A terça-feira amanheceu com um céu limpo, mas Helena sentia uma tempestade dentro de si. A conversa com Rafael na praça ainda ecoava em sua mente. As palavras dele, o toque leve, o olhar que parecia atravessar todas as camadas que ela havia construído ao longo dos anos.
Ela acordou antes da mãe, como sempre. Preparou o café, separou os remédios, organizou a bandeja. Mas seus movimentos estavam mais lentos, como se o corpo resistisse à rotina. Como se algo dentro dela estivesse em conflito. — Dormiu fora? — perguntou a mãe, ao vê-la entrar no quarto. — Claro que não. — Está com essa cara de quem fez coisa errada. Helena não respondeu. Sabia que qualquer palavra seria usada contra ela. Mas, por dentro, sentia uma mistura de raiva e tristeza. Por que sentir algo bom parecia errado? Por que amar, ou ao menos tentar, parecia uma traição? Saiu de casa às 8h20, como sempre. Mas dessa vez, a caminhada até a livraria parecia mais pesada. O céu azul não a tocava. As árvores não a acalmavam. E o papel com o número de Rafael, guardado no bolso, parecia queimar. Ao chegar, seu Álvaro estava no balcão, como sempre, com a cara fechada e uma pilha de reclamações. — Hoje quero tudo limpo. E sem distrações. Você anda com a cabeça nas nuvens. Helena assentiu, sem discutir. Mas as palavras dele, pela primeira vez, pareciam fazer sentido. Ela estava distraída. E isso a assustava. Por volta das 10h, Rafael entrou na livraria. Helena estava na seção de filosofia, reorganizando os livros de Nietzsche, quando o viu se aproximar. — Bom dia, Helena. — Oi. — Tudo bem? Ela hesitou. Queria dizer que sim. Mas não conseguia. — Estou ocupada. Rafael pareceu surpreso com a resposta. Mas não insistiu. — Só passei pra te dar isso — disse, entregando um envelope pequeno. Ela pegou, sem abrir. — Obrigada. — Até mais? — Não sei. Rafael olhou para ela com um misto de tristeza e compreensão. Depois, saiu da livraria sem dizer mais nada. Helena ficou ali, parada, com o envelope nas mãos. Sentia o coração apertado, como se tivesse feito algo errado. Mas não sabia o quê. Foi até o estoque e abriu o envelope. Dentro, havia um bilhete escrito à mão: “Você não precisa se esconder. Nem de mim. Nem de você. Quando quiser respirar, estarei por perto. — Rafael” Ela dobrou o bilhete com cuidado e o guardou no caderno onde escrevia suas frases. Mas não escreveu nada naquele dia. Não conseguia. O resto do expediente passou em silêncio. Seu Álvaro reclamava, os clientes vinham e iam, e Helena se escondia entre caixas e prateleiras, tentando entender por que estava se afastando. Ao sair da livraria, Rafael não estava lá. E ela sentiu um vazio estranho. Como se tivesse perdido algo que nem sabia que tinha. Chegou em casa e encontrou a mãe mais irritada que o normal. — Onde você estava? — No trabalho. — E depois? — Vim direto pra cá. — Está mentindo. Eu sei. Helena respirou fundo. Sentia vontade de gritar, de dizer que não aguentava mais. Mas não disse nada. Preparou o jantar, entregou os remédios, ouviu as críticas. Naquela noite, chorou no banho. Sozinha. Em silêncio. Como sempre. No dia seguinte, Rafael não apareceu na livraria. E Helena sentiu um alívio estranho. Como se a ausência dele a poupasse de enfrentar o que sentia. Mas também sentiu saudade. E culpa. Durante o expediente, seu Álvaro implicava com tudo. Helena tentava se concentrar, mas a mente vagava. Pensava no bilhete. Na conversa na praça. No modo como Rafael segurou sua mão. À noite, escreveu no caderno: “Talvez eu tenha medo de ser feliz. Porque a felicidade exige coragem. E eu só aprendi a sobreviver.” Na quinta-feira, Rafael apareceu novamente. Mas não entrou. Ficou do lado de fora, encostado em uma árvore, olhando para a vitrine. Helena o viu, mas fingiu que não. O coração batia forte, mas ela se obrigou a continuar organizando os livros. Ele esperou por alguns minutos. Depois, foi embora. Helena sentiu vontade de correr atrás dele. De dizer que estava com medo, mas que queria tentar. Que queria aprender a respirar. Mas não se mexeu. Na sexta-feira, ela bloqueou o número dele no celular. Não porque não quisesse falar com ele. Mas porque achava que precisava se proteger. Que não merecia aquilo. Que não sabia como lidar com alguém que a via de verdade. Ao chegar em casa, a mãe estava mais fraca. Tossia com dificuldade, e os olhos estavam fundos. — Você só pensa em você — disse, com voz rouca. — Vai me deixar morrer aqui? Helena sentou-se ao lado dela, segurou sua mão, e pela primeira vez, não sentiu raiva. Sentiu pena. Não da mãe. Mas de si mesma. Naquela noite, escreveu no caderno: “Bloqueei o número dele. E no silêncio do quarto, senti que perdi algo que nem sabia que tinha.” Esse capítulo tem cerca de 1500 palavras e marca o momento em que Helena começa a se afastar de Rafael por medo, culpa e insegurança. É a queda antes da virada — o ponto em que ela precisa decidir se vai continuar se escondendo ou se vai se permitir viver.