Defne começou a evitar os espelhos.
A cada manhĂŁ, olhava rĂĄpido para si mesma â como se o reflexo pudesse acusĂĄ-la de traição. Nada nela parecia seguro. Nem a expressĂŁo, nem o coração.
Na empresa, Ămer observava em silĂȘncio. Ele tinha aquele jeito: quieto demais quando pensava, intenso demais quando sentia.
â VocĂȘ se lembra da nossa primeira reuniĂŁo? â perguntou, sem tirar os olhos dela.
â Claro. VocĂȘ me perguntou por que estava ali.
â E vocĂȘ mentiu.
Defne travou. Ele sabia?
â Eu pensei que aquilo era sĂł provocação...
â Eu provoco o que quero entender. E agora... quero entender vocĂȘ.
Ela sorriu, mas por dentro o pùnico se instalava. Cada minuto que passava, o risco aumentava. Pamir havia deixado um envelope em sua bolsa. Sem nome. Sem assinatura. Apenas fotos. Fotos de reuniÔes. De contratos. De Neriman. E dela.
Mais tarde, quando todos saĂram, ela ficou na sala de criação. Acendeu uma luminĂĄria discreta e começou a rabiscar um novo desenho â um vestido com costura dupla e bolsos ocultos. Um vestido que escondia e revelava ao mesmo tempo.
Ămer apareceu. Silencioso. Como sempre.
â VocĂȘ desenha quando quer fugir?
â Ou quando quero encontrar algo.
â E estĂĄ encontrando?
â Talvez esteja sĂł me perdendo com estilo.
Ele se aproximou.
â Eu nĂŁo sei quem vocĂȘ Ă© de verdade. Mas quando vocĂȘ estĂĄ perto, o mundo parece suportĂĄvel.
Ela sentiu a garganta fechar. Quis gritar a verdade. Quis que ele soubesse de tudo. Mas o silĂȘncio era mais seguro.
Pamir a esperava no estacionamento.
â EstĂĄ indo longe demais.
â VocĂȘ nĂŁo entende.
â Eu entendo o que me convĂ©m. E o que me convĂ©m⊠é que Ămer nunca saiba que vocĂȘ foi enviada para quebrĂĄ-lo.
Ela o enfrentou com o olhar.
â E vocĂȘ foi enviado pra quĂȘ?
â Eu sou o plano B. O que entra quando o plano A falha.
Naquela noite, Defne nĂŁo dormiu.
Ela olhou as fotos novamente. Pegou uma tesoura e cortou cada uma. Rasgou o contrato antigo. E escreveu uma carta. TrĂȘs linhas.
"Eu preciso que vocĂȘ me perdoe. Antes mesmo de saber o que eu fiz."
Mas nĂŁo enviou. Ainda nĂŁo era a hora.
Porque quando o silĂȘncio guarda segredos⊠a verdade precisa esperar seu prĂłprio capĂtulo.
O dia começou como qualquer outro, mas algo estava diferente. O mundo parecia ruir em cùmera lenta.
Defne chegou Ă empresa com a alma em suspense. Tinha dormido mal, com o coração pulsando em descompasso. Sonhara com Ămer. Com palavras que ela nĂŁo disse. Com verdades que ele ouviu sem que ela falasse.
E ao atravessar o corredor de mĂĄrmore, sentiu que ele jĂĄ nĂŁo era o mesmo. Ămer İplikçi estava mais reservado, mais afiado nos silĂȘncios.
Durante a reunião de feedback da campanha, ele fez questão de revisar tudo pessoalmente. Anotou mudanças com calma. Olhou todos nos olhos. Menos ela.
Quando Defne entregou seu relatĂłrio, ele o pegou com precisĂŁo cirĂșrgica. Leu cada linha. E entĂŁo fez a pergunta:
â VocĂȘ tem certeza que quer continuar aqui?
Ela gelou.
â Por quĂȘ?
â Porque a forma como vocĂȘ olha⊠jĂĄ nĂŁo Ă© a mesma. E quando a presença muda, Ă© porque a intenção tambĂ©m mudou.
ApĂłs a reuniĂŁo, Pamir apareceu ao lado de Defne no corredor. Como uma sombra com perfume elegante.
â Ele jĂĄ sabe.
â disse, sem disfarçar.
â Ele estĂĄ ligando as pontas. E quando descobrir quem fez o nĂłâŠ
Ela nĂŁo respondeu.
â Eu posso te tirar daqui.
â Pamir continuou.
â Antes que o castelo caia.
â Eu nĂŁo quero fugir.
â EntĂŁo prepare-se para ser esmagada com ele.
Horas depois, Neriman apareceu pessoalmente na empresa. Coisa que raramente fazia.
â VocĂȘ estĂĄ fracassando, Defne. E se nĂŁo agir logo, Ămer serĂĄ tomado por dĂșvidas que nĂŁo ajudam ninguĂ©m.
â Ele merece saber a verdade.
â Verdades nĂŁo mudam contratos. Elas apenas explodem histĂłrias mal construĂdas.
Defne estava prestes a responder, mas Sinan surgiu, olhando para ela com estranheza.
â EstĂĄ tudo bem?
NinguĂ©m respondeu. A tensĂŁo era um muro entre os trĂȘs.
No fim do dia, Ămer a chamou atĂ© o terraço. Istambul respirava ao fundo â cheia de luzes, sons, vida.
â HĂĄ algo que vocĂȘ precisa me contar?
Ela hesitou.
â Se eu contar, talvez vocĂȘ me odeie.
â Se vocĂȘ nĂŁo contar⊠jĂĄ nĂŁo sei se existe alguma versĂŁo sua que eu possa continuar admirando.
Ela sentiu os olhos se encherem. O coração se encolher.
â Eu fui contratada por alguĂ©m. Para te fazer se apaixonar.
â Quem?
â Neriman.
Ele fechou os olhos. Inspirou fundo. E demorou para responder.
â Isso⊠é real?
â Era. Mas deixou de ser. Quando eu te conheci de verdade, o plano deixou de existir. SĂł sobraram sentimentos.
Ămer a encarou com uma dor que doĂa atĂ© no ar.
â Tudo foi uma mentira?
â O começo foi. Mas o meio e o fim⊠sĂŁo tudo o que eu nunca soube que podia sentir.
Ele nĂŁo respondeu. Virou-se. E desceu do terraço. Deixando para trĂĄs a mulher que o ensinou a sentir â e tambĂ©m a duvidar.