Jonas respirou fundo, apertando o mapa amassado na mão suada. A escada diante dele parecia mais longa agora, como se os degraus se estendessem além do possível. Cada passo ecoava entre as paredes úmidas e descascadas.Subiu devagar até o próximo andar — o sétimo.Ali, algo imediatamente o incomodou.O cheiro.Era diferente dos andares abaixo — um odor metálico misturado com algo rançoso, adocicado. Como carne deixada ao calor por dias. Jonas cobriu o rosto com a manga da camisa, tentando abafar a ânsia que crescia na garganta.A luz natural que entrava pelas janelas do corredor era ainda mais fraca naquele trecho do prédio. As lâmpadas do teto, apagadas pela falta de energia, pareciam olhos mortos olhando para ele.E então ele percebeu: no chão, espalhados como uma trilha irregular, havia símbolos desenhados com alguma substância escura — talvez sangue seco. Marcas feitas à mão, sem precisão, mas carregadas de intenção. Círculos, setas, palavras que ele não conseguia ler direito.Pert
Jonas se virou ao ouvir o som.Passos.Claramente passos pesados, ecoando pela escada de concreto.Ele congelou, segurando a respiração. O cano de ferro firme em mãos, a lanterna oscilando entre os dedos suados. O som vinha de baixo, subindo lentamente, degrau por degrau.Um rangido seco.Mais um.E então, silêncio.Jonas recuou até a porta do apartamento, o coração martelando no peito. A névoa ainda serpenteava pelo corredor, tornando difícil ver além de alguns metros. A lanterna mal ajudava — a luz cortava a névoa como se ela tivesse peso, revelando apenas vultos turvos.Ele apontou para a escada, prendendo o fôlego.Nada.Deu dois passos cautelosos até o patamar, a sensação incômoda de ser observado arrepiando sua nuca.Olhou para baixo.Olhou para cima.Nenhum movimento.Apenas a mesma névoa densa, os mesmos degraus sujos de marcas escuras, e aquele cheiro adocicado, de coisa estragada.O som... havia sumido.Como se nunca tivesse existido.Jonas sentiu um arrepio correr pela espi
Jonas manteve os olhos fechados por alguns minutos, tentando organizar o caos que havia se instalado na própria mente.A cada respiração, era como se a névoa lá fora ganhasse corpo, como se pressionasse contra as paredes, querendo invadir até os lugares mais escondidos do prédio."Não é só um surto... não é só um acidente.""Isso foi provocado."As peças começavam a se encaixar, ainda que de forma tortuosa.Sua mãe sabia. Dona Tereza sabia. Talvez Camila e Victor soubessem também.Algo aconteceu no passado — algo que eles tentaram esconder ou consertar — e que agora cobrava seu preço. Um ciclo que recomeçava, exatamente como as cartas e bilhetes insinuavam.O altar... o portal... a escolha dos nomes.O nome dele.Jonas sentiu um peso no peito. Desde a infância, sempre teve sonhos estranhos. Sempre sentiu uma ligação incômoda com coisas que não sabia explicar. Era como se algo estivesse adormecido dentro dele. Algo que talvez eles soubessem, mas nunca tiveram coragem de contar.E agora
Ainda com o diário apertado contra o peito, Jonas se levantou. A sensação de urgência crescia, como se o prédio inteiro estivesse respirando ao seu redor, em um ritmo que ele não conseguia controlar.Passou a lanterna pela pequena cômoda do quarto, do lado oposto à escrivaninha.Abaixou-se diante dela e puxou a primeira gaveta.Dentro, entre velhos lenços e algumas bijuterias empoeiradas, havia um papel dobrado cuidadosamente — diferente dos outros papéis rasgados e envelhecidos dali. Esse parecia ter sido guardado com um certo cuidado, quase com carinho.Jonas desdobrou o bilhete.A caligrafia era trêmula, quase hesitante, e não era a mesma da mãe nem da moradora — era de outra pessoa."Minha querida Elisa,""Sei que você acha que pode me proteger, que o que fizemos pode ser esquecido...""Mas eu sinto no ar, a cada noite, quando as luzes piscam e o vento traz aquele cheiro de ferro e cinzas.""Eles não esqueceram.""Se alguma coisa acontecer, se a névoa voltar, saiba que não foi cul
Jonas se sentou no chão, com a caixa aberta ao lado, o caderno em mãos.O zunido em seus ouvidos parecia crescer de novo, mas desta vez era mais fraco, como se viesse de dentro da própria memória.Fechou os olhos.E as lembranças começaram a emergir.**Ele estava no segundo ano do ensino médio.Era uma tarde abafada, daquelas em que o ar parecia mais pesado do que deveria. A aula de História tinha terminado, mas Jonas tinha ficado para trás, arrumando seus materiais.O professor Daniel se aproximou, aquela figura alta, de rosto magro e olhos fundos.— Você acredita que lugares podem... lembrar? — ele perguntou, de repente, olhando para Jonas como se esperasse algo além de uma resposta simples.Jonas, na época, apenas deu de ombros.— Tipo... ter memória? — arriscou.O professor sorriu, mas foi um sorriso estranho.Cansado.— Memória é uma palavra fraca pra isso. — Ele ajeitou a caixa sobre a mesa, aquela mesma caixa. — Alguns lugares, algumas pessoas, são gravadas em camadas mais pro
Jonas apertava a sacola de plástico com força demais. O barulho irritante do plástico estalava em suas mãos, mas ele não parava. Era como se aquele som fosse a única coisa mantendo o mundo estável, uma espécie de trilho invisível que o guiava de volta pra casa. Mãe precisa do remédio às cinco. Sempre às cinco. Foi o que o médico disse. Cinco. Nunca quatro e cinquenta e nove. Nunca cinco e cinco. Cinco. A rua estava estranhamente silenciosa. O mundo parecia abafado, como se alguém tivesse jogado um cobertor pesado sobre tudo. O sol, que pouco antes refletia nas janelas dos prédios, agora estava escondido atrás de uma camada espessa de... fumaça? Não. Era algo mais denso. Mais frio. Neblina. Mas não faz frio hoje... Não deveria haver neblina. Isso é coisa da minha cabeça? Não é? Eu sempre confundo essas coisas. Já disseram isso pra mim. Às vezes é real. Às vezes não. Como saber? Como saber agora? Ele parou na esquina. Daquele ponto podia ver o prédio onde morava — ou o que restava
O saguão parecia mais vazio do que o normal, apesar da luz oscilante refletida no piso frio. Jonas ainda ouvia o som abafado da rua atrás de si, mas era como se, ao cruzar o portão, tivesse entrado em outro lugar. Um lugar onde o tempo era mais lento, ou mais espesso.No fundo do saguão, atrás da mureta de vidro, o porteiro estava sentado.Jonas quase não o reconheceu.Seu nome era Valdir. Um senhor calvo, de voz grave e riso fácil, sempre com um copo de café na mão. Mas agora, sentado imóvel na cadeira giratória, Valdir parecia... paralisado. Os olhos abertos demais. A boca entreaberta como se quisesse falar algo, mas tivesse esquecido o quê.Jonas se aproximou devagar.— Seu Valdir...?O porteiro virou a cabeça num movimento seco, abrupto. O pescoço estalou alto demais. Ele demorou a focar os olhos, como se estivesse emergindo de um sono profundo.— Ah... Jonas. — A voz saiu arrastada, pastosa. — Foi... lá fora?— Fui pegar o remédio da minha mãe. A farmácia. Tá... diferente aqui. O
Um pouco antes, estava perdido sobre aquilo Ao pisar no terceiro andar, Jonas parou.O corredor diante dele estava silencioso, mas não era o silêncio de sempre. Não era o silêncio normal de um prédio no fim da tarde, quando moradores estão nos quartos e o som da cidade se filtra pelas janelas.Era outro tipo de silêncio. Um que parecia respirar.Ele se encostou levemente na parede, tentando puxar o ar devagar. A sacola pendia da mão como um peso morto. Olhou para ela de novo. O remédio ainda estava lá, envolto no papel da farmácia, com o nome da mãe escrito à caneta no canto da caixa. Letra apressada. Nome meio errado.Dona Estela. Minha mãe. Sempre tão certa das coisas. Sempre no controle.Lembrou-se do jeito como ela o olhava quando estava lúcida — com aquele olhar direto, que enxergava através das desculpas dele. E lembrou-se também de quando ela não estava bem, quando ficava sentada por horas, murmurando palavras sem sentido, segurando um terço invisível nas mãos.Ela dizia que a