Umas seis horas depois, o ônibus finalmente parou na frente da pousada da titia Benedita. O céu ainda tava escuro, um azulzão profundo cheio de estrelas, mas as luzes da fachada antiga da pousada iluminavam de leve o chão de pedras. A construção era simples, charmosa e carregada de lembranças boas. As ruas da cidade tinham aquele toque rústico e nostálgico, sabe? O chão de pedrinhas encaixadas parecia contar histórias só de olhar.
Desci do ônibus meio cansada, mas sentindo o ar fresco do interior me dando um abraço. Um casal simpático, que tinha sentado umas duas fileiras atrás de mim, me ajudou a pegar minhas malas do bagageiro.
"Muito obrigada, viu?" agradeci com um sorriso sincero, ajeitando a alça da mochila no ombro.
Foi aí que eu vi ela. Vindo com passos firmes, uma senhora com o cabelo pintado de loiro escuro que agora eu via que era branco na raiz, usando óculos grandes e roupas largas e confortáveis, vinha na minha direção de braços abertos.
"Minha menina!" ela disse com a voz meio embargada de emoção. "Olha só como você tá grande... e linda!"
O abraço dela foi quentinho e acolhedor, só como ela sabia dar. Eu abracei de volta com força, sentindo meu peito dar uma aliviada.
"Vem, entra, filha. Tá friozinho aqui fora." disse ela, já pegando uma das malas antes que eu pudesse impedir.
Entramos na pousada, e logo senti aquele cheiro de madeira antiga misturado com chá de ervas. A decoração era simples, mas cheia de detalhes que davam um aconchego. Almofadas floridas, quadros antigos, cortinas de renda... tudo era velhinho, sim, mas do tipo bom. Do tipo que te abraça.
"Senta aí, filha. Vou te fazer um chazinho." disse ela, já indo pra cozinha.
Obedeci e me sentei no sofá de tecido florido, afundando um pouco nas almofadas. Meu olhar caiu na mesa de centro, onde tinha uma travessa cheia de pipoca. Sorri sozinha. Aquilo era muito a cara da titia. Sempre que alguém chegava, ela oferecia tudo que tinha: café, bolo, chá, pipoca... E, vendo aquela tigela, lembrei da infância, dos finais de semana que a gente passava aqui, quando ela fazia pipoca cheia de óleo e eu achava aquilo a coisa mais gostosa do mundo.
Era como se o peso do dia anterior começasse a escorrer dos meus ombros. Já tava até me sentindo melhor, só de estar ali.
Ali, naquele pedacinho de mundo que parecia parado no tempo e onde, pela primeira vez em dias, meu coração não doía tanto, a titia Benedita voltou da cozinha com uma bandeja simples nas mãos. Trazia duas xícaras de chá fumegante e um pratinho com biscoitos amanteigados em formato de coração, os meus preferidos desde criança.
"Aqui tá, minha filha. Do jeitinho que você gosta." disse ela, colocando tudo na mesa de centro, do lado da travessa de pipoca.
"Tia, você ainda lembra disso?" sorri surpresa, pegando um biscoito e sentindo o gosto doce e familiar derreter na boca.
Ela se sentou na poltrona de frente pra mim, com a xícara nas mãos e aquele olhar atento e carinhoso.
"E aí… você veio pra ficar?"
Assenti, engolindo o nó na garganta antes de responder.
"Sim, tia. Preciso de paz. De um recomeço. E também... de um emprego."
Ela sorriu com ternura e um certo brilho cúmplice no olhar.
"Isso eu posso te ajudar. Sabe da Leonilda?"
"Acho que lembro um pouco dela... Aquela sua amiga que fazia uns bolos coloridos?"
"Essa mesma. Só que agora ela é dona de uma das floriculturas mais lindas da cidade. Disse que a saúde dela não tá muito boa, precisa descansar... e tá procurando alguém pra dar uma força."
"Uma floricultura?" repeti, como se estivesse saboreando a palavra.
"É. Que tal trabalhar com planta? Pode parecer simples, mas é um lugar bonito, cheio de vida. E você sempre teve jeito com essas coisas."
Fiquei em silêncio por uns segundos, deixando a ideia brotar na minha cabeça. De repente, uma coisa antiga e adormecida se mexeu dentro de mim.
"Pode parecer estranho, tia... mas quando eu era adolescente, eu sonhava em trabalhar numa floricultura. Sempre fui do tipo que conversava com as flores que minha mãe plantava no quintal." ri, encantada com a lembrança.
A titia Benedita sorriu, com os olhos meio marejados de orgulho.
"Não é estranho nada, minha filha. Isso é sensibilidade. E o mundo precisa de mais gente assim."
Enquanto segurava a xícara quente entre as mãos e ouvia o vento lá fora, uma voz dentro de mim dizia que talvez aquele fosse mesmo o lugar onde eu devia estar. Onde tudo podia, enfim, florescer de novo.
Terminei meu chá, sentindo o calor gostoso ainda nas minhas mãos."Quer conhecer seu quarto?" a titia Benedita perguntou com um sorriso carinhoso.Assenti com um sorriso também e deixei a xícara na mesinha. Levantei e fui seguindo ela pela pousada, vendo como tudo parecia tão aconchegante. Subimos uma escadona de madeira, que dava uns rangidinhos a cada passo, e chegamos num segundo andar com um corredor grandão cheio de portas brancas.De repente, me liguei."Minhas malas, tia… acabei deixando lá na sala."Ela deu um tapinha de leve no meu ombro e falou com aquele jeitinho firme e de mãe dela."Não se preocupa com isso, filha. Tenho um rapaz que ajuda com as malas dos hóspedes. Ele já já sobe tudo pra você.""Tia… obrigada por tudo, viu? Por me receber assim. Nem sei como te agradecer.""Você é da família. E família não agradece, retribui com amor." disse ela com um brilho nos olhos antes de abrir uma das portas do corredor.O quarto era um encanto. As paredes num tom de roxo escuro
A noite finalmente chegou.Não saí do meu quarto, só fiquei arrumando minhas coisas nas gavetas de boa, dobrando cada peça como se aquilo pudesse me ajudar a juntar meus próprios pedaços. Depois, deitei na cama macia e fiquei olhando pro teto em silêncio.A batida na porta foi de leve."Filha, a janta tá pronta", avisou minha tia com a voz baixa, com cuidado."Obrigada, tia… mas tô sem fome. Só quero dormir um pouco", respondi, tentando parecer tranquila, mesmo sabendo que minha voz mostrava o quanto eu tava cansada por dentro.Ela ficou quieta por uns segundos."Tá certo, querida. Se precisar de mim, tô aqui."Mesmo preocupada, ela respeitou meu espaço. E eu agradeci por isso na minha cabeça.Naquela noite, dormi melhor do que esperava. Talvez fosse o cheiro do interior, o barulho longe dos grilos ou só a sensação de estar num lugar seguro.Na manhã seguinte, acordei com o toque suave do despertador do celular. Me espreguicei, levantei e escolhi uma calça jeans escura, uma blusa flor
PONTO DE VISTA DE RAFAEL"Pai, acho que não é assim..." A voz doce da minha filha de oito anos me faz parar no meio da trança. Emma se olha no espelho com uma cara meio indecisa, uma mistura de paciência e desespero. Acontece que eu não faço a menor ideia do que tô fazendo. Olha só, eu fui militar. Até uns dois anos atrás, minha vida era códigos, mapas, armas e estratégias. Foram poucas as vezes que fiquei em casa por mais de uma semana. Jeniffer era quem sabia cada detalhe da rotina da nossa filha, quem fazia as tranças, os lanches com bilhetinhos e as vozes engraçadas na hora de dormir.Mas tudo mudou naquela manhã chuvosa. O carro dela, a estrada escorregadia... e o telefone que tocou longe demais pra ser só mais uma ligação normal.Desde então, eu larguei tudo. Farda, rotina, propósito. Pedi baixa do exército, vendi o que precisava e voltei pra minha formação original: contabilidade. Hoje, trabalho em casa, fazendo o possível pra ser pai e mãe ao mesmo tempo."Me perdoa, querida..
Depois que o expediente acabou, guardei minhas coisas e me despedi de Dona Nilda com um sorriso discreto. Ainda bem que ela tinha saído da floricultura e me deixado sozinha quando ele chegou. Saí da floricultura caminhando devagar, sem pressa. Não vi necessidade de pegar um táxi ou incomodar minha tia. Usei o tempo da caminhada para pensar. Ou melhor… para pensar neles. Rafael e Emma. O que havia naquele homem que não saía da minha cabeça? Pelo amor de Deus, eu nem conhecia ele. Só o atendi como qualquer outro cliente. Mas desde que ele saiu com a filha… alguma coisa ficou.Fiquei me perguntando que tipo de mulher eu estava sendo por pensar em um homem casado. Porque… bom, ele tem uma filha. E toda filha tem uma mãe. Além disso, Rafael era bonito demais para estar sozinho.Admito, quando ele entrou na floricultura, eu perdi alguns segundos só olhando para ele.Emma não parecia nada com ele. Nem no jeito e muito menos na aparência.A menina tinha cabelos cacheados e claros, olhos azuis
Depois de conversar com minha tia, subi as escadas para o meu quarto. Eu precisava de um banho urgente. Assim que terminei e sentei na cama para escovar os cabelos, meu celular tocou. Olhei para a tela e vi o nome: Carlos. Aquele traidor. Uma parte de mim gritou para não atender, mas a curiosidade e talvez uma ponta de masoquismo me fizeram deslizar o dedo na tela."Bella?" A voz dele soou cautelosa, arrastada. Era aquele apelido meloso que ele usava quando sabia que tinha feito besteira e queria me amansar."Por que diabos você está me ligando, Carlos?" Minha voz saiu mais áspera do que eu pretendia."Calma, Bella. Eu só... queria saber como você está.""Não te interessa como eu estou."Ele suspirou do outro lado da linha. "Eu sei que fiz uma burrada, Bella. A maior da minha vida. Mas eu queria te contar uma coisa... sabe a promoção no escritório?""Que promoção, Carlos?""A de sócio júnior! Saiu hoje o resultado e... eu consegui!" A voz dele ganhou um entusiasmo repentino, como se e
Depois de usar mais uma vez o carro da minha tia, estacionei em frente à floricultura e entrei. Dona Nilda estava concentrada, arrumando um vaso de flores amarelas vibrantes. "Bom dia, querida!" ela disse, levantando os olhos e me vendo. "Que bom que chegou. Será que você poderia me fazer um favor e levar essa entrega para mim?" Ela apontou para o vaso que estava se ajeitando. "É para a Rua das Acácias, número 125. A cliente pediu para entregar até o meio-dia." "Claro, Dona Nilda, sem problemas nenhum." Concordei na hora. Qualquer coisa para ocupar a mente e sair um pouco da rotina. Peguei o vaso com cuidado, admirando a beleza das flores. "São margaridas?" perguntei, curiosa. "Isso mesmo, minhas preferidas!" ela respondeu com um sorriso. "A cliente de hoje também parece gostar muito. Deixei o endereço anotado aqui." Ela me entregou um pequeno pedaço de papel com as informações. Coloquei o vaso delicadamente no banco de trás do carro da minha tia. "Tudo certo. Já volto." Liguei
"Claro, vamos dar uma olhada então," a corretora falou com um sorriso simpático, me chamando para entrar de novo na casa. Emma continuou ali na varanda, olhando tudo com aqueles olhinhos curiosos dela.Enquanto a gente entrava, a corretora começou a me mostrar cada cantinho da casa. "Aqui é a sala principal, bem espaçosa, como você pode ver. E essa porta grande de vidro dá direto para o jardim." Ela apontou para o quintal, que parecia bem grande e cheio de verde. "Imagine as crianças brincando aqui!"Ela me levou para a cozinha, que era moderna e já tinha todos os armários e eletrodomésticos. "Tudo novinho em folha," ela comentou, abrindo e fechando as portas dos armários para eu ver. Depois, subimos as escadas para o segundo andar. "Aqui ficam as suítes. São duas, todas com banheiro privativo e uma varandinha charmosa."Cada quarto era mais bonito que o outro, com bastante luz natural e espaço de sobra. A vista das varandas era mesmo incrível, dava para ver um pedacinho da cidade e a
PONTO DE VISTA DA ISABELAMais tarde, quando cheguei à pousada, a preocupação começou a apertar meu peito. Como eu ia contar para minha tia sobre a minha decisão de me mudar? Não queria machucá-la, nem parecer mal agradecida por toda a ajuda e carinho que ela me tinha dado desde que cheguei. Parecia que eu não teria muito tempo para planejar essa conversa delicada, já que tinha fechado com a corretora que me mudaria no final de semana. Era tudo muito rápido, mas a oportunidade daquela casa parecia um sinal.Assim que entrei na sala, minha tia veio ao meu encontro com um sorriso acolhedor. "Filha! Que bom que chegou. Vem, a janta está pronta. Sei que você não anda comendo muito bem ultimamente." A preocupação era evidente em sua voz suave."Obrigada, tia," respondi, tentando sorrir, "mas eu queria tomar um banho primeiro. Preciso relaxar um pouco."Subi as escadas devagar, sentindo o cansaço do dia pesar em meus ombros. No quarto, tirei a roupa e entrei no chuveiro. A água quente escor