Ainda com o diário apertado contra o peito, Jonas se levantou. A sensação de urgência crescia, como se o prédio inteiro estivesse respirando ao seu redor, em um ritmo que ele não conseguia controlar. Passou a lanterna pela pequena cômoda do quarto, do lado oposto à escrivaninha. Abaixou-se diante dela e puxou a primeira gaveta. Dentro, entre velhos lenços e algumas bijuterias empoeiradas, havia um papel dobrado cuidadosamente — diferente dos outros papéis rasgados e envelhecidos dali. Esse parecia ter sido guardado com um certo cuidado, quase com carinho. Jonas desdobrou o bilhete. A caligrafia era trêmula, quase hesitante, e não era a mesma da mãe nem da moradora — era de outra pessoa. "Minha querida Elisa," "Sei que você acha que pode me proteger, que o que fizemos pode ser esquecido..." "Mas eu sinto no ar, a cada noite, quando as luzes piscam e o vento traz aquele cheiro de ferro e cinzas." "Eles não esqueceram." "Se alguma coisa acontecer, se a névoa voltar, sa
Jonas se sentou no chão, com a caixa aberta ao lado, o caderno em mãos.O zunido em seus ouvidos parecia crescer de novo, mas desta vez era mais fraco, como se viesse de dentro da própria memória.Fechou os olhos.E as lembranças começaram a emergir.**Ele estava no segundo ano do ensino médio.Era uma tarde abafada, daquelas em que o ar parecia mais pesado do que deveria. A aula de História tinha terminado, mas Jonas tinha ficado para trás, arrumando seus materiais.O professor Daniel se aproximou, aquela figura alta, de rosto magro e olhos fundos.— Você acredita que lugares podem... lembrar? — ele perguntou, de repente, olhando para Jonas como se esperasse algo além de uma resposta simples.Jonas, na época, apenas deu de ombros.— Tipo... ter memória? — arriscou.O professor sorriu, mas foi um sorriso estranho.Cansado.— Memória é uma palavra fraca pra isso. — Ele ajeitou a caixa sobre a mesa, aquela mesma caixa. — Alguns lugares, algumas pessoas, são gravadas em camadas mais pro
Jonas apertava a sacola de plástico com força demais. O barulho irritante do plástico estalava em suas mãos, mas ele não parava. Era como se aquele som fosse a única coisa mantendo o mundo estável, uma espécie de trilho invisível que o guiava de volta pra casa. Mãe precisa do remédio às cinco. Sempre às cinco. Foi o que o médico disse. Cinco. Nunca quatro e cinquenta e nove. Nunca cinco e cinco. Cinco. A rua estava estranhamente silenciosa. O mundo parecia abafado, como se alguém tivesse jogado um cobertor pesado sobre tudo. O sol, que pouco antes refletia nas janelas dos prédios, agora estava escondido atrás de uma camada espessa de... fumaça? Não. Era algo mais denso. Mais frio. Neblina. Mas não faz frio hoje... Não deveria haver neblina. Isso é coisa da minha cabeça? Não é? Eu sempre confundo essas coisas. Já disseram isso pra mim. Às vezes é real. Às vezes não. Como saber? Como saber agora? Ele parou na esquina. Daquele ponto podia ver o prédio onde morava — ou o que restava
O saguão parecia mais vazio do que o normal, apesar da luz oscilante refletida no piso frio. Jonas ainda ouvia o som abafado da rua atrás de si, mas era como se, ao cruzar o portão, tivesse entrado em outro lugar. Um lugar onde o tempo era mais lento, ou mais espesso.No fundo do saguão, atrás da mureta de vidro, o porteiro estava sentado.Jonas quase não o reconheceu.Seu nome era Valdir. Um senhor calvo, de voz grave e riso fácil, sempre com um copo de café na mão. Mas agora, sentado imóvel na cadeira giratória, Valdir parecia... paralisado. Os olhos abertos demais. A boca entreaberta como se quisesse falar algo, mas tivesse esquecido o quê.Jonas se aproximou devagar.— Seu Valdir...?O porteiro virou a cabeça num movimento seco, abrupto. O pescoço estalou alto demais. Ele demorou a focar os olhos, como se estivesse emergindo de um sono profundo.— Ah... Jonas. — A voz saiu arrastada, pastosa. — Foi... lá fora?— Fui pegar o remédio da minha mãe. A farmácia. Tá... diferente aqui. O
Um pouco antes, estava perdido sobre aquilo Ao pisar no terceiro andar, Jonas parou.O corredor diante dele estava silencioso, mas não era o silêncio de sempre. Não era o silêncio normal de um prédio no fim da tarde, quando moradores estão nos quartos e o som da cidade se filtra pelas janelas.Era outro tipo de silêncio. Um que parecia respirar.Ele se encostou levemente na parede, tentando puxar o ar devagar. A sacola pendia da mão como um peso morto. Olhou para ela de novo. O remédio ainda estava lá, envolto no papel da farmácia, com o nome da mãe escrito à caneta no canto da caixa. Letra apressada. Nome meio errado.Dona Estela. Minha mãe. Sempre tão certa das coisas. Sempre no controle.Lembrou-se do jeito como ela o olhava quando estava lúcida — com aquele olhar direto, que enxergava através das desculpas dele. E lembrou-se também de quando ela não estava bem, quando ficava sentada por horas, murmurando palavras sem sentido, segurando um terço invisível nas mãos.Ela dizia que a
O som da porta batendo ecoou pelo apartamento como um trovão abafado. Jonas ficou alguns segundos encostado nela, o peito subindo e descendo, a testa úmida de suor frio.O silêncio ali dentro era diferente do corredor. Não era pesado, nem cheio de intenções ocultas — mas também não era confortável. Era o tipo de silêncio que carrega ausência. O tipo de silêncio que só existe em lugares onde alguém que devia estar ali… não está.Ele se levantou devagar e deu alguns passos pelo piso frio da sala.Tudo estava no escuro.A luz da janela mal atravessava a neblina lá fora, então os contornos dos móveis eram apenas sombras grossas contra um fundo cinzento. A televisão desligada refletia seu vulto de forma distorcida. O sofá parecia mais velho, mais gasto do que lembrava — como se tivesse absorvido o peso dos dias ruins.Não acender a luz. Se eu acender a luz, as coisas se tornam reais. Melhor deixar assim. Melhor não ver direito o que pode ter mudado.Jonas passou pela mesa da sala, tirou os
Jonas se afastou da porta do quarto aos poucos, como se temesse que o simples ato de virar as costas fizesse ela se abrir de novo.A cabeça estava cheia de ruído. Os pensamentos atropelavam uns aos outros, tentando formar alguma explicação coerente — mas nada encaixava.Mãe não tá bem. Não é gripe. Não é esquecimento. Não é uma crise. Aquilo... aquilo não era ela. Não daquele jeito. Parecia… vazia. O corpo tava ali, mas ela não.Aos poucos, ele foi até a janela da sala. A neblina ainda estava lá fora, espessa e leitosa, como se tivesse apagado a rua do mundo. Mal dava para ver os postes. Nenhum carro passava. Nenhum som da cidade.Ele olhou para a entrada do corredor, hesitou, e então foi até a porta.Abriu uma fresta, só o suficiente para espiar.O corredor parecia mais escuro do que antes — como se a luz estivesse sendo sugada, centímetro por centímetro. Ele foi até o fim, perto do Hall do elevador. O visor digital do painel estava apagado. Nem número, nem luz. Nada.Mas então ouviu
O terraço não era o fim.Jonas seguiu por entre as sombras, cruzando as caixas d’água, sentindo o ar rarefeito, tentando não pensar em quantos lances de escada havia subido. Mais ao fundo, a silhueta da estrutura da casa de máquinas do elevador se destacava como um bloco escuro recortado contra a neblina noturna.A porta estava aberta.Ele parou.Por quê? Quem abriu? Isso nunca tá aberto...A dúvida piscou na mente, mas o corpo já ia à frente. Devagar, ele entrou. Os pés pisaram o chão coberto de fuligem e graxa seca. O espaço cheirava a óleo velho e ferrugem. Havia um zumbido grave, contínuo, como se a própria engrenagem do prédio estivesse respirando.E então… ele viu.Não diretamente.Apenas um movimento.Rápido, fluido, quase sem som.Ele se escondeu atrás de um dos pilares de concreto que sustentavam a sala. Segurava a respiração. Não sabia se era o medo ou o instinto que dizia pra não se mover.A criatura passou.Alta.Esguia.A pele… se é que era pele… era lisa, úmida, de um to