Capítulo 4

O Refúgio na Doce Lembrança

Umas seis horas depois, o ônibus finalmente parou em frente à Pousada Doce Lembrança da minha tia Benedita. O céu ainda era um manto azul profundo, salpicado de estrelas brilhantes como se alguém tivesse derramado purpurina no universo. A fachada da pousada, com suas luzes amarelas suaves, iluminava timidamente o chão de pedras irregulares, revelando a beleza discreta de um lugar que parecia congelado no tempo.

A construção era simples, de dois andares, com janelas de madeira pintadas de branco e vasos de flores pendurados nas varandas. Uma pequena placa de ferro pendia sobre a porta principal: “Pousada Doce Lembrança”. E era exatamente isso que aquele lugar me trazia — lembranças doces, guardadas com carinho num canto esquecido da alma.

Desci do ônibus ainda sentindo o corpo pesado da viagem, mas o ar fresco do interior me envolveu como um cobertor morno em manhãs frias. Tinha cheiro de terra úmida, de café recém-passado, de calma. Respirei fundo e senti meus ombros começarem a relaxar, como se só o fato de estar ali já fosse um primeiro passo para me curar.

Um casal simpático, que tinha se sentado duas fileiras atrás de mim, me ajudou a pegar minhas malas do bagageiro. A mulher tinha cabelos grisalhos presos num coque e o homem usava um chapéu de palha com uma faixa azul desbotada.

— Muito obrigada, viu? — agradeci com um sorriso sincero, ajeitando a alça da mochila no ombro.

E então eu a vi.

Vinha caminhando em minha direção com passos firmes, mas serenos, como quem sabe exatamente para onde está indo. Titia Benedita, com seu cabelo pintado de loiro escuro — agora revelando raízes brancas que ela já não fazia questão de esconder —, usava óculos grandes de armação marrom e roupas largas de algodão, como sempre preferiu. E vinha com os braços abertos, o olhar brilhando de emoção.

— Minha menina! — a voz dela saiu embargada, carregada de saudade. — Olha só como você está grande... e linda!

Ela me envolveu num abraço apertado, daqueles que não pedem licença e invadem a alma. E eu me deixei ficar ali, presa no calor familiar que só ela sabia dar. Um abrigo em forma de gente.

— Vem, entra, filha. Está friozinho aqui fora. — disse ela, pegando uma das malas antes que eu pudesse protestar.

Entramos na pousada, e logo fui envolvida por um cheiro que era puro aconchego: madeira antiga, chá de ervas e um leve aroma de lavanda, vindo de algum potinho de cerâmica no canto da sala. O piso rangia sob nossos passos, e as paredes eram cobertas por quadros antigos com fotos de família, paisagens do campo e recortes de jornal em molduras gastas.

A sala era pequena, mas cheia de detalhes acolhedores — almofadas floridas, mantas de crochê sobre o sofá, cortinas rendadas que dançavam levemente com o vento. Sentei no sofá de tecido estampado, afundando entre as almofadas enquanto observava a mesa de centro, onde uma travessa de pipoca já me esperava. Sorri. Era típico da minha tia. Para ela, receber alguém era um evento. E carinho, ela demonstrava com comida.

— Senta aí, filha. Vou te fazer um chá. — disse ela, indo direto para a cozinha com aquele jeitinho de quem cuida sem perguntar.

Enquanto ela sumia pelos fundos, deixei o olhar passear pelo ambiente. Lembrei dos verões passados ali, das férias com cheiro de bolo de milho e tardes vendo novela ao lado dela, da pipoca estalando na panela cheia de óleo. Lembranças que me esquentavam por dentro e empurravam um pouco mais a dor para longe.

Minutos depois, ela voltou com uma bandeja simples nas mãos. Duas xícaras de chá fumegante, um pratinho com biscoitos amanteigados em formato de coração e um guardanapo de tecido bordado.

— Aqui está, minha filha. Do jeitinho que você gosta. — disse, colocando tudo na mesinha.

— Tia... você ainda lembra disso? — perguntei, surpresa, pegando um biscoito. Bastou a primeira mordida para o gosto da infância invadir minha boca.

— Claro que lembro. Você sempre roubava esses biscoitos antes do lanche. — ela riu e se sentou na poltrona de frente para mim. — E aí… você veio para ficar?

Assenti com a cabeça, tentando engolir o nó que se formava na garganta.

— Sim, tia. Preciso de paz. De um recomeço. E também... de um emprego.

Ela me olhou com ternura, como se já tivesse adivinhado tudo antes mesmo de eu dizer.

— Isso eu posso te ajudar. Sabe da Leonilda?

— A senhora ainda fala com ela? Aquela sua amiga que fazia bolos coloridos nas festas?

— Essa mesma. Só que agora ela é dona de uma floricultura. Linda, cheia de plantas penduradas por todos os lados... Só que a saúde dela anda meio fraca, sabe? E ela está procurando alguém para ajudar.

— Uma floricultura... — repeti a palavra, sentindo-a florescer na boca como uma semente que acabava de germinar.

— É. E eu pensei em você na hora. Sempre achei que você tinha um jeitinho com as plantas. Lembra como ficava horas mexendo nas flores da sua mãe?

Sorri, meio surpresa comigo mesma. Uma memória veio à tona: eu de joelhos na terra, falando baixinho com as violetas do jardim, convencida de que elas cresciam melhor se fossem tratadas como amigas.

— Pode parecer bobo, tia, mas... quando eu era adolescente, eu sonhava em trabalhar numa floricultura. Achava que flores entendiam a gente melhor do que pessoas.

Ela se emocionou, os olhos marejados de orgulho.

— Isso não é bobo, minha filha. Isso é alma bonita. E o mundo está precisando de mais gente que cuide das coisas com amor.

Ficamos em silêncio por alguns segundos, tomando o chá e ouvindo o som do vento lá fora, que assobiava baixinho entre as frestas das janelas. Pela primeira vez em dias, senti que podia respirar com um pouco mais de leveza.

Ali, naquela pousada, cercada por lembranças e cheiro de ervas, algo em mim começou a florescer. Era pequeno, delicado… mas era real.

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