Capítulo 3

A Rota de Fuga

Acordei com a luz da manhã invadindo o quarto pelas frestas da cortina. Os olhos ardiam, a cabeça latejava, como se eu tivesse passado a noite inteira chorando – e, bem, talvez tivesse mesmo. O corpo parecia mais leve que ontem, mas ainda carregava o cansaço da alma. Aquele cansaço que não tem a ver com sono, mas com a perda súbita de tudo. Levantei devagar, sentindo os músculos reclamarem a cada passo até o banheiro, um lembrete do que eu queria deixar para trás.

Tomei um banho rápido. A água morna não apagou a dor, mas ajudou a organizar meus pensamentos. Vesti uma calça jeans confortável, meu moletom cinza de sempre e, por fim, encarei o celular desligado sobre a cômoda. O mesmo aparelho que ontem eu tinha ignorado por completo, agora era uma ponte. Uma única voz no mundo ainda me trazia a sensação de segurança.

Liguei. Tia Benedita atendeu no primeiro toque.

— Alô? — a voz suave preencheu o silêncio do quarto como um abraço.

— Tia… — respirei fundo. — O casamento foi cancelado.

Uma pausa curta, silenciosa. Mas não houve susto, nem choque. Apenas compreensão.

— Mas… não quero falar disso agora — continuei, a voz baixa, embargada. — Só queria saber se tem um quarto sobrando aí para mim.

Ela não perguntou nada, não pressionou. Nunca precisou de palavras para entender o que eu sentia.

— Claro que tem. E sempre vai ter, minha filha — respondeu, com aquele jeito doce que sempre me fazia querer chorar. — Não vou te apertar para falar nada, mas… já imagino o que aconteceu.

Fechei os olhos. Uma lágrima solitária escorreu antes que eu pudesse impedir.

— Vou pedir demissão hoje — sussurrei. — Não quero mais ficar aqui. Preciso de paz, tia. Preciso respirar de novo.

— Então vem — disse ela, firme, como se me puxasse para perto com a força da voz. — Se ele te machucou, não merecia você. Aqui é calmo, simples, mas cheio de amor. A pousada vai amar te ter por perto. E eu mais ainda.

Ela sempre soube o que dizer. Sempre.

— Obrigada — falei, com a voz falhando. — Vou resolver tudo aqui e pego um ônibus no fim da noite.

— Estou te esperando com comida quente e um abraço apertado. E não se preocupa com nada, viu? Se precisar, a gente começa do zero. Juntas.

Desliguei com o coração latejando. Ainda doía. Ainda parecia que algo dentro de mim tinha sido arrancado à força. Mas agora… havia um destino. Um rumo.

Corri pelo apartamento como quem precisa fugir das próprias memórias. Abri gavetas, puxei malas do fundo do armário, joguei roupas sem pensar, como se cada peça que eu colocava ali fosse parte da dor que eu precisava deixar para trás. Sapatos, documentos, uma foto dos meus pais… algumas lembranças ainda faziam sentido levar. Outras, olhei por alguns segundos e larguei de lado. Não dava mais.

Duas malas e uma mochila depois, parei no meio da sala. O silêncio me engoliu. Fechei os olhos. Respirei fundo. E saí.

No caminho até o hotel onde trabalhava, cada rua, cada prédio, parecia se despedir de mim em silêncio. Era como se a cidade soubesse que eu estava indo embora. E, no fundo, eu sabia que era um adeus definitivo.

Na sala do RH, fui recebida com olhos preocupados.

— Tem certeza disso, Isa? — perguntou a gerente, franzindo a testa. — Você sempre foi dedicada. Está tudo bem?

— Aconteceu algo sim. Mas… não quero falar sobre agora. Só preciso desse tempo para mim.

Ela respeitou. Ainda insistiu um pouco, disse que era uma pena. Que eu estava em um ótimo momento. Mas no fim, aceitou minha decisão com um aperto de mão e um olhar gentil.

— Se mudar de ideia, seu cargo está te esperando.

Assinei os papéis com uma mistura de dor e alívio. Era um laço cortado. Mais um. Mas necessário.

Voltei para casa no fim da tarde. O céu já começava a escurecer, tingindo a cidade com tons de azul profundo. Sentei no sofá pela última vez. O cheiro do apartamento, o silêncio das paredes, a bagunça das caixas que deixei para trás. Tudo parecia se despedir comigo.

Liguei para a imobiliária ainda cedo. Disse que não renovaria o contrato. Ia entregar o apartamento antes do prazo. Eles entenderam. O contrato já estava no fim mesmo.

— Ironicamente, eu ia me mudar para o apartamento do Carlos depois do casamento —pensei , num tom quase sarcástico.

Ironia. A vida adorava brincar comigo.

Quando olhei para o relógio, a hora tinha chegado.

Fechei a porta do apartamento. Tranquei com cuidado. Por um segundo, fiquei parada ali. Só ouvindo o barulho do meu próprio coração. Depois desci com as malas. Cada degrau parecia mais firme, como se cada passo me levasse para longe da dor.

Na rodoviária, sentei no banco de espera com o bilhete nas mãos. Era uma passagem simples. Nada de luxo. Mas para mim… era tudo.

Era a chance de recomeçar.

Tia Benedita. A pousada. O interior.

Era hora de ir embora.

E, quem sabe, me encontrar no caminho.

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