A segunda-feira amanheceu com um céu limpo e um vento suave que entrava pela janela da cozinha. Helena observava as cortinas dançarem com a brisa enquanto preparava o café da manhã da mãe. Havia algo diferente no ar — uma leveza que ela não sabia nomear, mas que parecia vir de dentro.
A mãe tossia no quarto, como sempre. Helena levou a bandeja com os remédios e o café, tentando manter a calma.
— Está amargo — reclamou a mãe, após o primeiro gole.
— É o mesmo de sempre — respondeu Helena, com voz baixa.
— Você não sabe fazer nada direito. Nem café.
Helena não respondeu. Mas, pela primeira vez, as palavras não atravessaram como flechas. Havia algo dentro dela que amortecia os golpes. Talvez fosse o papel dobrado que guardava no bolso — o número de Rafael, escrito com uma letra firme e gentil.
Saiu de casa às 8h20, como sempre. Mas dessa vez, o caminho até a livraria parecia diferente. As árvores pareciam mais verdes, o céu mais azul. E ela, mais viva.
Seu Álvaro estava no balcão, como sempre, com a cara fechada e uma pilha de reclamações.
— Quero o estoque limpo. E sem conversa com cliente. Isso aqui não é terapia.
Helena assentiu, mas por dentro, sorria. Porque sabia que, fora dali, havia alguém que a escutava. Alguém que não a via como um erro ambulante.
Por volta das 10h, Rafael entrou na livraria. Helena estava na seção de poesia, reorganizando os livros de Manoel de Barros, quando o viu se aproximar.
— Bom dia, Helena.
— Bom dia.
— Pensei em te chamar ontem, mas achei melhor esperar.
— Obrigada por esperar.
— Ainda quer conversar?
Ela hesitou. Queria. Mas também tinha medo. Medo de se abrir, de se permitir, de descobrir que havia vida fora da dor.
— Sim. Mas não aqui.
— Café depois do trabalho?
Ela assentiu. Rafael sorriu, como quem sabia que aquele “sim” carregava muito mais do que uma resposta.
O dia passou devagar. Seu Álvaro estava especialmente insuportável, reclamando de tudo, implicando com cada detalhe. Mas Helena não se abalava. Havia algo dentro dela que resistia. Uma esperança silenciosa, como um sopro.
Às 17h, Rafael a esperava na porta da livraria. Vestia uma camisa azul clara e segurava dois copos de café.
— Achei que você fosse desistir — disse ele, entregando um dos copos.
— Pensei em desistir. Mas não consegui.
Caminharam até uma praça próxima, onde havia bancos de madeira e árvores antigas. Sentaram-se sob uma figueira, e Helena sentiu o cheiro do café misturar-se ao perfume suave das flores.
— Você parece diferente hoje — disse Rafael.
— Me sinto diferente. Como se tivesse acordado de um sono longo.
— E o que te acordou?
Helena olhou para ele. Os olhos escuros, atentos, gentis.
— Você. E a ideia de que talvez eu mereça mais do que dor.
Rafael não respondeu de imediato. Apenas segurou sua mão com delicadeza.
— Você merece. Muito mais.
Helena sentiu os olhos marejarem. Não estava acostumada com carinho. Com escuta. Com presença.
— Às vezes, acho que estou traindo minha mãe ao sentir isso.
— Sentir não é traição. É sobrevivência.
Ela respirou fundo. Olhou para o céu, que começava a se tingir de laranja.
— Quando meu pai morreu, eu tinha dez anos. Minha mãe mudou. Ficou amarga. E eu... tentei ser tudo o que ela precisava. Mas nunca fui suficiente.
— Você era criança. Não era sua responsabilidade.
— Mas ela me fez acreditar que era.
Rafael apertou sua mão com mais firmeza.
— Você não precisa carregar isso sozinha.
Helena olhou para ele, e pela primeira vez, sentiu que talvez pudesse confiar. Que talvez pudesse se permitir.
— Eu escrevi ontem — disse, com um sorriso tímido. — Uma frase. Só uma.
— Posso ouvir?
— “Talvez eu esteja aprendendo a respirar. Mesmo com o peso da casa.”
Rafael sorriu.
— Isso é lindo. E verdadeiro.
Ficaram em silêncio por alguns minutos, observando o movimento da praça, o som das crianças brincando, o vento que balançava as folhas.
— Você gosta de poesia? — perguntou Helena.
— Gosto de palavras que dizem o que o silêncio não consegue.
— Então você vai gostar de Manoel de Barros.
— Me apresenta?
Ela riu. Pequeno. Mas verdadeiro.
— “O que não sei sobre mim me interessa mais do que o que sei.”
— Isso é dele?
— É. E é meu também.
Rafael olhou para ela com admiração.
— Você tem asas, Helena. Só não aprendeu a usá-las ainda.
Ela sentiu o coração acelerar. Aquela frase ecoava como uma promessa. Como um convite.
— E se eu cair?
— Eu seguro você.
O sol começava a se esconder, e Helena sabia que precisava voltar. A mãe estaria esperando. E cobrando.
— Preciso ir.
— Posso te acompanhar?
— Melhor não. Ela não gosta de visitas.
— Então me deixa te acompanhar até onde ela não vê.
Caminharam juntos até a esquina da rua de Helena. Pararam sob um poste antigo, onde a luz amarelada começava a acender.
— Obrigada pelo café. E pelas palavras.
— Obrigado por confiar.
Ela hesitou. Queria dizer mais. Queria abraçá-lo. Mas não sabia como.
— Até amanhã?
— Até amanhã.
Ao entrar em casa, a mãe estava sentada no sofá, com os olhos semicerrados.
— Demorou. Vai me deixar morrer aqui?
Helena entregou os remédios, preparou o jantar, ouviu as críticas. Mas algo nela havia mudado. Uma fresta de luz havia entrado. E mesmo que pequena, era suficiente para fazer o silêncio gritar de outro jeito.
Naquela noite, escreveu no caderno:
“Hoje, alguém me viu. E eu me vi também.”