O eco do nome proibido reverberava pelos cantos mais antigos de Ravenshall. Nos telhados, nas fendas do subsolo, nos ossos enterrados sob igrejas esquecidas. Algo havia despertado — e não estava mais disposto a ser calado.
Syllen vivia.
Mas não como antes. Emeraude sentia a presença dela não apenas nos sussurros, mas dentro de si. A banshee ancestral havia deixado de ser uma lenda distante. Agora, era uma sombra enraizada na sua voz.
A cidade começava a sentir os efeitos.
Pessoas tinham pesadelos em conjunto. Áudios sumiam de celulares, como se toda gravação sonora estivesse sendo devorada. E, o mais assustador: três mortes ocorreram em silêncio absoluto, com olhos arregalados e ouvidos sangrando.
Emeraude sabia: aquilo era sua culpa.
Mas também era seu dever consertar.
O último selo era o Grito Puro.
O som ancestral. O primeiro grito que deu origem às banshees. Um grito que não apenas previa a morte… mas definia o destino. A mãe dela mencionara algo assim uma vez, numa conversa abafada que Emeraude ouvira atrás da porta:
> “Se um dia ela chegar ao Grito Puro, não seremos capazes de pará-la, James. Nem mesmo você, com seu sangue de deus.”
Para encontrar esse grito, Emeraude precisaria ir ao Coração do Véu — uma dimensão entre mundos, onde tudo que foi esquecido vive em forma bruta.
Mas o caminho não era simples. Era necessário morrer.
Ou algo próximo disso.
Guiada por Lysandra e Syllen — agora ambas presentes como presenças em sua mente — Emeraude preparou o ritual. Precisava de três elementos:
A lágrima de um inocente (que ela colheu de uma criança salva por seu pai, anos antes, e guardada num relicário dourado);
Um fio de cabelo da mãe em forma de loba, escondido num livro de família;
Seu próprio sangue, do mesmo corte que abrira o altar.
Ela se deitou sobre a pedra do templo sob a escola, exatamente onde libertara Syllen, e entoou o cântico dos mortos, aprendido por instinto. O mundo escureceu.
Quando abriu os olhos, estava em um campo sem céu nem chão. Sons se moviam como fumaça — não sons comuns, mas emoções sussurradas, lembranças de gritos que nunca foram ouvidos.
E no centro disso, uma silhueta. Humana. Fêmea. Com cabelos feitos de vento e olhos de vazio.
— Você é a filha do eco — disse ela, sem abrir a boca. — Eu sou o que resta do primeiro grito. Se me deseja... cante comigo.
Emeraude sentiu o corpo vibrar. O som não era criado por cordas vocais. Era feito de alma.
As duas gritaram juntas.
Foi o som mais puro do mundo.
Não havia dor, nem medo. Era verdade. Essência. Era como gritar quem você é sem vergonha, sem máscaras.
O Véu se abriu.
Emeraude acordou com os olhos em pranto. Mas não de dor.
Ela agora era uma Banshee Completa.
O último selo havia sido liberado.
E no horizonte, ela sentia: alguém — ou algo — estava vindo por isso.
O mundo parecia diferente desde o Grito Puro.
Emeraude agora caminhava pelas ruas de Ravenshall com uma nova percepção. Ouvir o som dos pássaros ou o farfalhar das folhas já não era o mesmo — cada ruído trazia ecos de outras vidas, outras mortes, segredos enterrados no tempo.
E foi assim que ela o sentiu pela primeira vez.
Silêncio.
Um silêncio cruel, que cortava os sons antes que nascessem. Uma ausência antinatural, onde até os próprios pensamentos pareciam ser abafados. Não era um silêncio de paz, mas de caça.
Ele estava perto.
Na biblioteca da escola, as páginas começaram a se apagar sozinhas. Palavras sumiam, nomes eram engolidos por um vazio mudo. Emeraude correu até lá e viu: na parede, escrito com sangue, uma única palavra.
"Silenciador."
Lysandra reconheceu o nome imediatamente.
— Ele é um antigo caçador de banshees. Um renegado. Um ser que nasceu sem som e inveja todos que o têm. Ele caça dons vocais, poderes espirituais. E agora… ele sentiu o seu grito.
Syllen completou, com amargura:
— Ele me caçou uma vez. Quase me apagou da existência. E se te alcançar, Emeraude… não restará nem o som da sua lembrança.
Emeraude sabia: precisava se preparar.
Refugiou-se no santuário do pai, onde James mantinha relíquias de cura e artefatos protetores dos deuses. Ele não sabia de tudo o que acontecera, mas ao vê-la tremendo, olhos brilhando com faíscas sobrenaturais, entendeu:
— Você não é mais apenas minha filha. Você é um eco do mundo. Um aviso do além. Eu vou protegê-la. Até onde for possível.
James lhe deu o colar de Asclépio, com uma serpente de prata enrolada, símbolo da cura, mas também do renascimento. Ao usá-lo, Emeraude se conectava com os fluxos da vida… e conseguia ouvir os ecos da cura, não apenas da morte.
Naquela noite, o Silenciador veio.
Ele não tinha rosto. Apenas uma pele esticada demais, onde deveriam existir olhos, uma máscara feita de silêncio. Suas mãos eram finas, como de maestro, mas o som se desfazia onde ele tocava.
Ele ergueu os dedos e apontou para Emeraude. O chão rachou sob seus pés.
Mas antes que pudesse atacar, Emeraude gritou.
Não por medo. Mas por coragem.
O grito criou uma onda que empurrou o ser de volta, rasgando parte de sua máscara. Por baixo… havia uma criança. Uma alma fragmentada.
— Ele era como você — disse Lysandra. — Mas perdeu tudo. E quis calar o mundo para não ouvir a própria dor.
Emeraude, com os olhos úmidos, sussurrou:
— Eu não vou te destruir. Mas vou te impedir.
Com o colar de Asclépio apertado no peito, ela canalizou seu grito num sussurro curativo, uma música esquecida pelas banshees: o lamento da alma ferida.
O Silenciador gritou pela primeira vez.
E então, desapareceu.