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A sombra de ninguém

Cristal entrou pela porta lateral, fechando-a devagar para não fazer barulho. Tirou os sapatos na entrada e começou a subir as escadas de mansinho, o coração batendo forte. Mas antes que pudesse alcançar o topo, a voz dele ecoou da sala de estar:

— Chegando agora?

Ela parou, os dedos ainda no corrimão. Engoliu em seco antes de descer os degraus novamente. Raphael estava ali, sentado no sofá com uma taça de uísque na mão, vestindo apenas uma calça de moletom e a expressão fria que ela já conhecia bem demais.

— O que você tá fazendo acordado a essa hora? — ela perguntou, tentando manter a voz firme.

— A pergunta é: onde você estava?

Cristal cruzou os braços, mantendo o tom calmo.

— Precisava respirar. Andar. Ficar longe um pouco. E como você estava ocupado com sua “melhor amiga”, achei que não faria falta.

Ele bufou, levando a taça aos lábios antes de encará-la com os olhos estreitados.

— Isso é sobre a Emilly? De novo?

— De novo? — ela deu uma risada amarga. — Você tá me ouvindo? Eu sou sua esposa, Raphael. E você me deixou sozinha no nosso jantar enquanto brindava com a mulher que vive colada em você.

— Você foi grosseira. A forma como falou com ela… você perdeu a compostura. — Ele se levantou, agora com o olhar acusador. — Fez uma cena desnecessária. Aquilo foi vergonhoso.

Cristal arregalou os olhos.

— Vergonhoso? O que foi vergonhoso foi ela praticamente me ignorar na sua frente e você permitir! Você não fez nada, Raphael. Como sempre.

— Emilly é minha amiga de infância, você sabe disso. Não tem por que esse ciúme todo.

— Não é ciúme — ela disparou, o tom finalmente rompendo o controle. — É sobre respeito. Você não me vê, não me ouve, não me toca de verdade há meses. Eu sou só um troféu bonito pra você, né? Desde que eu esteja ao seu lado nas fotos, sorrindo e vestindo o que você quer, tá tudo certo.

— Isso não é verdade. Eu te dou tudo! Casa, conforto, segurança. Que mais você quer?

— Presença, Raphael! — gritou ela. — Eu quero alguém que me olhe como se eu importasse. Alguém que me escute sem esperar que eu engula tudo calada. Você acha que pode comprar meu silêncio com jantares caros?

— Não fala como se você fosse uma mártir. Você sabia com quem estava se casando.

— É, eu sabia. — Ela o olhou com dor e raiva nos olhos. — Só não sabia que seria tão solitário amar alguém que só ama a própria imagem.

Raphael passou a mão pelos cabelos, impaciente.

— Isso tá indo longe demais. Você sumiu a noite inteira. O que eu deveria pensar?

Ela encarou ele por alguns segundos, o coração disparado. Por um segundo, pensou em contar. Provocar. Ferir. Mas respirou fundo e respondeu, firme:

— Você deveria pensar que a sua esposa não quer mais viver como sombra de ninguém. Nem da Emilly. Nem de você.

E então, sem esperar por resposta, Cristal virou-se e subiu as escadas. Passo por passo. Cada degrau uma escolha. E ao alcançar o quarto, soube que algo havia mudado entre eles — e que não haveria mais volta.

---

POV Raphael

Ele permaneceu parado no meio da sala por longos minutos depois que ela subiu. O uísque na mão agora estava esquecido, a bebida morna, sem sentido.

Cristal nunca tinha falado com ele daquele jeito.

O silêncio na casa era quase ensurdecedor, exceto pelo som da geladeira ao fundo e o eco da própria raiva ainda pulsando na mente dele.

“Você não me vê… não me ouve…”

As palavras dela vinham e voltavam, como uma martelada atrás da outra.

Raphael andou até o bar, deixou a taça sobre a bandeja de prata e apoiou as mãos no tampo de mármore. Olhou o próprio reflexo no espelho atrás das garrafas. Estava impecável, como sempre. Postura reta, expressão firme. O homem bem-sucedido que todos admiravam.

Mas havia uma falha ali agora. Uma rachadura que se abria em silêncio.

Talvez, por um segundo, ele tenha se perguntado: Será que ela estava certa?

Será que ele realmente achava que bens e estabilidade bastavam? Será que havia se acomodado tanto na ideia de um casamento “correto” que esqueceu de vivê-lo?

Mas a sombra de Cristal com aquela expressão fria e decidida o perturbava mais que tudo.

Onde ela esteve a noite inteira?

A pergunta queimava na mente dele como uma fagulha prestes a virar incêndio.

---

No quarto, minutos depois

O relógio marcava 06h48 quando Raphael empurrou a porta do quarto com cuidado.

A luz suave da manhã atravessava a cortina cinza, preenchendo o espaço com uma claridade serena. Cristal estava deitada do lado dela da cama, os cabelos espalhados sobre o travesseiro, o rosto tranquilo — ou exausto.

Ela ainda usava o vestido da noite anterior, agora amarrotado. Nenhum cobertor sobre o corpo. Apenas o silêncio.

Ele a observou por um instante, o maxilar cerrado.

Ela estava linda. Sempre esteve.

E ainda assim… havia algo nela que agora parecia distante. Como se nem mesmo dormindo ela estivesse ali de verdade.

Raphael desviou o olhar, caminhando até o closet. Vestiu-se com a habitual elegância: camisa branca passada, relógio caro, perfume amadeirado. Tudo milimetricamente em ordem.

Mas a desordem estava dentro dele.

Enquanto ajustava os botões dos punhos, seus olhos voltaram para ela, deitada, alheia à presença dele.

Por um instante, desejou tocá-la. Dizer algo. Mas não soube como.

Em vez disso, pegou o paletó, saiu do quarto sem fazer barulho e desceu as escadas rumo ao dia — o mundo onde ele sabia como controlar tudo.

Menos ela.

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