Dirigi meio no automático, sabe? Só com as mãos firmes no volante e os olhos grudados na estrada. A cidade parecia mais fria, mais cinza, e o caminho até meu apartamento, que ficava longe dali, nunca pareceu tão demorado. Cada quilômetro parecia carregar o peso do que eu tinha acabado de ver, como se eu ainda pudesse ouvir as palavras deles ecoando na minha cabeça. "Foi um momento de fraqueza." "Aconteceu só uma vez." "Eu te amo."
Mentira pura.
O silêncio dentro do carro era quase insuportável, mas ainda era melhor que qualquer som. Melhor que a voz da minha melhor amiga pedindo desculpa. Melhor que a imagem dele... sem camisa, com ela. Meu estômago revirava só de lembrar.
Quando finalmente estacionei na frente do prédio, respirei fundo. Subi as escadas devagar, sentindo o corpo moído, como se tivesse envelhecido uns dez anos numa noite só. Abri a porta do apartamento com a mão tremendo e fechei com força. Ali era minha casa. Meu refúgio. E agora, meu lugar pra desabar.
Joguei a bolsa no chão e me sentei no sofá, ainda tentando entender o que ia ser dali pra frente. Como ia avisar todo mundo do cancelamento do casamento? Como ia arrumar forças pra explicar a vergonha, a humilhação, a dor?
A real é que eu não fazia ideia.
Eu não tinha família por perto. Meus pais tinham morrido faz uns anos. A única pessoa que ainda tinha algum laço comigo era a tia Benedita, uma mulher forte, amorosa e batalhadora que morava numa cidade pequena e distante, onde cuidava da única pousada do lugar. Ela tava tão feliz com o casamento... faziam semanas que não falava de outra coisa. Tinha prometido vir pra São Paulo só pra conhecer o Carlos pessoalmente. Ela ainda nem conhecia ele.
Suspirei, encostando a cabeça no sofá. Uma parte de mim queria mandar uma mensagem, explicar tudo pra ela... mas outra parte só queria sumir. Me desligar de tudo.
Passei a mão no bolso e peguei o celular. Olhei se tava desligado. Tava. E ia continuar assim. Não queria ligação do Carlos, nem mensagem da Gisele, a traíra. Queria silêncio. Queria meu espaço. Queria chorar tudo o que tinha pra chorar, porque amanhã... amanhã ia ser outro dia.
E, quem sabe, talvez fosse a hora de dar um tempo mesmo. De voltar pro interior. Pras raízes que meus pais deixaram pra trás quando vieram tentar a vida em São Paulo. Eu tinha uma vida boa aqui. Um bom emprego, um apartamento aconchegante, uma rotina estável.
Mas, de repente, tudo aquilo parecia tão vazio.
Talvez fosse a hora de recomeçar.
Talvez fosse a hora de voltar pra casa.
Talvez o melhor fosse mesmo meter sair desse lugar.
Recomeçar de verdade, longe de tudo que me fez mal. Longe das lembranças que agora queimavam como feridas abertas, mesmo dentro da minha própria casa. Deixar pra trás São Paulo, o apartamento, o casamento que nunca ia acontecer, os sorrisos que agora pareciam falsos. Tudo.
Enquanto esse pensamento passava pela minha cabeça, olhei pra minha mão. A aliança de noivado ainda tava ali, apertando meu dedo como se tivesse me zuando, tipo: “você acreditou”.
Aquela aliança não fazia mais sentido nenhum. Era um símbolo de algo que nunca existiu de verdade. Com um movimento seco, tirei e joguei em cima da mesinha de centro da sala. O barulho do metal caindo no chão fez um clique no cômodo silencioso, como um ponto final.
E aí, elas vieram.
As lágrimas.
Frias, pesadas, sem parar.
Nem tentei segurar. Não tinha mais por que ser forte. Eu tava sozinha. Machucada. Acabada.
Por um tempão fiquei ali, sentada no sofá, com os ombros tremendo e o rosto escondido nas mãos. Até que, exausta, levantei devagar e fui pro quarto. Cada passo era pesado, como se eu tivesse carregando o peso de todos os sonhos destruídos nas costas.
Entrei no banheiro e olhei no espelho.
A imagem que vi era quase estranha. Meus olhos tavam inchados, vermelhos, e o rímel escorria pelas bochechas, fazendo umas manchas escuras na pele pálida. Meu cabelo tava bagunçado, minha cara era de quem tinha perdido algo muito importante.
Sem pensar duas vezes, tirei a roupa e entrei debaixo do chuveiro.
A água quente caiu em mim como um abraço silencioso. Fiquei ali um tempão, deixando a água levar tudo: a sujeira do dia, os restos do rímel, e a pouca força que ainda me restava. Senti meus joelhos quase bambearem, mas respirei fundo. Agora não.
Depois do banho, vesti meu pijama de algodão, aquele confortável que parecia um carinho no corpo, e me enfiei debaixo das cobertas. O quarto tava frio. O mundo lá fora também. E meu coração… pior ainda.
Ainda bem que o sono veio rápido.
E, por umas horas, eu podia simplesmente esquecer.
Na manhã seguinte, acordei com a cabeça pesada e os olhos meio sensíveis. Parecia que a tristeza da noite anterior tinha deixado marca física mesmo. Tomei um banho rápido, só pra dar um up no astral, e vesti uma calça jeans confortável e um moletom. O celular tava desligado desde ontem, do jeito que eu queria, mas agora eu precisava fazer uma ligação. Uma voz só, que ainda me passava segurança no mundo. Liguei pra minha tia Benedita. Ela atendeu de primeira, com aquela voz suave que sempre soava como casa. "Tudo bem, filha?" perguntou, com um carinho de verdade. Ela sempre me chamava assim, filha, mesmo sendo minha tia. E no fundo, sempre foi mais mãe do que qualquer outra pessoa na minha vida. Respirei fundo antes de responder. "O casamento foi cancelado." minha voz saiu seca, direta. "Mas... não quero falar disso agora, tia. Só preciso saber se tem um quarto sobrando aí pra mim." Teve um silêncio breve do outro lado da linha. Mas não aquele silêncio estranho. Foi um silêncio ac
Umas seis horas depois, o ônibus finalmente parou na frente da pousada da titia Benedita. O céu ainda tava escuro, um azulzão profundo cheio de estrelas, mas as luzes da fachada antiga da pousada iluminavam de leve o chão de pedras. A construção era simples, charmosa e carregada de lembranças boas. As ruas da cidade tinham aquele toque rústico e nostálgico, sabe? O chão de pedrinhas encaixadas parecia contar histórias só de olhar.Desci do ônibus meio cansada, mas sentindo o ar fresco do interior me dando um abraço. Um casal simpático, que tinha sentado umas duas fileiras atrás de mim, me ajudou a pegar minhas malas do bagageiro."Muito obrigada, viu?" agradeci com um sorriso sincero, ajeitando a alça da mochila no ombro.Foi aí que eu vi ela. Vindo com passos firmes, uma senhora com o cabelo pintado de loiro escuro que agora eu via que era branco na raiz, usando óculos grandes e roupas largas e confortáveis, vinha na minha direção de braços abertos."Minha menina!" ela disse com a vo
Terminei meu chá, sentindo o calor gostoso ainda nas minhas mãos."Quer conhecer seu quarto?" a titia Benedita perguntou com um sorriso carinhoso.Assenti com um sorriso também e deixei a xícara na mesinha. Levantei e fui seguindo ela pela pousada, vendo como tudo parecia tão aconchegante. Subimos uma escadona de madeira, que dava uns rangidinhos a cada passo, e chegamos num segundo andar com um corredor grandão cheio de portas brancas.De repente, me liguei."Minhas malas, tia… acabei deixando lá na sala."Ela deu um tapinha de leve no meu ombro e falou com aquele jeitinho firme e de mãe dela."Não se preocupa com isso, filha. Tenho um rapaz que ajuda com as malas dos hóspedes. Ele já já sobe tudo pra você.""Tia… obrigada por tudo, viu? Por me receber assim. Nem sei como te agradecer.""Você é da família. E família não agradece, retribui com amor." disse ela com um brilho nos olhos antes de abrir uma das portas do corredor.O quarto era um encanto. As paredes num tom de roxo escuro
A noite finalmente chegou.Não saí do meu quarto, só fiquei arrumando minhas coisas nas gavetas de boa, dobrando cada peça como se aquilo pudesse me ajudar a juntar meus próprios pedaços. Depois, deitei na cama macia e fiquei olhando pro teto em silêncio.A batida na porta foi de leve."Filha, a janta tá pronta", avisou minha tia com a voz baixa, com cuidado."Obrigada, tia… mas tô sem fome. Só quero dormir um pouco", respondi, tentando parecer tranquila, mesmo sabendo que minha voz mostrava o quanto eu tava cansada por dentro.Ela ficou quieta por uns segundos."Tá certo, querida. Se precisar de mim, tô aqui."Mesmo preocupada, ela respeitou meu espaço. E eu agradeci por isso na minha cabeça.Naquela noite, dormi melhor do que esperava. Talvez fosse o cheiro do interior, o barulho longe dos grilos ou só a sensação de estar num lugar seguro.Na manhã seguinte, acordei com o toque suave do despertador do celular. Me espreguicei, levantei e escolhi uma calça jeans escura, uma blusa flor
PONTO DE VISTA DE RAFAEL"Pai, acho que não é assim..." A voz doce da minha filha de oito anos me faz parar no meio da trança. Emma se olha no espelho com uma cara meio indecisa, uma mistura de paciência e desespero. Acontece que eu não faço a menor ideia do que tô fazendo. Olha só, eu fui militar. Até uns dois anos atrás, minha vida era códigos, mapas, armas e estratégias. Foram poucas as vezes que fiquei em casa por mais de uma semana. Jeniffer era quem sabia cada detalhe da rotina da nossa filha, quem fazia as tranças, os lanches com bilhetinhos e as vozes engraçadas na hora de dormir.Mas tudo mudou naquela manhã chuvosa. O carro dela, a estrada escorregadia... e o telefone que tocou longe demais pra ser só mais uma ligação normal.Desde então, eu larguei tudo. Farda, rotina, propósito. Pedi baixa do exército, vendi o que precisava e voltei pra minha formação original: contabilidade. Hoje, trabalho em casa, fazendo o possível pra ser pai e mãe ao mesmo tempo."Me perdoa, querida..
Depois que o expediente acabou, guardei minhas coisas e me despedi de Dona Nilda com um sorriso discreto. Ainda bem que ela tinha saído da floricultura e me deixado sozinha quando ele chegou. Saí da floricultura caminhando devagar, sem pressa. Não vi necessidade de pegar um táxi ou incomodar minha tia. Usei o tempo da caminhada para pensar. Ou melhor… para pensar neles. Rafael e Emma. O que havia naquele homem que não saía da minha cabeça? Pelo amor de Deus, eu nem conhecia ele. Só o atendi como qualquer outro cliente. Mas desde que ele saiu com a filha… alguma coisa ficou.Fiquei me perguntando que tipo de mulher eu estava sendo por pensar em um homem casado. Porque… bom, ele tem uma filha. E toda filha tem uma mãe. Além disso, Rafael era bonito demais para estar sozinho.Admito, quando ele entrou na floricultura, eu perdi alguns segundos só olhando para ele.Emma não parecia nada com ele. Nem no jeito e muito menos na aparência.A menina tinha cabelos cacheados e claros, olhos azuis
Depois de conversar com minha tia, subi as escadas para o meu quarto. Eu precisava de um banho urgente. Assim que terminei e sentei na cama para escovar os cabelos, meu celular tocou. Olhei para a tela e vi o nome: Carlos. Aquele traidor. Uma parte de mim gritou para não atender, mas a curiosidade e talvez uma ponta de masoquismo me fizeram deslizar o dedo na tela."Bella?" A voz dele soou cautelosa, arrastada. Era aquele apelido meloso que ele usava quando sabia que tinha feito besteira e queria me amansar."Por que diabos você está me ligando, Carlos?" Minha voz saiu mais áspera do que eu pretendia."Calma, Bella. Eu só... queria saber como você está.""Não te interessa como eu estou."Ele suspirou do outro lado da linha. "Eu sei que fiz uma burrada, Bella. A maior da minha vida. Mas eu queria te contar uma coisa... sabe a promoção no escritório?""Que promoção, Carlos?""A de sócio júnior! Saiu hoje o resultado e... eu consegui!" A voz dele ganhou um entusiasmo repentino, como se e
Depois de usar mais uma vez o carro da minha tia, estacionei em frente à floricultura e entrei. Dona Nilda estava concentrada, arrumando um vaso de flores amarelas vibrantes. "Bom dia, querida!" ela disse, levantando os olhos e me vendo. "Que bom que chegou. Será que você poderia me fazer um favor e levar essa entrega para mim?" Ela apontou para o vaso que estava se ajeitando. "É para a Rua das Acácias, número 125. A cliente pediu para entregar até o meio-dia." "Claro, Dona Nilda, sem problemas nenhum." Concordei na hora. Qualquer coisa para ocupar a mente e sair um pouco da rotina. Peguei o vaso com cuidado, admirando a beleza das flores. "São margaridas?" perguntei, curiosa. "Isso mesmo, minhas preferidas!" ela respondeu com um sorriso. "A cliente de hoje também parece gostar muito. Deixei o endereço anotado aqui." Ela me entregou um pequeno pedaço de papel com as informações. Coloquei o vaso delicadamente no banco de trás do carro da minha tia. "Tudo certo. Já volto." Liguei