito claros. O sótão trancado, os corredores do segundo andar que pareciam ecoar passos mesmo quando não havia ninguém, e — o mais tentador de todos — o escritório de Alexander. Ele havia sido claro: "nunca tente descobrir o que faço quando estou trancado lá." Era justamente por isso que a curiosidade queimava mais forte. Emily aproximou-se da porta escura do fim do corredor. Era de madeira maciça, com detalhes talhados à mão. Ela já havia passado por ali algumas vezes, mas nunca tivera coragem de se aproximar tanto. Agora, porém, algo parecia chamá-la. O silêncio por trás da porta era estranho… intenso demais. Encostou o ouvido. Nada. Nem passos, nem vozes, nem o som de papéis. Nada além do próprio coração acelerado. Ela estendeu a mão e girou a maçaneta. Trancada. Claro. Mas quando estava prestes a recuar, notou algo — um som muito leve. Um ruído agudo, como metal raspando em pedra. Seu corpo inteiro se arrepiou. Deu dois passos para trás, respirando fundo. Estava prestes a se virar quando ouviu outra coisa: um estalo no chão de madeira atrás dela. Emily se virou rapidamente, mas o corredor estava vazio. Só que não era. Ela sentia. O ar mudara. Algo a observava, mesmo que invisível. Um medo primitivo a fez correr de volta para o quarto e fechar a porta com força. Respirou fundo. Tentou rir de si mesma, mas o riso morreu em sua garganta. Porque lá, sobre sua cama, havia um bilhete. Um bilhete que não estava ali antes. "Curiosidade tem um preço, Emily. E nem sempre é o que você está disposta a pagar." Não havia assinatura, mas ela sabia quem o escrevera. Alexander. Mais do que medo, ela sentiu um frio estranho no estômago. Como ele sabia? Como conseguira entrar sem que ela percebesse? E por que parecia que ele não apenas a observava... mas a antecipava? Naquela noite, ela esperou que ele voltasse. Sentou-se diante da lareira, o bilhete em mãos, ensaiando mentalmente o que diria. Mas Alexander não apareceu. E isso foi pior do que qualquer confronto. Emily dormiu pouco. Quando acordou, ele ainda não havia retornado. A casa estava exatamente como antes — vazia, quieta, cheia demais de significados ocultos. Ao ir até a cozinha, encontrou um envelope sobre a mesa. Dentro dele, um mapa da propriedade... e uma nova mensagem, escrita à mão: "Já que vai explorar, comece pelo lugar certo. Mas esteja avisada: há partes de mim que até eu evito." Ela passou os dedos pelo papel, sentindo o calor da adrenalina começar a crescer. Alexander não era apenas um homem marcado por dor. Ele era um labirinto vivo. E agora, Emily estava decidida a atravessá-lo. Mesmo que, para isso, tivesse que se perder completamente.O céu estava coberto por nuvens pesadas quando Emily atravessou os limites da casa e entrou no bosque. O mapa deixado por Alexander estava dobrado no bolso da jaqueta, com uma marca em vermelho no canto inferior. Um círculo irregular no meio da vegetação, sem nenhuma indicação do que deveria encontrar lá. Os galhos estalavam sob seus pés. O ar estava úmido, carregado de cheiros antigos — terra molhada, folhas apodrecendo, e algo mais... metálico, quase como ferrugem. A floresta parecia respirar em silêncio, viva de um jeito desconfortável. Cada passo mais fundo era também um passo mais longe da lógica. Ela seguiu pelo caminho indicado, ultrapassando arbustos densos até que, enfim, encontrou o que buscava: uma estrutura de pedra, quase totalmente coberta por musgo. À primeira vista, parecia uma ruína, uma simples parede caída. Mas ao se aproximar, percebeu que era uma porta. De ferro. Pesada. Enferrujada. Emily engoliu em seco. Não havia tranca visível. Apenas um puxador com marcas
O caminho de volta pela floresta parecia mais escuro do que quando havia chegado, apesar de o céu ainda manter o mesmo tom cinzento. Emily caminhava ao lado de Alexander em silêncio, as palavras presas em sua garganta, como se tivessem medo de tocar o que acabaram de ver. Ela ainda sentia o toque da mão dele em seu rosto, mas mais do que isso, sentia o que aquilo significava: uma confissão muda. Ele podia fingir controle, podia se esconder atrás da frieza, mas havia algo nele que vacilava perto dela. E isso era mais perigoso do que qualquer segredo. Quando chegaram à varanda da casa, Alexander parou e virou-se para ela. —Você devia fazer as malas e ir embora. Emily ergueu o queixo, a raiva contida explodindo em sua voz. —Por quê? Porque eu descobri o que você não queria que eu visse? Porque agora sei que você é mais quebrado do que tenta parecer? Ele a olhou fundo nos olhos, e pela primeira vez, Emily viu algo como medo neles. —Porque se você ficar, não haverá volta. Não vou ser
A casa parecia diferente naquela manhã. Emily acordou com a sensação de que algo nela havia mudado — algo interno, invisível aos olhos, mas impossível de ignorar. O gosto do beijo ainda pairava em seus lábios, misturado à memória das palavras que trocara com Alexander na noite anterior. Era como se uma linha tivesse sido atravessada… uma que não podia ser desfeita. Ela desceu as escadas com o coração acelerado, sem saber o que esperar. Mas Alexander não estava em lugar algum. A casa parecia vazia. Silenciosa. Só o relógio marcando o tempo, impiedoso, como sempre. Na cozinha, encontrou um bilhete em cima da mesa: “No estúdio. Se quiser saber a verdade, venha.” Não havia assinatura, mas era claro quem havia escrito. Emily seguiu o caminho indicado. Nunca estivera no estúdio, e o cômodo era isolado dos demais, com uma porta pesada e uma fechadura antiga. Quando entrou, encontrou um espaço amplo, com as paredes cobertas por quadros, telas inacabadas e cavaletes. Alexander estava sen
No dia seguinte, a casa estava ainda mais silenciosa do que de costume. Emily acordou sozinha — novamente. O quarto estava frio, e a ausência de Alexander era como um vazio físico. Ela sabia que ele se afastava sempre que se sentia exposto. Era o instinto de alguém que passou a vida se escondendo. Mas ela não recuaria. Vestiu-se rapidamente e desceu até a biblioteca. Algo a inquietava desde a noite anterior. A conversa. As cicatrizes. O beijo. E algo mais… algo que ela viu de relance no estúdio, mas não teve tempo de explorar: um cofre embutido atrás de uma das estantes, parcialmente encoberto por uma pintura inacabada. Seguindo o impulso, voltou ao estúdio. O lugar estava vazio, como esperava. A tela em branco continuava no centro da sala, mas agora havia pinceladas agressivas em vermelho e cinza sobre ela. Como se Alexander tivesse passado a noite tentando expulsar demônios à força de tinta e raiva. Ela foi até a estante ao fundo e afastou a pintura. O cofre estava ali. Antigo,
POV: Emily Eu nunca soube como o chão podia sumir sob os pés até aquele momento. Sentada diante do cofre aberto, com papéis ainda espalhados ao meu redor, olhei para Alexander como se ele fosse um estranho. Mas era isso que mais doía — ele não era. Eu o conhecia. Cada toque, cada silêncio, cada sombra no olhar dele… Eu sabia quem ele era. E mesmo assim, não fazia ideia. —Você é pai do Dylan. Minha voz saiu mais fraca do que eu gostaria, mas firme o suficiente para encher o estúdio de gelo. Ele não respondeu de imediato. Ficou parado na porta, como se uma simples palavra pudesse derrubar o pouco que ainda se mantinha de pé entre nós. —Sim — ele disse, finalmente. Só isso. Sim. Como se isso não quebrasse todas as minhas certezas de uma só vez. Senti o calor fugir do meu corpo. O sangue correu frio, e por um instante, pensei que fosse desmaiar. Mas não podia. Eu precisava encará-lo. Precisava ouvir da boca dele tudo o que tinha me sido negado. —Você mentiu pra mim esse tempo to
AlexanderEla se foi. Não de verdade, não com malas e porta batida. Mas se fechou para mim. E isso, no fim das contas, é muito pior.Emily caminhou até o quarto como quem foge de um incêndio e, ainda assim, se recusa a gritar por socorro. E eu fiquei ali, no estúdio, rodeado pelas cinzas da minha própria maldição.Ficar calado sempre foi a minha forma de autopreservação. Mas com ela… o silêncio virou uma arma. Uma lâmina afiada que cortei entre nós. E agora sangramos, um pelo outro.Encostei na parede, sentindo o peso do mundo cair sobre os meus ombros. Olhei para o cofre ainda aberto. As páginas expostas, minha história jogada ao chão como se fosse lixo. E talvez fosse. Uma história de erros, mentiras e abandono.Eu deveria tê-la impedido. Deveria ter trancado aquele estúdio. Mas parte de mim quis que ela soubesse. Porque eu já não aguentava mais carregar isso sozinho.Dylan é meu filho.Minha maldição.A prova viva de um amor proibido, de uma mulher que nunca me pertenceu. A mãe del
EmilyO silêncio dele continuava grudado na minha pele.Mesmo depois que fechei a porta e deixei Alexander do lado de fora, as palavras dele vibravam dentro de mim, latejando como um corte recém-aberto. Eu andava pelo quarto de um lado para o outro, tentando respirar, tentando entender como tudo que parecia tão certo… agora parecia tão condenado.Ele é pai do Dylan.Não importa quantas vezes eu repita isso na minha cabeça, ainda soa como uma mentira. Como uma dessas histórias absurdas que a vida inventa só pra ver até onde conseguimos suportar.E o pior de tudo? Eu queria odiá-lo. Queria gritar, quebrar coisas, fazer com que ele sentisse metade do que estou sentindo agora. Mas quando olhei nos olhos dele… tudo o que consegui ver foi dor. Uma dor antiga. Uma culpa enraizada. E algo em mim que eu não queria admitir: compaixão.Me joguei na cama, sentindo o colchão afundar como se ele também estivesse cansado de tudo. Meus dedos tremiam. Não sabia se era raiva, decepção ou a ausência abs
AlexanderA pior parte de ter cometido erros é quando eles começam a atingir as pessoas que você mais quer proteger.Emily estava ali, na casa onde cresci, no centro da minha vergonha, da minha história, das minhas cicatrizes. E, ainda assim, ela escolheu ficar. Não me perdoou — eu não esperava isso — mas também não virou as costas. E isso me dava uma esperança perigosa. Esperança é uma faca de dois gumes: quando você já sangrou demais, ela pode ser a lâmina final.Fiquei observando-a pela janela da biblioteca. Ela caminhava pelo jardim, com os braços cruzados, o rosto virado para o céu nublado. Emily parecia sempre carregar mais do que devia para alguém tão jovem. E agora, por minha culpa, ela tinha um fardo que não merecia.Lá fora, as primeiras gotas de chuva começaram a cair.Lá dentro, o inferno crescia.O telefone da biblioteca vibrou. Peguei o celular do aparador de livros e atendi, sem verificar o número.—Alexander?A voz do outro lado era a última que eu queria ouvir.—Thoma