A noite se derramava como tinta sobre Ravenshall quando Emeraude voltou da clareira. Ela mal conseguia respirar com tanto peso sobre os ombros. As vozes das banshees silenciaram, como se estivessem à espera do primeiro movimento.
“O Sangue da Verdade.”
Ela não sabia por onde começar. Mas alguém sabia.
Alisha.
Sua mãe.
A mulher que passava os dias atendendo pacientes em sua clínica e as noites caminhando pelo bosque, na forma de loba, devorando memórias podres como quem colhe ervas daninhas da alma humana.
Emeraude entrou na biblioteca da mansão, onde Alisha costumava guardar seus antigos grimórios. No fundo de uma gaveta secreta, encontrou um diário de capa escura, com a letra firme da mãe. Havia um capítulo inteiro sobre linhagens e pactos ancestrais.
Ali, a verdade veio como uma lâmina:
> "Para manter a ordem entre os dons, selamos o Véu com três chaves. O sangue de uma criatura que não mente — o sangue da verdade — foi usado como selo. A última a carregá-lo foi Lysandra, uma banshee que viu a própria morte e tentou impedir o destino. Foi punida, trancada na Fonte."
Lysandra.
Emeraude sentiu como se conhecesse esse nome. Como se aquela alma estivesse próxima.
E estava.
Naquela noite, Emeraude teve um sonho lúcido. Estava em um campo onde o tempo não existia. E no centro dele, Lysandra.
Alta, imponente, com cabelos prateados como névoa e olhos de um azul esquecido pelo mundo.
— Você me sente, criança. — a voz dela soava como vento entre túmulos. — O sangue da verdade ainda corre em mim. Mas estou trancada. Você precisa abrir o caminho.
— Como?
— Há um templo esquecido sob Ravenshall. Suas raízes se escondem sob a escola. Encontre o altar das mentiras. Nele, derrame algo verdadeiro... algo seu.
Emeraude acordou ofegante. Sabia o que fazer.
No dia seguinte, entre as aulas e os sussurros, escapou pelos túneis velhos atrás do ginásio da escola. Um antigo abrigo antibombas, agora selado por grades e musgo. Mas havia símbolos. E havia um caminho.
Com o grito, quebrou as travas do tempo e desceu.
Ali, sob a terra, encontrou o Altar das Mentiras — uma estrutura de pedra e ossos, coberta por espelhos que distorciam tudo que refletiam.
Ela lembrou das palavras de Lysandra:
> "Derrame algo verdadeiro."
Então Emeraude pegou um caco de espelho e cortou a própria palma.
Seu sangue caiu sobre o altar.
O templo inteiro estremeceu.
Do chão, raízes negras começaram a se partir, liberando um feixe de energia que atravessou o teto e se espalhou como uma onda invisível.
Ela ouviu, pela primeira vez, a voz real de Lysandra:
— Você abriu a primeira porta. Agora, ache o segundo selo: o Nome do Silêncio.
Mas não era a única a ouvir aquilo.
Alguém — ou algo — também sentiu o despertar.
Nas sombras da cidade, olhos antigos se abriram.
E uma nova caça começou.
As ruas de Ravenshall pareciam mais quietas do que o normal. Não era silêncio comum. Era um vazio. Um tipo de ausência que fazia Emeraude sentir-se observada até pelas janelas fechadas.
Desde que despertara o altar, tudo parecia... tenso. Como se o mundo soubesse que algo esquecido havia sido tocado.
Ela mal dormiu nos últimos dias. Os sussurros voltaram, mas estavam diferentes — mais antigos, mais confusos. Entre eles, um nome sussurrado de novo e de novo:
"Syllen."
Parecia vir de todo lugar e de lugar nenhum. Um nome perdido no tempo.
Ela procurou por registros, vasculhou os diários de Alisha e até tentou interrogar o pai, que andava cada vez mais ausente, como se escondesse algo. Foi então que, numa visita à biblioteca central da cidade — um prédio velho e pouco frequentado — encontrou um manuscrito esquecido num compartimento trancado por selos arcanos.
Usou seu grito para romper a barreira.
Dentro, estava um livro sem título. A capa era feita de couro antigo, e o cheiro de tempo impregnava as páginas.
E ali, em letras esmaecidas, encontrou a lenda:
> “Syllen foi a primeira banshee que gritou por conta própria, sem prever a morte de outro. Seu grito rasgou o tecido do mundo e abriu o Véu. Para impedir que fizesse isso novamente, os outros dons a silenciaram, retirando seu nome da história. Ele não deve ser dito. Ele não deve ser lembrado. Pois nomear é despertar.”
Emeraude fechou o livro com força. O Nome do Silêncio... não era apenas um nome proibido. Era o nome de uma alma esquecida, apagada por todos, inclusive pelas próprias banshees. Alguém que ousou quebrar a regra do destino.
E ela havia dito esse nome.
Em voz alta.
Sozinha.
Na biblioteca.
O chão tremeu levemente. As lâmpadas piscaram. E um frio subiu pela espinha de Emeraude.
Syllen havia escutado.
No espelho à sua frente, por um breve instante, viu outra versão de si mesma — olhos escuros, sorriso contido, e uma cicatriz em forma de cruz sobre o pescoço.
A imagem sussurrou:
— Você me chamou. Agora, enfrente o preço.
Emeraude recuou. O espelho estilhaçou. Atrás dele, uma passagem oculta. Corredores de pedra, velas acesas sozinhas. Alguém tinha preparado aquilo. Para ela.
No fim do caminho, um altar com uma máscara de ferro presa a correntes. Uma voz ressoou do nada, quase como um pensamento plantado:
— Dê-me voz. Traga o nome de volta ao mundo. Quebre o pacto.
Mas Emeraude hesitou. O nome era perigoso. Havia sido esquecido por um motivo.
E mesmo assim... parte dela queria dizer novamente. Gritar, se preciso.
Mas antes que decidisse, passos ecoaram atrás dela.
Uma figura de capa escura, olhos completamente brancos. Um guardião do Véu. Um Caçador do Silêncio.
— Você falou o nome proibido, garota. E agora, vai aprender o que é ser silenciada.
Emeraude gritou, não com medo, mas com poder.
O templo tremeu. As correntes da máscara se romperam.
E o nome foi libertado.
Syllen vive.